Reavaliando a política habitacional: o acesso à moradia através da infraestrutura
Imagem: Palácio do Planalto/Flickr.

Reavaliando a política habitacional: o acesso à moradia através da infraestrutura

O Minha Casa, Minha Vida restringe o acesso a oportunidades, incentivado incorporadoras a desenvolver seus projetos em áreas distantes dos centros urbanos.

1 de novembro de 2019

O Programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) foi uma das principais bandeiras da política habitacional em nível federal dos últimos governos. O MCMV, que se configura através do financiamento de novas habitações populares, incentiva incorporadoras a desenvolver seus projetos em áreas distantes dos centros urbanos. Isto ocorre pois, em razão das métricas de desempenho considerarem apenas quantidade de unidades entregues, há um forte incentivo econômico às incorporadoras para construir longe dos centros urbanos, onde os terrenos são mais baratos. Isso significa que boa parte dos empreendimentos estão distantes de boas oportunidades de emprego e serviços básicos, assim como isolados das redes públicas de transporte de massa que, por natureza, não têm condições de atender áreas periféricas de baixa densidade urbana.

A situação social nos empreendimentos do MCMV, de forma geral, é desafiadora. Em um sistema misto entre financiamento público e construção privada, muitos moradores se tornam endividados, com risco de perder suas moradias. Outros sublocam irregularmente seus imóveis, evidenciando a dificuldade de controle da política. Muitas das comunidades, criadas de forma artificial, monofuncionais e pouco acessíveis, foram tomadas pelo tráfico ou por milícias, como no Rio de Janeiro, onde o Estado já não tem fácil acesso para provimento de serviços essenciais em diversas regiões. Ainda, alguns empreendimentos são usados como justificativa para remoção de comunidades informais já estabelecidas, ao invés de as autoridades públicas efetuarem trabalho mais sensível de regularização fundiária e urbanização. 

O MCMV também parte do princípio de que o principal objetivo é transferir o imóvel como propriedade, independente do lugar, tamanho e particularidade dos moradores, enquanto esta não deveria ser a única questão em jogo, conforme a nota pública da Rede Cidade e Moradia, assinada por dezenas de entidades e pesquisadores ligados às políticas habitacionais no Brasil. O programa também pressupõe que o déficit habitacional deve ser atendido diretamente por habitações novas, embora produtos novos sejam, via de regra, mais caros que produtos usados ou antigos. Em outras palavras, as moradias em regiões centrais que, com o tempo, desvalorizaram e se tornaram mais acessíveis, são candidatas potenciais para atender moradores de baixa renda. Além disso, segundo Alain Bertaud, ex-urbanista chefe do Banco Mundial e atual pesquisador sênior do NYU Marron Institute, em uma política habitacional séria não existem filas para conseguir uma habitação via alocação, mas sim um maior acesso dos moradores às unidades de mercado, permitindo maior liberdade de escolha do tipo e da localização do imóvel de acordo com as suas necessidades.

Assim, é interessante a iniciativa do governo atual de repensar a sua política habitacional sobre novas bases. A proposta de desenvolvimento habitacional em discussão pelo Ministério da Economia, propondo a utilização de imóveis inutilizados da União para empreendimentos que teriam um percentual de locação social, visa endereçar alguns dos problemas identificados, embora possivelmente seja insuficiente para atender o déficit habitacional de forma isolada. Apesar da estimativa entre 10 e 20 mil imóveis ociosos da Secretaria de Patrimônio da União, o Minha Casa, Minha Vida até agora entregou mais de 5 milhões de unidades e ainda estamos longe de resolver o problema da moradia. É preciso aumentar a acessibilidade ao mercado formal de moradia, permitindo um aumento drástico da sua oferta. A falta de acessibilidade à moradia surge em muitas cidades brasileiras através da restrição à produção imobiliária em centros urbanos, seja por barreiras geográficas inerentes à cidade, seja por barreiras legais municipais que ora restringem a quantidade de moradia produzida ora limitam o padrão formal de moradia produzida pelo mercado, incentivando a informalidade em padrões muito piores. 


Goiânia, cidade que possivelmente tem as menores barreiras em ambos sentidos, sem limites de construção nas áreas centrais e sem grandes barreiras geográficas, não coincidentemente tem um dos melhores índices de acessibilidade à moradia do país.


Goiânia, cidade que possivelmente tem as menores barreiras em ambos sentidos, sem limites de construção nas áreas centrais e sem grandes barreiras geográficas, não coincidentemente tem um dos melhores índices de acessibilidade à moradia do país: a razão entre custo de moradia e renda per capita é a mais baixa entre as grandes capitais e a cidade tem apenas 0,27% da sua população morando nos chamados “aglomerados subnormais”, comparado com 5,39% da vizinha Brasília, e cerca de 6% da população em nível nacional. Já o Rio de Janeiro, que restringe o desenvolvimento urbano nos arredores do Centro e na Zona Sul, onde estão concentrados maior parte dos empregos, e que ainda possui grandes barreiras geográficas tanto de morros como do oceano, é a capital menos acessível à moradia considerando o valor dos imóveis e a renda per capita, e conta com a maior população morando em favelas do país.

Políticas urbanas que influenciam na oferta de moradia local são definidas em nível local. No entanto, atualmente, as cidades que fazem a pior gestão de uso do solo e sua oferta imobiliária são aquelas que mais acabam necessitando de recursos federais para a sua infraestrutura ou moradia, com manchas urbanas espalhadas no território e altos índices de habitação informal. 

