Série Especial | Urbanização na China
Imagem: Mark Goh/Unsplash.

Série Especial | Urbanização na China

Exploramos a complexidade das questões de moradia, as controversas medidas de desapropriação e a perda da vitalidade urbana dos novos empreendimentos.

23 de janeiro de 2019

Centenas de torres se repetem em um horizonte esfumaçado. Construções tradicionais caem aos pedaços, enquanto outras foram reconstruídas e se tornaram lojas para turistas. Lamborghinis coloridas dividem um trânsito lento com táxis velhos, triciclos de operários e executivas andando de bikes amarelas da Ofo, a maior empresa de bicicletas dockless do mundo. Alguns pedestres usam máscaras para filtrar o ar poluído, outros carregam sacolas de compras, outros cospem no chão ou andam de pijama pelas ruas. Ambulantes são raríssimos, ao contrário de policiais ou militares que podem ser vistos a cada esquina. Este cenário paradoxal e cheio de contrastes é o que coloriu minha recente viagem para a China, onde passei duas semanas visitando as cidades de Beijing, Shanghai, Chengdu, Shenzhen e Hong Kong.

Reportagens sobre urbanismo chinês normalmente exaltam a velocidade na construção de grandes obras, mas raramente entram na complexidade das questões relacionadas à moradia ou cobrem as controversas medidas de desapropriação praticadas pelo poder público, sem falar na perda da vitalidade urbana dos novos empreendimentos. São estes detalhes que tentarei mostrar neste especial sobre cidades chinesas.

Políticas urbanas

Para entender a dinâmica das cidades chinesas, é importante ter uma ideia de como funcionam as políticas de propriedade e migração em um país que mantém uma estrutura centralizada de poder mas que, de alguma forma, busca a globalização e a abertura de mercados como forma de promover o seu desenvolvimento.

Hong Kong, China
Hong Kong, modelo para as “Zonas Econômicas Especiais”. (Imagem: Mark Goh/Unsplash)

Algumas das zonas de maior crescimento econômico nos últimos anos na China são as chamadas “ZEEs”, ou “Zonas Econômicas Especiais”. Espelhadas no modelo de Hong Kong, que já era extremamente cosmopolita e desenvolvida, elas foram criadas a partir do final da década de 70 com as políticas de abertura econômica promovidas pelo então líder Deng Xiaoping.

É relevante colocar estas políticas econômicas em contexto: a experiência chinesa representa a maior erradicação de pobreza em tão curto espaço de tempo da história da humanidade e, de acordo com o Banco Mundial, mais de 500 milhões de pessoas saíram da pobreza, tendo reduzido o percentual da população vivendo em pobreza extrema de 88% em 1981 para 6,5% em 2012.

Parte deste processo, as Zonas Econômicas chinesas apresentavam políticas diferenciadas com objetivo de atrair investimento estrangeiro, como a redução de impostos, tarifas e barreiras regulatórias, como a possibilidade de estrangeiros abrirem empresas e instituições financeiras. Para se ter uma ideia do sucesso dessa designação, Shenzhen, a primeira das ZEEs, tinha cerca de 30 mil habitantes na década de 70 e hoje tem mais de 10 milhões.

Zona turística na parte histórica de Chengdu., China
Zona turística na parte histórica de Chengdu.

Este crescimento de grandes centros urbanos se deu de forma quase independente do sistema chinês chamado “hukou”, que basicamente tenta controlar a migração populacional interna ao atrelar os serviços públicos que um cidadão pode usar a uma determinada região.

Como a China continua sendo gerida por um partido que acredita em amplo provimento de serviços públicos à sua população, o hukou seria um forte incentivo para impedir migrações internas. No entanto, as oportunidades de trabalho nos grandes centros urbanos e as possibilidades de enriquecimento superam este incentivo para muitas famílias.

