A cota não tão solidária do Plano Diretor de São Paulo

A cota não tão solidária do Plano Diretor de São Paulo

Considerado um marco do governo Haddad na metrópole, o texto traz uma série de mudanças radicais e inovadoras considerando o atual cenário do urbanismo brasileiro.

7 de julho de 2014

Esta semana foi aprovado o novo Plano Diretor de São Paulo. Considerado um marco do governo Haddad na metrópole, o texto traz uma série de mudanças radicais e inovadoras considerando o atual cenário do urbanismo brasileiro. Por se tratar de diversos temas não usuais para o cidadão leigo, cada um deles terá uma postagem específica, sendo o primeiro sobre a chamada Cota Solidária. Conforme descrito por Nabil Bonduki, relator do Plano na Câmara de Vereadores:

“Já utilizada em grandes metrópoles como Nova York, a cota [de Solidariedade] cria mecanismos de contrapartida na construção de empreendimentos de grande porte. A proposta é que imóveis acima de 20.000 m², destinem 10% do próprio imóvel ou de uma área na mesma região para a implantação de moradias de interesse social*, visando cumprir a função social da propriedade e da cidade.”

A solução busca uma solução de curto prazo para o déficit habitacional de população de baixa renda inserido no meio urbano que, diferente do programa Minha Casa, Minha Vida, produziu moradias de baixa qualidade nas periferias sem acesso à serviços e infraestrutura.

Ao mesmo tempo, busca um meio termo entre a produção imobiliária através do mercado e a já ultrapassada produção estatal de moradia ou o controle de aluguéis estabelecido pela ditadura de Getúlio Vargas, considerada a origem do surgimento das favelas em São Paulo.

Bonduki também está correto que a medida já é usada em grandes metrópoles: nos EUA a medida é chamada de “Inclusionary Zoning” (“Zoneamento Inclusivo”, tradução livre), e tem crescente popularidade na política urbana visto que parece resolver a questão sem grandes problemas.

No entanto, apesar de existir a desconfiança de alguns sobre a medida, há falta de textos que explicam que tipo de consequência negativa as Cotas de Solidariedade podem trazer. Ao contrário do entendimento de muitos, leis não são passes de mágica que produzem exatamente o resultado esperado pelo legislador, e esta não foge da regra. Shaila Dewan, escrevendo para o The New York Times, comenta sobre a implementação da Cota de Solidariedade em Nova York (tradução livre):

“Nova York precisa de mais de 300 mil unidades até 2030. Por outro lado, a Cota de Solidariedade, uma política celebrada que obriga incorporadores separarem unidades para famílias de baixa renda, produziu meras 2800 apartamentos de baixo custo em Nova York desde 2005.”

Exemplos como este se espalham nas cidades onde foram implementadas. Em Washington DC, por exemplo, as Cotas de Solidariedade foram aprovadas em 2006 exigindo incorporadores separarem 8–10% das unidades para interesse social em todos projetos com mais de 10 unidades. Até 2012 o programa de Washington não atingiu um único cidadão.

Neste caso, as unidades lançadas simplesmente não eram um produto atraente para o morador de baixa renda. Localizados em bairros de alto padrão, não necessariamente próximos aos seus empregos, as unidades tendem a ser de um ou dois dormitórios, ainda pequenos para famílias que normalmente dividem seu espaço de moradia.

Também há uma grande dificuldade de se conseguir um financiamento para essas unidades, dadas as altas taxas de inadimplência. No Brasil os financiamentos muitas vezes são subsidiados pelo poder público, como no programa MCMV, mas que terminam em graves problemas financeiros pela avaliação equivocada do risco do empréstimo.

Para implementar a política em larga escala também é necessária a fiscalização constante dos moradores, já que por serem imóveis de interesse social os moradores são obrigados a habitar aquele local para não correr o risco de perder o benefício. Para garantir que moradores não estão fechando acordos informais de sublocação é necessário uma vigilância constante do poder público, onde a privacidade e a liberdade do morador se tornam extremamente restritas para que ele esteja apto ao benefício.

É claro que, mesmo com esses problemas, aqueles que conseguirem unidades nas Cota de Solidariedade terão um prêmio praticamente de loteria, pois recebem construções boas a custos muito abaixo do preço de mercado.

Mas há prejuízos escondidos com a medida para permitir que isso aconteça. Ao contrário do que se espera, incorporadoras não arcam o prejuízo de construir unidades fora do preço e da demanda do mercado.

