Caminhabilidade, o que é?
Imagem: Mariana Gil/EMBARQ Brasil.

Caminhabilidade, o que é?

A caminhabilidade, em conjunto com a intermodalidade do transporte, é o que conecta a cidade e o pedestre ao direito a espaços abertos e acessíveis.

26 de maio de 2022

Desde o higienismo no início do século 20 ao macroplanejamento da urbanização nos anos 1970, o modelo de urbe visava à abertura de largas avenidas, que faziam a articulação entre bairros (centro e extensão) através dos transportes motorizados: a cidade sobre pneus. Este modelo de urbanização norte-americano, seguido pelas cidades brasileiras, privilegia a verticalização das edificações e os transportes individuais em detrimento dos transportes coletivos.

Embora ainda persista, tal pensamento baseado em infraestruturas viárias que suportem cada vez mais carros difere do que ocorre em sistemas já considerados bem sucedidos, como é o caso daqueles instalados em Amsterdã, Barcelona, Bogotá e Curitiba. Neles, prevalece a intermodalidade de transportes, consistindo em um sistema cambiável entre meios não motorizados e coletivos.

Os modais não motorizados — em especial o caminhar — agregam vantagens a quem os utiliza, pois aumentam a autonomia e a sensação de segurança, resultando em qualidade de vida. Em outro sentido, acrescentam também benefícios ao ambiente urbano, constituindo-se como meios dinâmicos. Considerando esses aspectos, buscamos elucidar alguns questionamentos relativos à noção de Caminhabilidade (Walkability, em Inglês) a partir da percepção de autores nacionais e internacionais, bem como apresentar um breve relato sobre o desenvolvimento histórico desse conceito.

De forma geral, a caminhabilidade, em conjunto com a intermodalidade do transporte, é o que conecta a cidade e o pedestre ao direito a espaços abertos e acessíveis. O ato de caminhar é cognitivo, depende de cada indivíduo e suas experiências e se enquadra às diferentes características antropométricas e sensoriais.

A cidade do automóvel x a cidade caminhável — evolução do pensamento no Brasil e no mundo

A presença de boulevares, avenidas largas e políticas urbanas voltadas à higienização e ao embelezamento da cidade evidenciam que as características físicas do espaço público nos séculos 18 e 19 configuravam uma dinâmica de exclusão. No século 20, entretanto, essa segregação atingiu o estopim, como ilustram as palavras proferidas em 1929 pelo arquiteto suíço Le Corbusier: “Precisamos matar a rua!”. De acordo com ele, o novo homem precisaria de um novo tipo de rua.

Assim, a ideologia modernista de planejamento urbano pregava que a rua era um lugar indesejável para o homem, e que as casas deveriam se opor a ela. O direcionamento das casas, nesse raciocínio, deveria conduzir a espaços internos, com áreas verdes cercadas e projetadas. A unidade do traçado urbano passou a ser a quadra (superquadra), e não a rua.

A velocidade dos automóveis passou a ditar o cotidiano, influenciando o aspecto da cidade por meio da construção de elevados (minhocões) e vias expressas, além da segregação socioespacial. Com a deterioração dos centros urbanos, teve início a dispersão da população para as áreas periféricas das cidades, configurando os subúrbios.

Na década de 1950, a jornalista norte-americana Jane Jacobs tornou-se referência em ativismo urbano, culminando na publicação do livro Morte e Vida de Grandes Cidades, em 1961Com críticas ao planejamento urbano modernista da época e com base em suas sensações acerca do espaço citadino, a ativista apontou circunstâncias para que as cidades permanecessem vivas a partir da criação de condições propícias para o uso da rua. A autora destacou a necessidade de existência de “olhos para a rua, olhos daqueles que podemos chamar de proprietários naturais”, referindo-se aos usuários da cidade.

Projeto Lower Manhattan Expressway
Projeto Lower Manhattan Expressway, combatido por Jane Jacobs, que visava construir rodovias expressas em Manhattan. (Imagem: Museu of the City of New York)

Na mesma direção de Jane Jacobs, o arquiteto dinamarquês Jan Gehl, na década de 1970, acompanhou o crescimento das cidades e desenvolveu ideias para melhorar os espaços públicos com referência na escala humana. Gehl declarou a importância da manutenção da cidade ao nível dos olhos, criada a partir de uma perspectiva mais atenta ao pavimento térreo dos edifícios e à minimização das distâncias nas ruas. O modelo de cidade concebido pelo arquiteto priorizava, em vez de linhas verticais, a divisão das ruas em grandes pistas.