Em muitos casos, as famílias acabam separando-se geograficamente, onde casais moram separados buscando empregos em regiões diferentes de uma cidade ou em cidades diferentes. O crescimento urbano na China foi tão intenso que as cidades do “Tier 1”, o grupo das maiores cidades chinesas, começaram a adotar objetivos de restrição populacional, pois acreditam que não serão capazes de realizar uma gestão urbana adequada para suas aglomerações de mais de 20 milhões de habitantes.

Na China, não existe o conceito de propriedade privada quando se fala de mercado imobiliário. Existem as propriedades do estado e as propriedades coletivas de pequenos agricultores, estas frequentemente tomadas pelo estado para desenvolvimento urbano.

Para promover o desenvolvimento urbano, o estado então realiza chamadas públicas, leilões e concessões para a transmissão de posse dos terrenos, que podem durar entre 40 e 70 anos dependendo do seu uso.

Também é preciso colocar tal sistema em perspectiva, para aqueles que não estão acostumados com o conceito: sistema semelhante de “aluguel de longo prazo” de terrenos também é utilizado na Inglaterra, herança de uma estrutura feudal de divisão de terras e de uma Coroa que ainda detém quantidade considerável de bens imobiliários.

Hong Kong, território britânico até 1997 e atualmente uma área administrativa especial dentro da China, também mantém este sistema de posse sobre a terra.

Os leilões de terra são essenciais para as finanças públicas municipais, que somam cerca de 30% da receita dos governos municipais. Apesar do sistema centralizado de governo para uma série de políticas, a gestão territorial segue um modelo em “pirâmide” onde, a partir da capital, são determinados padrões gerais de planejamento que devem ser seguidos em todo país. Regiões e municípios tem o dever de elaborar seus próprios planos, mais detalhados.

No entanto, diferente do Brasil, onde um município tem autonomia para aprovar o seu Plano Diretor, na China os planos devem ser sempre aprovados pela instância superior: o xiangxi guihua, ou Plano Detalhado, e o zongti guihua, ou Plano Geral, devem ser aprovados pela instância regional, e os planos regionais devem ser atualizados quando há mudanças nas recomendações em nível federal.

O efeito em cascata também ocorre para questões como, por exemplo, quanta área será urbanizada em cada ano: o Ministério de Terra e Recursos Naturais define quanta área pode ser urbanizada em cada província e, em seguida, a província aloca esta área entre as suas cidades.

Além disso, são os municípios que decidem sobre a venda das posses, sobre o desenvolvimento de infraestrutura e a emissão de licenças de construção, e o governo central interfere no mercado imobiliário através de condições de financiamento, semelhante à forma como o Sistema Financeiro Habitacional é determinado em nível nacional no Brasil.

Superquadras com blocos repetidos no horizonte de Chengdu. À direita, um terreno "esvaziado" para abrigar novas construções.
Superquadras com blocos repetidos no horizonte de Chengdu. À direita, um terreno “esvaziado” para abrigar novas construções.

O governo central também tem um papel importante no investimento de infraestrutura pesada, como redes rodoviárias e redes urbanas de metrô, tanto subterrâneas como de superfície. O investimento chinês em infraestrutura médio entre 1992 e 2011 é significativamente superior à média mundial, tendo ultrapassado os EUA em investimentos absolutos.

O custo para desenvolver estas redes também é muito inferior ao dos EUA ou da Europa. Entre os motivos estão o fato de que o país continua sob um regime centralizado (que facilita a desapropriação de terras), o menor desenvolvimento das áreas urbanas, os custos de mão de obra baixos e as menores regulamentações para levar uma obra adiante.

Com o rápido crescimento e investimento nas cidades aliados a uma política relativamente pouco dinâmica na construção de oferta para moradia, devido ao controle estatal, o mercado habitacional tem sofrido pressão da demanda e aumento de preços nos últimos anos. De acordo com paper da Thompson Reuters, “com a rápida expansão das cidades na China, as políticas de oferta de terra nas maiores cidades como Beijing, Shanghai, Guangzhou e Shenzhen são limitadas.

