Estagnação destroi as cidades, não as preserva

Estagnação destroi as cidades, não as preserva

De volta de sua viagem a Cuba, Scott Beyer analisa o impacto de mais meio século de comunismo no tecido urbano e na preservação de seus prédios históricos.

8 de dezembro de 2015

Antes de fazer minha viagem a Havana, tinha curiosidade sobre como meio século de comunismo havia afetado o tecido urbano. Apesar das óbvias desvantagens da estagnação econômica, imaginei que teria pelo menos sido criada uma cidade charmosa. Afinal, há um punhado de cidades americanas e várias europeias que resistiram ao crescimento, modernização e ao automóvel, apenas para permanecerem únicas e históricas. Mas não levou nem 10 minutos de táxi para perceber que minha suposição sobre Havana era ingênua — mesmo que ela esteja presente entre os muitos bem-aventurados turistas desinteressados.

Na verdade, muito pouco de Havana foi “preservado”. Ao contrário, tudo na cidade é meramente velho, e pela pouca produção, nada é substituído. Isso se aplica aos automóveis, mobiliário, ferramentas manuais, equipamentos industriais — e certamente aos edifícios. Coletivamente, a estagnação destruiu o visual da cidade, com uma degradação física que se estende por quase todas as quadras, do centro à periferia.

Se eu pudesse definir em uma frase a aparência de Havana, depois de quatro dias de intensas pedaladas e caminhadas, a chamaria de Detroit Latino-Americana. O que já foi uma ótima cidade havia se degradado por causa de políticas públicas ruins, e sua deterioração difusa serve como uma constante lembrança disso. As casas em si, grandes e ornamentadas, são quase uniformemente inadequadas para padrões americanos. Se ainda não ruíram por completo, muitas estão no processo. Suas fundações são tortas, estão cheias de buracos e são marcadas por portas e janelas quebradas. Por causa de influências europeias, o estuque é um material comum, mas na maioria dos edifícios está se descolando, ou em alguns casos já desapareceu. Quase todos os edifícios estão sujos e encardidos, alguns cobertos por fuligem.

E isso é para as partes agradáveis de Havana. Quando comecei a pedalar para fora dos bairros centrais e adentrar as periferias, descobri que símbolos da riqueza passada desapareceram por completo, foram substituídos pelo que seria considerado barracões nos EUA. Essas estruturas geralmente são remendadas com madeira, sucatas de metal ou mesmo palha. Um senhor que morava no pobre bairro de Cerro, e com quem conversei longamente, descreveu a área como comparável a uma favela brasileira — o que achei pertinente. As duas fotos que tirei abaixo foram de sua varanda frontal, e retratam a estética dessas áreas.

Então como é morar e trabalhar nesses prédios? Como deve ser esperado, a decadência externa se permeia internamente. O melhor acesso que eu tive foi pela trabalhadora de 24 anos chamada Indira. Conheci Indira na minha primeira noite em Havana quando parei para pedir direções e, ao notar que ela falava bem o inglês, a levei para jantar. Ficamos amigos e ela me convidou para seu apartamento no centro, onde ela morava com seus sogros. O apartamento tinha aproximadamente 14 m² — muito menor do que uma típica microunidade habitacional da cidade de Nova York. Por causa do teto alto, a família havia construído uma tábua de assoalho na metade da parede que servia como segundo andar, e uma escada improvisada que levava para cima. O “quarto” de cima servia para seus sogros, enquanto Indira morava no cômodo principal abaixo, amontoado com a cozinha.

Mesmo num espaço tão pequeno, havia muitos defeitos. Não havia água quente, para cozinha ou banho. Na verdade, o chuveiro nem funcionava, indicando que a família tomava banhos precários. A descarga também não funcionava, então eles tinham que jogar água todas as vezes que usavam para acelerar a evacuação da água. O assoalho de madeira se envergava com o peso do mobiliário superior, aumentando a preocupação que entrasse em colapso algum dia. Quanto ao telhado — que vinha desmoronando há anos, foi consertado recentemente por um faz-tudo do bairro. Para pagar seu trabalho, a família teve que passar mais de um ano para guardar o equivalente a 150 dólares.

O segundo andar, em um piso de madeira.
 

Infraestrutura pública

Assim como as residências das pessoas estava desmoronando, a infraestrutura pública também — novamente, bem similar a Detroit. Os espaços públicos, quando bem usados, eram tipicamente cheios de lixo, com mato crescendo e objetos quebrados. Muitos parques, por exemplo, eram definidos mais por concreto do que por grama. As ruas, se sequer eram pavimentadas, estavam cheias de buracos e tinham drenagem tão precária que, depois de chuva, juntava-se grandes poças d’água.

Piscina da escola sem água.

Não tive tempo para analisar a infraestrutura subterrânea. Mas se for como todo o resto em Havana, presumiria que, também, está deteriorada. Por exemplo, ao contrário do que os guias turísticos dizem, a água de torneira de Havana é considerada não-potável pelos locais, e com frequência foi me oferecida água mineral para evitar doenças.

De fato, as baixas condições da área construída de Havana eram tão comuns que depois de um tempo parei de notá-las. Por exemplo, quando fui a um jogo de futebol num dia chuvoso num estádio renomado de Havana, sentei sob um teto que vazava constantemente, e fiquei ensopado junto com os outros fãs. Alguém imagina isso sendo tolerado numa arena nos Estados Unidos? Quando usei o banheiro mesmo em estabelecimentos em boas condições, descobri que não havia assentos nos sanitários, trancas para as portas nem ao menos (você já deve ter imaginado) papel higiênico. Os fundos das escolas tinham piscinas sem água e cestas de basquete sem rede. E por aí vai.

