Como a indústria automobilística enriqueceu e estagnou Detroit
Imagem: Josh Garcia/Unsplash.

Como a indústria automobilística enriqueceu e estagnou Detroit

A cidade que atraía diversos empreendedores do ramo automobilístico, viu o surgimento de indústrias autossuficientes que minaram a concorrência.

1 de abril de 2019

Detroit já foi uma das cidades mais ricas dos Estados Unidos, símbolo da pujança da economia americana, conhecida como “Paris do Oeste” e como “Motor da América”. Atualmente abriga as indústrias da Ford e da General Motors, duas gigantes da economia americana e o que sobrou do mercado que mais aqueceu e consolidou o crescimento da cidade durante o século XX. Durante as décadas de crescimento, a cidade desenvolveu longas avenidas, abrigou diversas indústrias e foi palco de uma grande efervescência cultural, reunindo artistas, músicos e uma cultura vibrante.

Todavia, atualmente Detroit é conhecida como uma cidade abandonada, com altos índices de violência e desemprego, resultado da sua estagnação econômica que a acompanhou durante as últimas décadas. Boa parte da responsabilidade por esse quadro se dá pelas mesmas indústrias que outrora levaram a cidade a ser um dos locais mais promissores dos Estados Unidos.

Detroit e a idade de ouro

Detroit está localizada em um local estratégico ao norte dos EUA, tendo um acesso facilitado a uma série de hidrovias e situada em um grande entroncamento ferroviário dessa região, de modo que o intenso fluxo de mercadorias e de pessoas fez a sua população saltar de 21 mil para 206 mil habitantes entre 1850 e 1890.

Sua marca maior da indústria automobilística passou a ganhar força ao final do século XIX, quando a cidade se tornou uma espécie de Vale do Silício automotivo, unindo e atraindo diversos empreendedores e profissionais do ramo para a cidade. Eles buscavam, sobretudo, trocar experiências e somar forças para a viabilização do automóvel. Entre os empreendedores que estavam vivendo essa efervescência, havia um homem que mudaria a história da humanidade para sempre: Henry Ford.


Sua marca maior da indústria automobilística passou a ganhar força ao final do século XIX, quando a cidade se tornou uma espécie de Vale do Silício automotivo, unindo e atraindo diversos empreendedores e profissionais do ramo para a cidade.


De forma resumida, Henry Ford aproveitou o capital humano existente na cidade de Detroit e o uniu a um modelo de produção inovador que permitia fabricar carros a preço popular. Com isso, alcançou a hegemonia no setor automobilístico — especialmente pelo seu Fort T — e contribuiu para alterar as nossas cidades para sempre, com encurtamento das distâncias, popularização dos subúrbios e incentivo ao uso do automóvel pelo urbanismo, graças ao apoio da indústria de automóveis a essas políticas.

O dinheiro dos magnatas do automóvel levou a cidade a viver sua própria ebulição cultural, com música, arte e cultura vibrantes. A cidade enriquecida investiu em sua infraestrutura, sobretudo rodoviária, com criação de largas avenidas e grandes viadutos.

A estagnação de Detroit

Entre a década de 1950 e 2010, a cidade de Detroit perdeu mais de um milhão de habitantes, retrato da falta de oportunidades que uma economia engessada gerou aos seus moradores. Mas como uma cidade que experimentou um franco crescimento e enriquecimento decairia tanto? A resposta é a mesma que a consolidou como uma grande metrópole americana: a sua indústria automobilística.

Segundo Edward L. Glaeser, economista especializado em assuntos urbanos,  essa estagnação não se deu por acaso, mas foi resultado da criação e do estabelecimento de fábricas autossuficientes que minaram a concorrência e que “correspondem à antítese das virtudes urbanas de concorrência e conexão”, conforme destaca em seu livro Centros urbanos: a maior invenção da humanidade.

Além da queda de habitantes,  a cidade contou com outros números negativos. Atualmente, um terço de seus habitantes vive na pobreza. A taxa de desemprego alcança números alarmantes, abaixo de 30%, embora o prefeito e autoridades locais estipulassem quase 50% de desempregados em 2011. As taxas de criminalidade são igualmente elevadas, superando em até 10 vezes a cidade de Nova York em número de homicídios. Por fim, a renda familiar anual média na cidade é de 33 mil dólares, metade da média americana.