Nos anos 2000, o geógrafo e urbanista catalão Jordi Borja afirmou que “o melhor urbanismo é aquele que cria espaços de intercâmbio”, estabelecendo uma comparação com grandes ruas muradas. Sua crítica se baseava na ideia de que os muros produzem calçadas desertas, esvaziando as ruas de sua função social.

Ainda em se tratando das dinâmicas de distribuição espacial das ruas, novas concepções emergiram no fim do século 20 e início do século 21, sobretudo na Europa. Ocorreu a mudança do foco no planejamento de tráfego, que passou a reconhecer a importância dos modais não motorizados, aumentando a variedade de instrumentos de projeto.

No Brasil, o planejamento urbano no século 20 caracterizou-se pela priorização do tráfego de veículos motorizados, principalmente individuais. As áreas centrais foram gradativamente perdendo valor devido ao espraiamento (expansão horizontal) da cidade. Esse fenômeno resultou em uma segregação urbana não só em termos espaciais, mas também socioeconômicos. Somente em 1997, a partir da criação do Código de Trânsito Brasileiro — CTB, que as calçadas começaram a ser vistas como partes integrantes do sistema de circulação.

Nesse sentido, a legislação municipal da maioria das cidades brasileiras define que a responsabilidade pela construção e manutenção das calçadas é do proprietário do lote adjacente, cabendo ao poder público apenas a fiscalização. Sobre esta situação, Anthony Ling afirma:

“Nesse modelo, o poder público tem uma economia de custo, pois transfere para a iniciativa privada parte da responsabilidade da gestão do espaço público. No entanto, juristas como Luíza Cavalcante Bezerra argumentam que é inconstitucional a cobrança da manutenção das calçadas diretamente pelos cidadãos, dada a obrigação jurídica de que isso seja feito pelo próprio poder público. […] A manutenção privada dá lugar a uma noção equivocada do significado de espaço público. Não é incomum vermos moradores e comerciantes tratando a calçada como ‘sua’, atacando verbalmente aqueles que ali permanecem sem a sua autorização, como se fosse propriedade de fato privada”.

Cabe pontuar que, em aspectos práticos, executar e manter uma calçada não é uma operação onerosa. Sobre essa questão, o portal especializado Mobilize Brasil, em parceria com a área de engenharia da empresa Pini, realizou um levantamento visando identificar o custo de construir uma calçada adequada em doze capitais do país. A pesquisa constata que a média brasileira está abaixo de R$ 100, considerando valores de materiais, mão de obra, taxas de administração das construtoras e impostos para a construção de calçadas de concreto em quadrados de 1,2 m × 1,2 m, ou 1,44 m².

Ainda sobre a legislação brasileira, em 2005 foi apresentada ao país a Política Nacional da Mobilidade Urbana Sustentável — PNMU, adotada pelo Ministério das Cidades. A medida incentiva a mobilidade urbana sustentável e universal a partir de ações articuladas entre a União, os Estados, os Municípios e a população. Suas diretrizes visam uma apropriação democrática da cidade e do espaço público, a partir de deslocamentos seguros, do transporte coletivo eficiente e do maior uso dos meios não motorizados.

Em 2012, por sua vez, surgiu a Nova Lei de Mobilidade Urbana (lei n. 12.587/12, de 3 de janeiro de 2012), que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana. Por meio de um caderno de referência nacional para a elaboração do Plano de Mobilidade Urbana, intitulado PlanMob, a norma trouxe aos diferentes agentes públicos a oportunidade de repensar as cidades ao priorizar os modos de transporte coletivo e não motorizados, bem como maior integração modal.

Segundo esta lei, o transporte não motorizado deve ter prioridade em relação ao motorizado, e as prefeituras têm a obrigação de garantir tal premissa. O mesmo diz o Código de Trânsito Brasileiro, em que a segurança de pedestres no trânsito deve ter preferência sobre a segurança de todos os condutores e passageiros de veículos, motorizados ou não. Ambas as normas, portanto, apontam na direção de uma organização espacial da cidade e do trânsito que parte de uma perspectiva humanista.