Em Shenzhen, por exemplo, a área total de terra disponível para construção é de 1.350 ha, e apenas 168 ha são destinados para moradia.” Por este motivo, os preços nas maiores cidades subiram cerca de 55% entre 2015 e 2016, e 20% em cidades “Tier 2”, o segundo conjunto de cidades grandes. Apesar do aumento, a acessibilidade à moradia é semelhante a grandes cidades internacionais, onde os preços de moradia são de 15 a 20 vezes a renda disponível familiar.

No final dos anos 90, com o processo de abertura econômica da China, uma série de reformas foram feitas para privatizar o que antes existia de estoque habitacional estatal, trazendo a moradia a preços de mercado.

Para se ter uma ideia, estima-se que no final do século XX cerca de 2,5 milhões de metros quadrados foram privatizados, com um valor de mercado de cerca de RMB 2,5 trilhões, ou 32% do PIB da China em 1998. A privatização ajudou a baixar o percentual da população que mora de aluguel para 10%.

Esta reforma ocorreu junto a um dos maiores booms construtivos da história: a área de moradia urbana total da China dobrou de 10,3 bilhões de metros quadrados em 2000 para 20,3 bilhões de metros quadrados em 2010, com um aumento de área habitável por habitante de 22 m² para 30 m². No entanto, grande parte deste crescimento se deu visando crescimento econômico, incentivando incorporadores que recebiam a posse das terras em muitos casos a preços próximos de zero.

Hutong em Pequim.
Hutong em Pequim.

Antes das reformas de Deng Xiaoping, da década de 50 a 80, se tentou regular a qualidade da moradia através de uma política urbana aparentemente igualitária para o país inteiro: pelo menos um cômodo de cada habitação precisaria de, pelo menos, uma hora de sol por dia no solstício de inverno (21 de dezembro), onde o sol está mais baixo no hemisfério norte.

Aparentemente inofensiva, tal regra seria desastrosa para o desenvolvimento urbano chinês nestas três décadas, criando um estoque habitacional que hoje encontra-se totalmente desvalorizado. Em primeiro lugar, a regra segue critérios pseudocientíficos dado que a definição de uma hora de sol é arbitrária. A regra também definiria a distância e a altura entre edificações que, considerando uma área construída média por habitante, direcionaria também a densidade demográfica limite de uma cidade.

Como menciona Alain Bertaud no seu recente livro “Order Without Design”, ela levaria a absurdos como a permissão de densidades maiores na ilha de Hainan do que em Beijing, dado que o ângulo solar muda com a latitude. Assim, o padrão habitacional da moradia chinesa nestas três décadas seguiram um padrão incrivelmente semelhante por todo o país, com mudanças que iniciaram com a remoção da lei nos anos 80.

Mesmo assim, o desenvolvimento habitacional chinês segue com objetivos quantitativos: de Shanghai a Chengdu é possível ver blocos residenciais comoditizados, além de programas como o “Shantytown Renovation Housing”, ou “Habitação de Renovação de Favelas”, onde favelas são basicamente limpadas do mapa e realocadas para as periferias.

Mesmo com a melhoria das condições, moradores realocados sofrem com restituições inadequadas, e o custo crescente de moradia além de um sistema hukou excludente continuam sendo barreiras para a habitação de populações rurais que continuam migrando para as cidades.

O hukou é apenas uma das diversas ferramentas que o governo chinês utiliza para controlar amplamente a vida dos seus cidadãos. Imprensa livre é algo que não existe na China há muito tempo, sendo normal abrir o jornal e ler somente notícias positivas sobre o governo.

Redes sociais e aplicativos de mensagens, como o WeChat, são constantemente monitorados pelo governo, e mensagens contrárias ao governo vigente simplesmente não chegam nos receptores, podendo ser investigadas caso forem enviadas repetidamente.

O governo também implementou recentemente um sistema de reconhecimento facial dos seus cidadãos com câmeras, um nível de vigilância dos cidadãos sem precedentes. Ao questionar um morador local que nos acompanhava na viagem sobre o que ele achava do presidente durante um jantar em um restaurante, a resposta que obtive foi que “não era o local ou momento adequado para falar sobre o assunto”, tamanho o medo de eventuais repercussões.