A cidade que antes contava com uma série de pequenos negócios do ramo automobilístico, competindo entre si, viu boa parte da sua atividade econômica ficar independente do setor industrial que ajudou a revolucionar. Com menor competitividade, estas empresas perderam incentivos para inovar.


A cidade que antes contava com uma série de pequenos negócios do ramo automobilístico, competindo entre si, viu boa parte da sua atividade econômica ficar independente do setor industrial que ajudou a revolucionar.


A longo prazo, essas ações levaram os carros americanos a perderem qualidade em relação a indústrias de automóveis de outros países. Isso gerou um efeito cascata que levou a prejuízos, demissões e fechamentos de fábricas.

Além disso, atraídos por mão de obra barata em países da Ásia, África e América do Sul, estas empresas abriram diversas indústrias em outros países, transferindo os empregos dos Estados Unidos para todo o globo terrestre. Sem ter a resiliência de uma economia dinâmica, a cidade estagnou e se colocou em um abismo difícil de ser escalado.

Outro ponto que devemos destacar é que a conexão humana — necessária para tornar a cidade de Detroit um local propício para o empreendedorismo do final do século XIX — se perdeu após a criação dos subúrbios na cidade e esvaziamento da região central, facilitada e incentivada pela indústria do automóvel e imobiliária. Com menos conexões, menos ideias são trocadas e menos negócios são criados, gerando um ciclo vicioso de estagnação.

Além disso, mentes brilhantes como a de Henry Ford eram desestimuladas a se estabelecer em Detroit, pois o setor estava engessado, monopolizado e procuravam agora outros locais mais amigáveis à abertura de novos negócios para se estabelecer, como o Vale do Silício.

Perspectivas para o futuro: cidades podem se reinventar

Antes de tudo, é importante reconhecer que cidades são organismos vivos. Ou seja, nascem, crescem, estagnam e, por vezes, morrem. Várias cidades ao longo da história humana desapareceram e isso pode ocorrer com qualquer uma. Entretanto, há também vários exemplos de cidades que renasceram depois de um período difícil.

Como caso mais emblemático, temos a cidade de Nova York, que passou por períodos conturbados, especialmente entre a década de 1960 e a década de 1980, em que índices de criminalidade aumentaram consideravelmente e a cidade vivenciou certa estagnação econômica, sobretudo na década de 1960.

Policiais patrulhando o metrô. Bronx, 1981
Policiais patrulhando o metrô. Bronx, 1981. (Imagem: Martha Cooper/Steven Kasher Gallery)

Nova York renasceu devido, sobretudo, à recuperação das virtudes urbanas que a fizeram florescer antes da sua estagnação em meados do século XX. Ou seja, competitividade e conexão humana, que floresceram principalmente a expansão dos setores financeiro e de serviço. Além disso, contou com uma política de segurança pública que virou modelo internacional. Atualmente, Nova York é uma das metrópoles mais seguras do mundo.

Detroit, por outro lado, fez pesados investimentos em infraestrutura, criando diversos projetos urbanos de moradia, lazer e mobilidade, um erro comum cometido pelas cidades que desejam revitalizar sua área urbana, conforme destaca Glaeser. Embora a cidade atravesse tempos difíceis, em que índices de criminalidade se mantêm altos, índices de desemprego e pobreza aumentam e a qualidade de vida da sua população cai cada vez mais, é importante mirar em exemplos de cidades que deram a volta por cima.

Ainda segundo Glaeser, é necessário que cidades como Detroit abracem suas virtudes de grandes metrópoles, olhem para o passado, analisem o que as fizeram se destacar e tentem criar condições para que estas características de concorrência, conexão e capital humano retornem. Dessa maneira, talvez a solução para a cidade de Detroit esteja em fortalecer e atrair estes vínculos, negócios e investimentos, conforme destaca Scott Beyer, criando assim sua própria renascença econômica, social e cultural.

Entretanto, nem tudo são notícias ruins para a velha Paris do Oeste. Assim como ocorreu em outros locais do mundo, os artistas têm ocupado partes da cidade abandonada de Detroit, fazendo com que surja um novo ciclo de conexão e pelo menos parte da cidade renasça. Sendo assim, a lição de Detroit também é válida para as nossas cidades e zonas urbanas degradadas: menos investimento em projetos urbanos faraônicos e mais investimento e incentivo a atração de capital humano, conexão e concorrência. 

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