As diferentes visões aqui apresentadas sobre as dinâmicas estruturais e funcionais das ruas e do espaço urbano, seja pela concepção de autores renomados ou pelos tópicos presentes em normativas, demonstram que cada vez mais são necessárias medidas administrativas de planejamento e enfrentamento para minimizar as desigualdades e a segregação. Para tanto, faz-se desejável considerar o sentimento de pertencimento da população em relação ao espaço público, bem como sua vontade de usufruí-lo.

O pedestre, o modo a pé e a caminhabilidade

A definição da palavra pedestre no minidicionário Aurélio da Língua Portuguesa é: “que, ou quem anda a pé, ou está a pé”. Em outra definição, o arquiteto Jan Gehl afirma que o pedestre é aquele que tem “orientação horizontal, frontal, linear, e que anda no máximo a 5 km/h”. Deslocar-se a pé é, portanto, um modo de transporte. É, ainda, o modal mais democrático: não exige nenhum tipo de equipamento (com exceção das pessoas com mobilidade reduzida) nem o desembolso de dinheiro e, por muito tempo, foi a principal forma para se vencer as distâncias.

O arquiteto e urbanista italiano Francesco Careri, que traz à tona a ação estética do ato de caminhar, afirma que:

“O homem possuía uma fórmula simbólica com a qual transformar a paisagem. Essa forma era o caminhar, uma ação aprendida com fadiga nos primeiros meses de vida e que depois deixa de ser uma ação consciente para tornar-se natural, automática. Foi caminhando que o homem começou a construir a paisagem natural que o circundava”.

São vários os motivos que levam uma pessoa a caminhar, tanto relacionados ao transporte quanto ao simples ato de flanar: o deslocamento de um ponto de origem para um destino; o intercâmbio entre modais; a prática de exercício físico; lazer, ou mesmo como forma de protesto na cidade. Andar é um ato intrínseco à natureza do homem, e, portanto, é necessário desassociá-lo dos estereótipos ligados à marginalidade e à pobreza. Caminhar é, ainda, um ato intuitivo, como ilustram as palavras da ex-comissária do Departamento de Transportes da Cidade de Nova York (2007–2013), Janette Sadik-Khan:

“Ao contrário dos carros que transitam em uma rua, seguindo regras e vias específicas de tráfego, as pessoas são livres para caminhar em ambas as direções ou em linhas irregulares. Entre as bilhões de viagens realizadas a pé todos os dias, há relativamente poucas colisões, sem mencionar que as pessoas são capazes de caminhar em velocidades diferentes; param e interagem com a cidade sem precisar de faixas de rolamento de tráfego e ocasionar grandes congestionamentos. As pessoas sabem ‘ler’ a calçada, na qual há pistas não ditas — nem mesmo marcadas — pelas quais entendem intuitivamente”.

Times Square, Nova York
Times Square, Nova York. (Imagem: Chris Walts)

Para que a cidade seja planejada com foco nos modais não motorizados, a exemplo do modo a pé, é preciso compreender os componentes da estrutura física da sua rede de circulação. É necessário, ainda, que esta estrutura esteja o mais adequada possível aos seus usuários. Desta forma, as intervenções urbanas devem ter como objetivo o estímulo à opção pelo caminhar, priorizando espaços públicos de convívio mais perceptíveis à escala e à velocidade do pedestre.

Embora o conceito de caminhabilidade (walkability, andabilidade) venha sendo desenvolvido desde a década de 1950, as pesquisas sobre a qualidade dos deslocamentos de pedestres começaram a ganhar maior atenção nos anos 2000, com a realização da conferência internacional WALK 21, em Londres, na Inglaterra. Anos antes deste evento, em 1993, o político canadense Chris Bradshaw apresentou e avaliou em primeira mão o conceito, a partir da pesquisa nas calçadas do bairro onde residia, em Ottawa. Ele via na caminhabilidade um meio de restabelecer o sentimento de pertencimento das pessoas com as ruas de seus bairros. Para medi-la, criou um método com dez categorias:

1. Densidade de pessoas na calçada

2. Estacionamento de veículo na rua por residência (vias sem restrição de acesso)

3. Existência e quantidade de bancos (mobiliário urbano) por morador do bairro

4. Pesquisa: como são as condições de interação social? (reconhecer alguém, conversar etc.)

5. Pesquisa: idade em que é permitido que uma criança ande só

6. Pesquisa: avaliação feminina da segurança do bairro

7. Informações sobre o serviço de trânsito local

8. Quantidade de locais importantes (com significância) do bairro

9. Estacionamentos

10. Calçadas (quantidade e condições físicas)

Entre o conjunto de tópicos definidos por Bradshaw, duas abordagens bastante atuais devem ser ressaltadas: a relevância do espaço público para crianças e a avaliação das mulheres. Estes grupos, acompanhados ainda dos idosos, são os mais vulneráveis no ambiente urbano.

A partir desses marcos, tornou-se possível encontrar na literatura trabalhos que procuram definir, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, as características de um bom ambiente para se caminhar. Nesse sentido, o engenheiro civil brasileiro Roberto Ghidini pontua que a caminhabilidade é uma medida e também uma referência à qualidade de vida:

“Do ponto de vista conceitual, a caminhabilidade é uma qualidade do lugar; o caminho que permite ao pedestre uma boa acessibilidade às diferentes partes da cidade, garantido às crianças, aos idosos, às pessoas com dificuldade de locomoção e a todos.

Assim, a caminhabilidade deve proporcionar uma motivação para induzir mais pessoas a adotar o caminhar como forma de deslocamento efetiva, estabelecendo suas relações interdependentes com as ruas e os bairros. E, para tanto, deve comprometer recursos visando a reestruturação da infraestrutura física (passeios adequados e atrativos ao pedestre) e social”.

De maneira semelhante, Carlos Leite e Lincoln Paiva ressaltam as motivações para a construção de uma cultura de caminhabilidade, afirmando que este fenômeno transcende a infraestrutura. Para eles, este “é um processo que visa a descobrir por que numa determinada cidade as pessoas caminham mais e em outras, menos”.

Desta forma, compreendemos o termo caminhabilidade como a capacidade do espaço público de permitir o ato de caminhar. A partir deste entendimento, incluímos na denominação tanto atributos físicos e construtivos quanto sensoriais, que dependem exclusivamente da percepção de quem caminha. Já o Índice de Caminhabilidade Urbana descreve o grau de adequação desse espaço aos deslocamentos a pé, ou seja, o quanto as calçadas das cidades proporcionam aos pedestres um caminhar seguro, contínuo e confortável.

“O Índice de Caminhabilidade permite avaliar as condições do espaço urbano e monitorar o impacto de ações de qualificação do espaço público, além de informar em que medida favorecem ou não os deslocamentos a pé”.

A realização de avaliações de caminhabilidade ajuda a identificar e visualizar aspectos de influência na utilização das calçadas, tornando possível diagnosticar os problemas para melhorias pontuais imediatas, ou, nas palavras do arquiteto e urbanista brasileiro Jaime Lerner, “acupunturas urbanas”. Para Lincoln Paiva, os planos diretores das cidades brasileiras devem conter tanto orientações dos estudos de caminhabilidade quanto planos e metas a partir dos seus indicadores.

Diversos critérios podem ser utilizados para avaliar a caminhabilidade e a qualidade dos espaços na cidade. Jan Gehl considera que há quatro princípios que proporcionam uma melhor caminhada: vitalidade (urbana); segurançasustentabilidade e saúde.

Ria Hutabarat Lo, por seu turno, trabalha com cinco indicadores: Capacidade de Fluxo (busca identificar o melhor espaço para o pedestre e seu deslocamento livre); Conexões Multimodais (abrange pedestres, bicicletas, transporte público, transporte integrado e ordenamento do território); Senso de lugar e Estética (analisa a qualidade pedonal do serviço e a satisfação dos usuários com os lugares); Engajamento Cívico (supõe que a existência de níveis de envolvimento social pode ser útil como uma métrica de Walkability); e Saúde Pública e Vida Ativa (reúne indicadores que contribuem para o tratamento de doenças como obesidade e transtornos cardiovasculares, entre outras).

