Um elogio às pequenas tentações (e como o condomínio-clube pode acabar com elas)
Imagem: FLBorges/Flickr.

Um elogio às pequenas tentações (e como o condomínio-clube pode acabar com elas)

A influência de um edifício não se resume ao terreno em que está inserido: o desenho da sua relação com o espaço público que o envolve é fundamental para que uma cidade seja mais agradável, civilizada.

22 de junho de 2015

A influência de um edifício não se resume ao terreno em que está inserido: o desenho da sua relação com o espaço público que o envolve é fundamental para que uma cidade seja mais agradável, civilizada. Um condomínio-clube que fecha um quarteirão com muros, volta as costas dos prédios para a rua, tem apenas uma portaria para pedestres enclausurada e blindada está — para evitar eufemismos — destruindo a vida urbana que poderia haver em seu entorno. Ninguém se sente estimulado a andar sábado à tarde com o cachorro por uma calçada que é inteira acompanhada por muros. É um passeio monótono, chato e, portanto, vai ser vazio e perigoso.

A calçada talvez seja o espaço público mais importante da cidade. As nossas melhores experiências nas cidades mais interessantes do mundo geralmente acontecem nas calçadas. Quando pensamos em Paris — para citar uma quase unanimidade —, uma das primeiras imagens que nos vem à mente é um café na beira da calçada.

Mas não é só o café que esta imagem representa: é o quão agradável a vida urbana pode ser numa cidade que, em vez de um muro bege, oferece à nossa imaginação a aventura ou o conforto que podemos desfrutar caso, caminhando com nosso cachorro sábado à tarde, decidamos entrar no café – onde podemos nos proteger de uma garoa e sentar ao lado da Natalie Portman. Andar pela cidade ideal é uma sequência de pequenas tentações.

E o condomínio-clube — a ideia do quarteirão fechado por muros com “lazer exclusivo” — é a anti-cidade: ele esvazia as calçadas e, portanto, acaba com a graça de da vida urbana. Esse tipo de iniciativa deveria ser inibido por uma legislação eficiente.

Mas não é: bairros que foram muito verticalizados nos últimos anos (como Mooca, Vila Leopoldina, Barra Funda) receberam vários empreendimentos residenciais totalmente fechados e aprovados de acordo com a legislação vigente. E o problema desses conjuntos habitacionais não é só a indelicadeza da sua relação com a rua.

Mais grave do que isso talvez seja a consequência desses empreendimentos na organização da cidade: porque esse tipo de projeto não inclui, embaixo das suas torres, o pequeno comércio que ocupava as casinhas que precisou demolir — e que são fundamentais para que a vida urbana floresça completamente.

Um bairro sem uma mercearia, um barbeiro, uma farmácia, por mais central que seja geograficamente, é subúrbio: seus moradores vão precisar pegar o carro e ir ao shopping para comprar uma caixa de fósforos. Detroit, inspirada nesse modelo, faliu formalmente, e Alphaville, nossa clássica experiência em edgecity, está totalmente engarrafada.

Nossa atual legislação urbana, quando desestimula o comércio embaixo de edifícios residenciais (por exemplo, considerando o térreo inteiro como área computável quando apenas 30% do térreo é ocupado com uma loja), está trazendo o subúrbio para o centro da cidade.

A consequência será mais Morumbis e menos Higienópolis; mais calçadas vazias e menos Conjuntos Nacionais; mais trânsito e poluição e menos chance de, levando o seu beagle para passear sábado à tarde, reparar, pelo vidro que separa um pequeno café da calçada, que Natalie Portman está lá dentro sozinha com cara de triste.

Existe certa razão, portanto, na preocupação que algumas pessoas têm quando um empreendimento imobiliário gigante aparece em sua vizinhança. Mas o que pode prejudicar um bairro geralmente não é a verticalização ou o adensamento populacional que o empreendimento traz.

Manhattan é prova disso. O problema é a verticalização ou o adensamento mal pensados: com projetos desenvolvidos com pressa, que desconsideram o espaço público em seu entorno, não têm lojas no térreo e estão estufados de tanta vaga em seus subsolos.