Assim, uma forma de política habitacional em nível federal seria condicionar repasses de recursos mediante comprovada boa gestão urbana em nível municipal, evitando o desalinhamento de incentivos de ambas partes hoje existente. Da mesma forma, mediante tal investimento em infraestrutura e urbanização, municípios estarão capacitados a permitir a ampliação da oferta à moradia em regiões centrais de forma sustentável, tanto construindo novas unidades como regularizando áreas informais existentes.

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  • As áreas centrais são especialmente problemáticas no que diz respeito a construções verticalizadas. Muita edificação antiga (e com fundação rasa) no entorno sendo que algumas protegidas por tombamento, o que limita bastante as opções de trabalho em termos de fundação.
    Isso sem contar a problemática no que diz respeito a vara de família e sucessões. Se um dos herdeiros der pra trás na venda da área visada pro empreendimento (muitas vezes querendo tirar vantagem no negócio), adeus.
    A acessibilidade para o maquinário utilizado na fundação e para a colocação do próprio material de construção na área a ser utilizada para o empreendimento é outro problema.
    Acaba sendo mais vantagem mesmo construir em áreas periféricas, não só pelo preço do terreno como também pela área disponível para o empreendimento e pela possibilidade de contornar os problemas logísticos que se teria em um centro urbano já estabelecido.

    • Em outras palavras: fazer do modo mais fácil, mais barato e o obter o maior lucro possível. Uma unidade habitacional de 36 m², de baixíssima qualidade, que custa, no muito, R$20.000,00 para o construtor (com preço de venda em 5 ou 6 vezes esse valor, no mínimo), e tudo isso com a iniciativa e aval do poder público…

    • Não se trata somente de construir acima das edificações já existentes. Temos muitos edifícios subutilizados, inutilizados e sob especulação imobiliária nas áreas centrais. O que faz com que a infraestrutura urbana também esteja subutilizada. É claro que sempre leva-se em conta as restrições econômicas do uso de alguns edifícios, mas sua coloção permaneceu rasa na discussão. É inegável que para as construtoras e incorporadoras é mais vantajoso construir sobre solo mais barato. A discussão sobre habitação social e déficit habitacional não pode estar restrita a questões técnicas, é justamente isso que ocasiona os problemas que enfrentamos atualmente, aqui, a tentativa é elevar o diálogo à atuação do estado num âmbito socialmente responsável acima de financeiramente vantajoso. Essa perspetiva é necessária e urgente.

      • Muitas das edificações desocupadas em áreas centrais não se encontram nessa situação por especulação dos proprietários. Há inúmeras situações que levam a isto como complicações de inventário, impedimentos ou dificuldades de venda decorrentes de imposições condominiais, e até mesmo impedimentos para alteração de uso decorrentes da legislação municipal de uso e ocupação. É incrível mas todas as alterações de leis de uso e ocupação, como as últimas feitas na cidade de São Paulo, focam apenas em regras para as novas construções e absolutamente não tratam das construções já existentes, que são a maior parte da massa construída na cidade, que precisa ser permanentemente mantida e readequada. Para obter sucesso a política de ocupação e reocupação habitacional de áreas centrais precisa atuar em várias frentes – legislação, assessoria legal e comercial, projeto arquitetônico, acompanhamento pós-uso.

      • Até mesmo porque o problema habitacional brasileiro deixou de ser uma questão técnica há muito tempo. Estudei arquitetura há 20 anos, e, como todo e qualquer estudante bem antes de mim, tinha também essa ilusão de que o problema era de ordem técnica, ou seja, que faltava ainda algo no domínio da arquitetura que resolvesse de vez o problema – eu mesmo enveredei nessa trilha, fazendo o meu TFG sobre técnicas construtivas para habitação de interesse social. Passados os anos, penso de modo completamente distinto. Se há algo para se fazer sobre isso é permitir que haja um mercado de habitações sem a interferência do poder público, onde preços sejam pura consequência de oferta e demanda, numa palavra: capitalismo.

      • Ana, obrigado pela leitura e pelo comentário.

        Os artigos do Caos Planejado tratam de temas específicos para permitir uma leitura mais acessível, o que não significa que nossa linha editorial não cubra o tema da moradia de forma mais abrangente.

        Seguem abaixo alguns artigos que podem ser do teu interesse dada a temática que você levantou:

        As previsões erraram sobre a decadência do Centro de São Paulo
        https://caosplanejado.com/as-previsoes-erraram-sobre-a-decadencia-do-centro-de-sao-paulo/

        De volta ao Centro
        https://caosplanejado.com/de-volta-ao-centro/

        Revivendo o Centro abandonado
        https://caosplanejado.com/revivendo-o-centro-abandonado-reviving-the-abandoned-downtown/

        Nem todo imóvel vazio é igual
        https://caosplanejado.com/nem-todo-imovel-vazio-e-igual/

        Chamo atenção que, embora ainda tenhamos vacância nas regiões centrais, no meu entendimento dada a depreciação e à propriedade pulverizada de muitos dos edifícios, dificultando a coordenação para sua renovação, muitas cidades, como São Paulo, já estão vendo um crescimento populacional significativo dessas regiões e a ocupação destes imóveis então acima da taxa de vacância do resto da cidade.

        Um abraço,
        Anthony

        • A cidade de São Paulo é uma exceção pelo fato de a mancha urbana ter se expandido até os municípios vizinhos de uma forma que os preços dos imóveis em grande parte da região metropolitana também ficaram pouco acessíveis financeiramente sem soluções adequada do ponto de vista logístico. A problemática da mobilidade urbana nesse contexto favorece o adensamento residencial na região central, ainda que essa área tenda muitas vezes a ser direcionada para construções de “alto padrão”, por questões de “custo de oportunidade”.
          Ironicamente, é justo por conta da precária mobilidade urbana que o centro paulistano vem sendo valorizado como alternativa dentro do contexto imobiliário.