Velha Shanghai, ao lado do Yu Garden, com os novos edifícios residenciais ao fundo.
Velha Shanghai, ao lado do Yu Garden, com os novos edifícios residenciais ao fundo.

Confirmando a observação in loco, segundo o urbanista Rémi Curien, o planejamento chinês, não surpreendentemente, é fortemente inspirado no método de urbanismo tecnocrata soviético e no urbanismo modernista, onde o planejamento detalhado, assim como as regras de zoneamento, tem um papel fundamental.

Curien também comenta que os gestores locais são avaliados em nível nacional pelo crescimento econômico da sua região, com os principais indicadores sendo a taxa de urbanização e a quantidade de concessões de terra para o setor privado.

Ou seja, quanto mais rápido for o crescimento urbano de uma cidade, melhor será o desempenho do político encarregado nacionalmente. Este sistema de incentivos ajuda ainda mais uma vez a explicar o contínuo e rápido crescimento urbano das cidades chinesas ao longo dos últimos anos, e talvez nos dê um indicador adicional para entender as chamadas “cidades fantasma”.

Quando se fala em urbanização chinesa as “cidades fantasma”, grandes conjuntos de edifícios que permanecem vazios por longos períodos de tempo, são as que mais chamam a atenção internacional. Ordos, um dos exemplos mais conhecidos, desde 2010 aparece em reportagens como um fracasso urbano, problema que aparentemente perdura até hoje

O problema aparentemente tem causas diferentes dependendo de cada caso. Em Ordos o motivo para o número de imóveis vazios pode ter sido a megalomania dos gestores locais, esperando um crescimento acelerado e subsidiando a construção — a dívida do município hoje chega a 250% da sua arrecadação. No país como um todo, a política econômica tem um papel fundamental dada a sua forte interferência no mercado imobiliário.

O governo mantém uma política de juros artificialmente baixos para acelerar o crescimento, prejudicando a poupança e transformando imóveis, mesmo na ausência de propriedade privada propriamente dita, em um investimento considerado seguro por muita gente. Em escala nacional isso gera um fenômeno especulativo onde muitos veem o investimento imobiliário como uma reserva de valor, mesmo na ausência de demanda no curto prazo e mantendo apartamentos vazios.

Vindo de um sistema onde antes a propriedade era proibida, hoje cerca de 90% das famílias chinesas têm imóvel próprio e cerca de um quarto possui múltiplos imóveis. Ainda, imóveis representam, em média, 75% do patrimônio total de uma família chinesa, muito mais alto que nos Estados Unidos, por exemplo, onde esta média gira em torno de 35%.

Com este contexto, alguns analistas preveem o estouro de uma bolha de um mercado imobiliário artificialmente acelerado, dado que dificilmente estes imóveis serão revendidos a preços atraentes para os atuais proprietários. Neste contexto, o governo tem gradualmente aumentado a regulação sobre o mercado imobiliário como, por exemplo, com a limitação do número de imóveis que um habitante pode comprar.

Este cenário paradoxal entre controle social e liberdade econômica permeia a sociedade chinesa, e embora estas premissas gerais sejam adequadas para falar sobre a urbanização na China de forma geral, as cidades que visitei apresentam diferenças marcantes de como se desenvolveram, influenciando na sua dinâmica e forma.

Da cidade imperial planejada de Pequim à vitrine do dinamismo econômico de Shanghai, indo à Chengdu, a “China de verdade” em Sichuan, às zonas especiais de Shenzhen e Hong Kong, esta última que não é bem China. Nos próximos artigos veremos particularidades de cada uma delas em uma viagem ilustrativa sobre o urbanismo chinês.

Série Especial Urbanização na China

#1 – Introdução

#2 – Pequim

#3 – Shanghai

#4 – Chengdu

#5 – Hong Kong – Parte 1

#6 – Hong Kong – Parte 2

#7 – Shenzhen


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