Por que precisamos de moradias de baixa qualidade? — Parte 2
Imagem: Susan Sermoneta/Flickr.

Por que precisamos de moradias de baixa qualidade? — Parte 2

Tendências históricas trazem evidências de que pessoas nascidas nas piores habitações de Nova York mudaram-se para empregos e casas melhores com o passar do tempo.

24 de fevereiro de 2017

Em um outro artigo no Caos Planejado, demonstramos quão importante é para cidades maiores ter lugares para pessoas de baixa renda viver. Sem a oportunidade de viver em cidades vibrantes e em crescimento, as pessoas empobrecidas não podem aproveitar os empregos e as oportunidades educacionais que as cidades oferecem.

Algumas pessoas podem ter interpretado de maneira pouco precisa o que dizia o outro texto a respeito da qualidade das habitações, uma vez que, de alguma maneira, seria possível compreender que viver em habitações de menor qualidade seria agradável. Muito pelo contrário: o texto afirma que, à sua época, pensões e habitações menos custosas foram um primeiro passo para imigrantes empobrecidos melhorarem suas vidas e que este tipo de habitação deveria ser legalizado.

Tendências históricas trazem evidências de que pessoas nascidas nas piores habitações de Nova York mudaram-se para empregos e casas melhores com o passar do tempo. As habitações de baixo custo do Lower East Side foram predominantemente o abrigo de muitos imigrantes alemães e irlandeses, e mais tarde de italianos e judeus do leste europeu. As ondas de etnias que dominaram estes apartamentos indicam que os imigrantes mais antigos conseguiram sair deste patamar mais baixo de habitação.

O Museu da Habitação de Nova York nos traz muitas histórias orais de pessoas que nasceram nestas habitações e se mudaram para viver vidas de classe média. No livro “The Power Broker”, Robert Caro nos traz a história de uma comunidade que teve de se mudar para fora do Lower East Side para residências melhores no Bronx:

“As pessoas de East Tremont não tinham muito. Refugiados ou filhos de refugiados de pequenos shtetles e de guetos do Leste Europeu, os judeus que na virada do século fugiram dos pogroms e da ira dos Tsars, se estabeleceram primeiro, nos Estados Unidos, no Lower East Side. O Lower East Side se tornou um lugar em que eles estavam atados pela família e amigos, linguagem e religião e um senso de pertencimento — mas de cujos alojamentos úmidos e miseráveis haviam desejado escapar, se não em benefício próprio de seus filhos, cuja tosse causava pavor aos pais que sabiam muito bem por que as ruas em que viviam eram chamadas de ‘quadras pulmonares’.”

Esta anedota ilustra as tendências demográficas de mobilidade ascendente na Nova York pré-New Deal. A comunidade de East Tremont demonstra a capacidade de pessoas de baixa renda para melhorar as dificuldades de suas famílias em menos de uma geração. Não só o povo de East Tremont salvou-se para deixar os alojamentos, mas de acordo com o relato de Moisés, todas as famílias da comunidade estavam economizando para enviar seus filhos para a faculdade, indicando maior mobilidade econômica para as crianças que nasceram na pior habitação de Nova York.

The Tenement's Museum: o Museu dos Imigrantes localizado no Lower East Side (foto: The Tenement's Museum/Creative Commons)
The Tenement Museum: o Museu da Habitação localizado no Lower East Side (Imagem: The Tenement Museum/Creative Commons)

Avaliar a vida dos moradores de baixa renda nestas habitações exige não comparar seus estilos de vida com seus contemporâneos de renda média, mas sim com suas próprias alternativas. A primeira escolha de ninguém é criar seus filhos em uma área conhecida como os “quadras pulmonares” por causa de uma alta taxa de tuberculose. Mas as pessoas que habitavam estas quadras estavam fugindo da fome, da revolução e do anti-semitismo violento. Enquanto nem a fome nem as habitações precárias são ideais, as pessoas que escolheram estas habitações fizeram o que achavam melhor para si e para a família, dado o que sabiam sobre as condições de moradia nos Estados Unidos, de seus compatriotas que viajavam antes deles.