O planejador urbano norte-americano Jeff Speck considera quatro condições: Proveitosa, na qual os aspectos das atividades cotidianas devem estar próximos e organizados de forma que possam ser usufruídos/resolvidos a partir de uma caminhada; Segura, referente ao desenho urbano, no qual a calçada e a rua devem ser projetadas de forma a impedir/minimizar acidentes com automóveis; Confortável, segundo a qual a paisagem urbana deve ser atraente aos pedestres; e, por fim, Interessante, que aborda os sinais de humanidade presentes nas calçadas.

Essas quatro condições são uma forma de refletir sobre os dez critérios específicos chamados por Speck de “Os dez passos da Caminhabilidade”, listados a seguir: Pôr o automóvel em seu lugar (relegar seu papel correto); Mesclar os usos (dar propósito à caminhada e uso do solo misto); Adequar o estacionamento (correlacionar a disponibilidade e o custo das vagas); Deixar o sistema de transporte fluir (investir no transporte público); Proteger o pedestre (adequar e sinalizar as vias, com legislação e técnica); Acolher as bicicletas (expandir o alcance do pedestre); Criar bons espaços (equilibrar áreas abertas com locais de acolhimento); Plantar árvores (criar transição amigável entre automóveis e pedestres, capturar gás carbônico e reduzir temperatura do ambiente); Criar faces de ruas agradáveis e singulares (constituir fachadas ativas); e Eleger suas prioridades (não desperdiçar recursos em áreas que nunca atrairão pedestres).

Mais uma metodologia de avaliação da caminhabilidade é desenvolvida pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento — ITDP e denominada Desenvolvimento Orientado ao Transporte (TOD, da sigla em inglês para Transit Oriented Development). Esse protocolo tem o intuito de estimular o uso do solo misto e com maior densidade, incluindo distâncias reduzidas para facilitar os deslocamentos a pé e propiciar maior proximidade ao transporte de massa.

O TOD tem como base de sua tabela oito princípios essenciais, sendo eles: compactaradensar (relacionado ao entorno das estações de transporte de massa), conectar; usar transporte públicomisturar (relativo ao uso do solo misto), pedalarmudar e caminhar. A partir desses fatores, são medidas as características do desenho e planejamento urbano que podem ser observadas ou verificadas de forma independente e objetiva. A mensuração se dá na distribuição de cem pontos a 21 métricas, em que as aplicações das pontuações indicam as necessidades de implantação e os impactos de cada categoria.

Projeto Via Parque, em Caruaru
Projeto Via Parque, em Caruaru. (Imagem: Prefeitura de Caruaru)

Diante dos critérios apresentados nas diferentes metodologias acima descritas, é cabível apontar que a avaliação da caminhabilidade deve levar em conta o estudo in loco do espaço público analisado. Isto porque as percepções sensoriais em conjunto com a certificação da realidade edificada influenciam nas decisões técnicas de projetos a serem executadas.

Intrínsecos à caminhabilidade estão a acessibilidade e, consequentemente, o desenho universal. Segundo a norma técnica brasileira NBR 9050, que trata da Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos, Acessibilidade é:

“Possibilidade e condição de alcance, percepção e entendimento para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privado de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida”.

Para que tais premissas sejam cumpridas, faz-se necessário que qualquer área (pública ou privada) ou espaço (edificações) seja servido por, no mínimo, uma rota acessível, definida pela NBR 9050 como:

“Um trajeto contínuo, desobstruído e sinalizado, que conecta os ambientes externos e internos de espaços e edificações, e que pode ser utilizada de forma autônoma e segura por todas as pessoas. A rota acessível externa incorpora estacionamentos, calçadas, faixas de travessias de pedestres (elevadas ou não), rampas, escadas, passarelas e outros elementos da circulação. A rota acessível interna incorpora corredores, pisos, rampas, escadas, elevadores e outros elementos da circulação” (22).

Em vista dessa denominação, a NBR 9050 traz exigências para que seja sanado qualquer tipo de impedimento nos espaços, considerando iluminação, acessos, circulação, revestimentos, inclinação e desníveis do piso, entre outros aspectos. Dessa maneira, a norma visa garantir o mínimo de boas condições de acessibilidade e, principalmente, autonomia ao usuário do espaço público.