Vagas que, aliás, precisavam — até o Novo Plano Diretor de São Paulo entrar em vigor — ser construídas obrigatoriamente em número mínimo: o que vai na contramão do incentivo à bicicleta e ao transporte público e encarece os imóveis na cidade. O Swiss RE Building, em Londres, um projeto do Foster + Partners, com 41 andares e mais de 40.000 metros quadrados de escritório, tem cinco vagas de estacionamento — para deficiente físico.

São esses tipos de anomalias que precisam ser revistas na Lei de Zoneamento de São Paulo. Não queremos morar numa cidade-subúrbio e a nossa legislação não pode considerar — ou, pior, incentivar — o carro como principal meio de transporte. Precisamos trazer as pessoas para mais perto do trabalho — e o trabalho para mais perto das pessoas —, evitando desperdício de tempo e dinheiro em locomoções diárias.

Pequenos comércios e serviços não podem desaparecer das ruas e se esconder na área de conveniência de shopping centers. O Novo Plano Diretor de São Paulo, recentemente aprovado, aliás, estimula esse uso misto — de residencial e comercial — em novos empreendimentos.

A Lei de Zoneamento ideal deve considerar um dos aspectos mais importantes da vida urbana: a civilidade. Em suas praças e parques, bares e padarias, uma cidade aproxima pessoas diferentes (em idade, religião, classe social, etc.), e faz com que, compartilhando o mesmo espaço, elas conversem, troquem experiências, se eduquem mutuamente — e se divirtam juntas. É por isso que a vida urbana é fundamental a uma sociedade civilizada: porque, aproximando pessoas, ela estimula a tolerância, o aprendizado e a imaginação.

Estimula a imaginação quando, por exemplo, um adolescente de 13 anos, voltando a pé da escola, cruza com um saxofonista indiano com o penteado de Kenny G exibindo seu talento na frente de uma livraria especializada em biologia. De uma vez só, uma nacionalidade, um penteado, uma música e uma matéria que ele julgava chata se apresentaram numa combinação inusitada, interessante — o que pode animá-lo a tocar sax, estudar biologia, deixar o cabelo crescer como o do Kenny G ou visitar a Índia. Um dos principais prazeres de se morar numa cidade grande é o de encontrar pelo caminho esse tipo de novidade inesperada: e na frente de um café, num sábado à tarde, olhar para o seu beagle e com ele decidir consolar, se não a Natalie Portman, alguém sozinho, triste — que acabou de fugir de um condomínio-clube porque desconfiava que o mundo era maior do que aquilo.

Este texto foi originalmente publicado na revista Contraste, editada pelos estudantes da FAU-USP, no segundo semestre de 2013.

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  • Não adianta atropelar as coisas em busca de uma rápida solução nada acontece fora do tempo de Deus, paciência, tudo irá acontecer no momento certo.

  • Perfeito!
    Também sou adepto aos espaços abertos. Perdemos em qualidade de vida e em segurança.
    É só observar as cidades onde a comunidade interage para ver que os meliantes não se arriscam. Afinal, a comunidade cuida um dos outros. Hoje, sequer conhecemos ou interagimos com nossos vizinhos. Vivemos enclausurados à mercê dos bandidos, mas quando visitamos cidades abertas, ficamos maravilhados com a limpeza, a interação e a segurança.
    Estamos no rumo errado! Sei disso porque sou analista e gestor em segurança.

  • Excelente reflexão. Atualmente vivo em Fortaleza-Ce. , e a cidade esta se tornando um retrato vivo do que esta descrito em seu artigo. Um conglomerado de condominios-clubes-fortalezas e casas de muros gigantes, sem cor, sem verde, sem comércio e sem vidas no seu entorno. Naturalmente já existe certa dificuldade de se andar a pé nas ruas por aqui, devido a calor e sol inclemente, hoje há um desestimulo pela falta de boas calçadas, a completa inexistência do comercio de rua, que por sua vez, tambem traz a insegurança. Do que aduanta edifícios e clubes privados arquitetonicamente belos, mas ruas feias, desertas e inseguras??? Viramos prisioneiros voluntários por nossa condição e pelo medo…