Algumas pessoas sugerem que o apoio de habitação do governo é uma opção melhor do que baratas habitações privadas. Mas habitações governamentais tem uma história longa, ampla e universal de condições de vida decrépitas, pouca segurança e mobilidade econômica negativa. Na verdade, um Estado de Bem Estar suficientemente amplo para fornecer apoio à habitação a milhões de imigrantes teria aumentado drasticamente a oposição dos eleitores às portas relativamente abertas dos Estados Unidos. Entre 1840 e 1930, os Estados Unidos aceitaram mais de 400 mil imigrantes por ano. Se os dólares de impostos americanos fossem apoiar a moradia desses imigrantes, a realidade é que muito menos teriam sido autorizados a entrar no país. Ao invés disso, eles podem ter enfrentado circunstâncias muito piores na Europa do que os as habitações nova-iorquinas.

Permitir habitação de baixa qualidade no mundo de hoje não trará de volta as velhas habitações populares. Desde 1871, a renda per capita real aumentou em uma ordem de magnitude, e habitação de baixa qualidade hoje vai refletir essa mudança. Mas, ainda que dada a oportunidade de escolha, uma família síria poderia optar por mudar para um prédio de estilo dos anos 20 ao contrário de sua situação atual — se essa escolha fosse legal.

Aqueles que defendem um maior apoio do governo para a habitação parecem abraçar contas inexistentes do envolvimento público anterior e atual na habitação. Em vez de levar a uma melhor habitação para os pobres, o resultado mais comum foi a eliminação de residências consideradas inadequadas por pessoas politicamente influentes. Em 1934, em um projeto de remoção de favelas, uma das temidas “quadras pulmonares” foi demolida para abrir caminho para a Vila de Knickerbocker, habitação pública para trabalhadores de renda média. A taxa de aluguel era mais do que o dobro da de um prédio típico, deixando os moradores desabrigados em busca de habitações que eles pudessem pagar e que os reformistas eliminaram.

Charlie Gardner explica este processo no Old Urbanist:

“Talvez não seja demais dizer que o processo traumático de renovação urbana instigou uma filtragem involuntária, pois os moradores das áreas mais pobres foram literalmente deslocados — expulsos de casas condenadas — e forçados a buscar novas moradias dentre uma oferta diminuída de moradia. Essas pessoas provavelmente se mudaram para uma habitação de qualidade um pouco maior, mas a um custo mais elevado e, possivelmente, em condições mais abarrotadas também.”

Os primeiros projetos de moradias públicas em Nova York, Chicago e Los Angeles foram construídos para inquilinos predominantemente brancos, trabalhadores ou de classe média. Demorou até a década de 1960 para que algumas das primeiras habitações públicas tornaram-se acessíveis a pessoas verdadeiramente de baixa renda. Ao mesmo tempo, as cidades mudaram para a construção de habitação projetada para os seus residentes de baixa renda. O papel da habitação proporcionada pelo governo na criação de pobreza geracional é bem conhecido. Ao contrário das crianças nascidas nestas habitações mais precárias, as pessoas que vivem em habitação pública hoje tendem a não melhorar suas circunstâncias econômicas ao longo de suas vidas ou através de gerações.

Políticas habitacionais como zoneamento inclusivo evitam os problemas de pobreza concentrada. Entretanto, nunca vai colocar uma barreira substancial na necessidade de habitação acessível para os verdadeiramente de baixa renda. Além disso, exacerba problemas de acessibilidade para aqueles que não ganham a loteria. Os vouchers hoje providenciados baseados no perfil do inquilino são um passo na direção certa, longe dos horrores do derrubamento de favelas, da habitação construída pelo governo e de projetos de construção privada. No entanto, os US $40 bilhões que o governo federal gasta anualmente em habitação ainda deixa uma lista de espera de décadas em muitas cidades. Simplesmente permitir que donos de propriedades privadas aluguem unidades menores e de menor qualidade deixariam os vouchers irem mais longe e fornecer opções que são melhores do que a falta de moradia para aqueles que não recebem vouchers.


Este artigo foi originalmente publicado no site Market Urbanism em 31 de março de 2016. Foi traduzido por Cauê Marques, revisado por Anthony Ling e publicado neste site com autorização do autor. 

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