Assim, para permitir a viabilidade do projeto construindo essas unidades de interesse social, o preço das 90% das unidades sem controle de preços inevitavelmente terá que ser maior para compensar o prejuízo dos 10% “solidários”. Ou seja, quem banca a Cota de Solidariedade são todos que não ganham nessa loteria.

A regra também acaba incentivando o mercado a construir prédios mais elitistas para poder cobrar este acréscimo, tornando-os ainda mais caros e aumentando a desigualdade dentro do prédio. O caso do 40 Riverside Boulevard em Nova York foi emblemático, onde fizeram uma entrada para “ricos” e outra para “pobres”, explicitamente construídas para possibilitar a Cota de Solidariedade. Para evitar o desgaste com esse tipo de política, o mercado imobiliário acaba produzindo menos unidades habitacionais em geral.

Algumas construtoras já sinalizaram que o aumento das complicações levará a produção imobiliária para cidades adjacentes, como a região do ABC Paulista. Ainda, muitos incorporadores optarão por trocar projetos residenciais por comerciais, onde a Cota não se aplica, mesmo em áreas onde há demanda para habitação, piorando o déficit habitacional.

Hoje São Paulo tem o maior déficit habitacional do país: são 700 mil famílias em domicílios inadequados. Um estudo do SECOVI do ano passado estudando a implementação das ZEIS em São Paulo chegou a uma conclusão semelhante, de que empreendedores privados buscam áreas menos restritas e também tem receio da mescla de faixas diferentes de renda, temendo o chamado “contágio de mercado” e reduzindo o valor de venda dos imóveis de maior valor.

Copacabana: não foram legislações que deixaram o bairro "solidário", mas uma oferta expressiva de unidades.
Copacabana: não foram legislações que deixaram o bairro “solidário”, mas uma oferta expressiva de unidades.

Como já foi comentado em uma postagem anterior, a única maneira sustentável de promover a redução do custo dos imóveis de forma generalizada para resolver o déficit habitacional é de diminuir os custos de construção, e não aumentá-los com medidas como a Cota de Solidariedade.

Como já identificado pelo economista Ryan Avent, cidades que permitem que o mercado imobiliário produza oferta suficiente para atender à demanda tem os preços de imóveis reduzidos, tendendo a se aproximar aos custos de construção: o chamado “equilíbrio de mercado”.

O novo Plano Diretor anda vagamente neste sentido ao aumentar o potencial construtivo em algumas áreas, mas aumenta o custo da outorga onerosa (custo de construir acima da área permitida para o terreno) em até 25 vezes o atual, o que o SECOVI estimou que pode impactar em um aumento de até 70% no valor dos lançamentos dependendo da região.

A urbanista Raquel Rolnik contrariou esta posição afirmando que o valor seria absorvido pelo proprietário do terreno, não pelos compradores. No entanto, tanto as incorporadoras já são proprietárias de um grande estoque de terrenos — repassando o custo às unidades — assim como a outorga mais cara restringe a construção de mais unidades.

Fora algumas áreas que tiveram seu coeficiente de aproveitamento** aumentado para 4, ao longo dos chamados “eixos estruturadores” atendidos por estações de metrô, o Plano não trouxe grandes alterações nos potenciais construtivos de forma geral.

Para uma cidade global como São Paulo que enfrenta um enorme déficit habitacional o coeficiente é muito baixo, restringindo a oferta imobiliária nas regiões centrais (Hong Kong, Nova York e Seoul atingem coeficientes de 10).

Alguns podem pensar: “Mas mesmo assim o mercado imobiliário só construiria unidades voltadas para a classe média e acima, sem se importar com unidades de interesse social”. No entanto, com oferta suficiente de imóveis ocorre o fenômeno da filtragem, bem explicada pelo economista Matthew Yglesias:

“Se vários imóveis de luxo são construídos em uma cidade, pelo menos parte dos seus moradores vão abandonar suas casas anteriores de outros lugares da região. Estas casas agora encontram-se livres para serem ocupadas por pessoas um pouco menos ricas. Com o tempo mais edifícios de luxo aparecem no mercado e os edifícios de luxo de ontem vão envelhecer e ‘filtrar’ as classes sociais.”

Filtragem: o luxo não dura pra sempre.
Filtragem: o luxo não dura pra sempre.

A prova mais evidente desse fenômeno são os opulentes edifícios de centros históricos de cidades como Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo que, por estarem deteriorados, hoje são habitados predominantemente por moradores de baixa renda.