Nesse sentido, é necessário levar em conta o conceito do Desenho Universal, que para a NBR 9050 é a “concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem utilizados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva” (23). Visando acolher um grande número de pessoas, e evitar qualquer tipo de segregação, o desenho universal é definido por sete princípios: Uso EquitativoUso FlexívelUso simples e intuitivoInformação de fácil percepçãoTolerância ao erroBaixo esforço físico; e Dimensão e espaço para aproximação e uso. É com a aplicação do desenho universal que se propõe uma arquitetura e um design voltados para a diversidade da escala humana, garantindo, assim, a acessibilidade.

Quanto à macro e à microacessibilidade, é importante destacar que são caracterizadas como subdivisões da acessibilidade. A macroacessibilidade está relacionada aos deslocamentos realizados para atravessar e acessar a cidade, o que inclui diretamente o alcance do seu sistema viário. A microacessibilidade, por sua vez, pode ser entendida como parte da macroacessibilidade e compreende os deslocamentos diretos de acesso a edificações ou equipamentos — em geral, destinos finais desejados —, sendo em sua maioria realizados a pé.

Considerações finais

Diante do exposto, infere-se que valorizar o transporte coletivo e implantar sistemas integrados são, na prática, ações de grande incentivo aos modais não motorizados. A participação das pessoas na sociedade é diminuída quando existe dificuldade na realização das atividades cotidianas.

Portanto, o transporte público de massa deve ser gentil com o pedestre, estando equipado com tecnologias de acesso que auxiliem e diminuam o esforço físico do usuário. É o transporte público que conecta a cidade, permitindo o acesso de um maior número de pessoas aos centros e às partes mais distantes do cenário urbano.

 No mesmo sentido, é imperativo pensar na caminhabilidade, estimulando o uso do solo misto, com espaços bem interligados em vizinhanças densas. Este raciocínio constitui-se como uma ferramenta eficiente para o desenvolvimento de um bom espaço urbano, além de contribuir para o aumento da qualidade de vida na cidade.

Assim, dentro das premissas dos vários autores citados, é necessário que existam no espaço urbano três condições essenciais para que ele seja adequado e ofereça uma boa caminhabilidade: Segurança, Atratividade e Conforto. Todas essas questões visam encorajar o deslocamento a pé como a principal forma de mobilidade na cidade, sendo este o mesmo princípio da grande maioria das viagens por transporte coletivo.

O modo a pé é atingido diretamente pelas condições ambientais e físicas do desenho da cidade. É importante, então, que existam calçadas, e que elas não sejam concebidas como as sobras do espaço dos veículos. Estando destinados aos pedestres os percursos mais difíceis e menos diretos, emerge a necessidade de se pensar a rede de caminhada de forma integrada e como sendo a conexão principal entre as linhas de circulação urbana.

A carência de qualidade física das calçadas e a falta de segurança são dois elementos que desestimulam a circulação na cidade. Nesse sentido, o investimento na caminhabilidade por meio da atenção a esses aspectos resulta em melhorias para diversas áreas. Além de não ser um esforço oneroso, executar e manter uma calçada garante a preservação da mobilidade fluida no espaço urbano.

Dessa maneira, demonstra-se que a fiscalização e a exigência por parte da esfera municipal em relação às diretrizes da NBR 9050 é não só possível como indispensável, sobretudo às novas edificações. Esta norma funciona como garantia para que se alcancem as condições mínimas ao deslocamento autônomo.

Isto posto, consideramos que as cidades só estarão mais próximas de uma mudança real na forma de se fazer planejamento urbano se os gestores públicos e profissionais técnicos envolvidos levarem em consideração aspectos que priorizem os modos não motorizados, principalmente o caminhar. Esta operação deve resultar no adequado direcionamento das verbas para projetos e obras necessárias, condizentes com a realidade citadina. Somente estes procedimentos poderão assegurar que o planejamento urbano seja feito na escala humana, para pessoas.

Verônica Vaz Oliveira Barbosa é arquiteta e urbanista, especialista em Planejamento Urbano e Gestão de Cidades (Unifacs) e mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFBA, 2016).

Artigo publicado originalmente em Vitruvius, em novembro de 2021.

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