É necessário entender que não há solução mágica que consiga resolver este desequilíbrio entre oferta e demanda de imóveis de outra forma, que é contra-intuitiva do ponto de vista do regulador: solidariedade de verdade seria simplesmente permitir a construção de mais unidades para resolver o déficit habitacional. Sem que isso ocorra, temos apenas uma “Cota” de Solidariedade, beneficiando alguns mas gerando prejuízos escondidos sob uma maquiagem de benevolência.

* Moradias com preço determinado pelo governo (praticamente uma tarifa, por não ser determinado através do processo de mercado) e destinadas especificamente a moradores de baixa renda, que não tem o direito de vender ou alugar a propriedade por um longo período (normalmente algo como 10 anos).

** Relação entre área construída e área do lote. Ex: Se o lote tiver 1000 m² com coeficiente de aproveitamento 2 o proprietário poderá construir uma edificação de 2000 m² de área.

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  • O problema de “efeito em cascata” é que ele não atende de forma imediata quem de fato precisa de moradia, o menos rico ou mais rico, acabam invariavelmente não sendo o foco da questão, e sim a pessoa que mais precisa, que é a população de baixa renda. Em relação a diversidade de usos, não me expressei como deveria, na realidade, não fiz referência ao zoneamento, mas sim a diversidade populacional do espaço urbano, ricos dividindo espaços com pobres, pois a segregação do espaço da cidade é um dos principais motivos pela periferização e a falta de moradia digna, sem infraestrutura pública.

    • Oi Fabiola, desculpe a demora para responder, pois só vi o seu comentário agora!

      Você está correta: o “efeito em cascata” não atende de forma imediata quem, de fato, precisa de moradia. Isso porque a produção imobiliária deve ser constantemente permitida a atender a oferta por moradia, coisa que hoje já não ocorre. Ou seja, o fato de barramos ou encarecermos empreendimentos hoje apenas agrava o problema para o futuro, em um ciclo interminável onde o déficit de moradia só cresce. Este é o ponto que eu gostaria de reverter para que quem precisa de moradia fosse universalmente atendido.

      Abs
      Anthony

  • Infelizmente, esse seu argumento em relação a cota de solidariedade é absolutamente infundado. O fato das pessoas migrarem para outras localidades da cidade buscando uma moradia luxuosa não significa que ela iriam “abandonar” a sua moradia atual. Se você possui uma propriedade, mas tem condições financeiras para adquirir outra, você faz a aquisição de outra propriedade e abandona a sua antiga???? Não! Você vende, e no cenário imobiliário atual , não vende por pouco. Desde modo tente me explicar como uma pessoa que ganha um salário mínimo teria condições para efetuar uma compra dessas???
    Obviamente que a atual situação habitacional do País é crítica, mas esse não é o único motivo para se aplicar a cota de solidariedade, a mistura de usos dentro do espaço urbano é fundamental para criarmos uma sociedade justa e igualitária, devemos extinguir literalmente, essa imagem podre que a sociedade tem das pessoas que moram nas favelas.

    • Oi Fabíola, obrigado pelo seu comentário! Tomo a liberdade para responder.

      Sim, é certo que o proprietário vende o seu imóvel. Mas como imóvel usado e antigo, ele muito provavelmente terá uma valor por metro quadrado menor do que um imóvel novo que este morador atrás de uma moradia luxuosa agora comprou. Ou seja, o novo morador deste imóvel muito provavelmente será menos rico do que o seu morador anterior. Este efeito em cascata, com uma oferta imobiliária abundante, leva a uma ampla oferta de imóveis acessíveis para o resto da população.

      A situação habitacional no Brasil é crítica justamente porque não se constrói o suficiente para que haja este processo, sobrando muita gente de fora na “dança das cadeiras” do mercado imobiliário, com preços muito altos para conseguir lugar. A “cota de solidariedade”, no entanto, contribui para dimunuir o número de unidades no mercado como um todo, piorando o déficit que temos hoje.

      No entanto, não entendi o seu comentário sobre mistura de usos quanto à cota de solidariedade, pois o uso residencial é o mesmo nos casos que estamos tratando.

      Quanto à imagem das pessoas que a sociedade tem das pessoas que moram em favelas, concordo totalmente com você que isso deve ser mudado. Temos uma série de artigos no site defendendo exatamente isso:

      https://caosplanejado.com/um-pais-chamado-favela/

      https://caosplanejado.com/planejamento-regulacao-e-favela/

      Na seção “Moradia e Trabalho” tem muitos outros. Obrigado pela leitura, estamos sempre à disposição!