Assim é a vida em Havana. E logo percebi quão alegórico seria sair por aí procurando exemplos de “preservação histórica”. Tal preservação é uma noção estética do mundo desenvolvido, levada adiante por aqueles dispostos a pagar mais para ter uma atraente casa antiga reformada. Mas numa cidade de pobreza extrema, preservação são as etapas pragmáticas tomadas pelos moradores para prevenir que seus telhados desmoronem.

Parques preenchidos por concreto.
 

Então como Havana se compara… a San Francisco?

Você já leu um artigo que era tão errado que você quis pegar seu computador e atirá-lo pelo quarto? Essa foi minha reação a um artigo que li alguns dias depois de voltar de Havana, ainda com as condições medonhas da cidade em minha mente. Em 8 de junho, MarketWatch.com publicou um artigo pela colunista Therese Poletti chamado “New tech money is destroying the streets of San Francisco”. Poletti explicava que uma enxurrada de ricos executivos estavam se mudando para San Francisco, comprando casas antigas e alterando seus interiores.

É difícil encontrar uma casa Vitoriana à venda que ainda não foi limpada, seus detalhes arquitetônicos retirados. E proprietários ou investidores — procurando vender em boas condições no frenético mercado imobiliário para os “techies com dinheiro” — esperam apelar para os gostos (ou falta deles) dos atuais compradores, transformando casas antes charmosas em clones das lojas minimalistas da Apple, com detalhamentos em madeira, mobiliário embutido e vidro.

Essa tendência vem se desenvolvendo por anos, mas parece bem mais presente hoje em dia, com canteiros de obras se espalhando pela Bay Area e especialmente em San Francisco. Para completar a remodelagem frenética, prédios antigos parecem desaparecer em ritmo assustador.

Antes de abordar o argumento de Poletti, deixe-me clarear os registros: San Francisco não está sendo “destruída”. Posso testemunhar, por ter vivido aqui desde 2012 e visitado muitas outras vezes, que a cidade é uma joia arquitetônica que tem mantido sua singularidade desde que foi reconstruída depois do terremoto de 1906. Muito da cidade — incluindo a porção nordeste quase integralmente — é um oásis de construções nos estilos Italianate, Queen Anne, Craftsman e Art Deco. Esses edifícios se alongam pelas colinas ladeados por ruas limpas e bem pavimentadas, e jardins pequenos e paisagisticamente impecáveis.

De um ponto de vista puramente estético, San Francisco se sobrepõe a qualquer outra cidade grande americana, e possivelmente outras europeias.

A razão para isso tem dois lados. San Francisco tem fortes leis de preservação histórica que tornam difícil ou ilegal alterar diversas estruturas. Argumentos convincentes alegam que a cidade leva esse impulso preservacionista longe demais, em detrimento de prover novas moradias — apesar dessas leis ajudarem a manter seu caráter único. Mas o outro lado — que Poletti parece ignorar — é que a cidade tem forte presença da classe profissional com meios financeiros para manter essas casas.

Eu diria que esse segundo fator, muito mais do que o primeiro, tem preservado San Francisco. Você poderia sobrepor uma legislação histórica sobre Detroit que não mudaria muito. A Motor City está em decadência porque há seis décadas sofre êxodo populacional, e não deixou ninguém para trás interessado em preservar suas propriedades históricas. Mas a Bay Area foi inundada por dinheiro durante esse período e isso reforçou sua cultura de preservação. Manter uma casa histórica, afinal, pode ser uma empreitada cara que requer retirar assoalhos, substituir encanamento e outras mudanças estruturais. Geralmente são conduzidas pelas famílias instruídas e mais favorecidas que têm ou o dinheiro para financiar os reparos ou tempo para se dedicar. Talvez nem toda família preserva suas casas precisamente nas especificações de Poletti, e não os culpo, já que é muito difícil morar numa planta que foi desenhada um século atrás. Mas ela não deveria perder de vista que San Francisco se manteve assim por causa de sua atração demográfica.

Ao contrário, ela argumenta que esses grupos estariam “destruindo” a cidade. Ela então se empenha sobre o mesmo mito que se espalha sobre preservação histórica entre os progressistas urbanos, que parecem achar que riqueza e gentrificação trabalham contrários à preservação. Mas um olhar justo às cidades americanas mostra o oposto. Se alguém observa os bairros históricos mais notáveis — Back Bay em Boston; Capitol Hill em Washington DC; French Quarter em Nova Orleans; muito do norte de San Francisco; Manhattan e o norte do Brooklyn; o centro de Savannah; o centro de Charleston — uma característica em comum é que todos têm grandes riquezas residenciais. Enquanto isso, várias cidades — Baltimore, Philadelphia, Detroit, St. Louis, Cleveland — têm estruturas históricas semelhantes. Mas muitas delas se mantêm em decadência pelo declínio econômico.

O mesmo pode ser dito comparando Havana com a San Francisco de Poletti. Ambas têm arquitetura similar e planejamento, mas suas histórias econômicas divergem para destinos opostos. A rica e crescente San Francisco é uma cidade onde milhares de estruturas se mantêm num aspecto surpreendente, e onde pessoas lamentam alterações menores. O sistema de Havana produziu uma cidade que se desmorona, onde o desejo de preservação se perde num mar de necessidades básicas. Se Poletti realmente quiser ver uma cidade “destruída”, deveria visitar a última.

Prédios de habitação governamental.

Este artigo foi originalmente publicado no site New Geography em 28 junho de 2015. Foi traduzido por Lucas Magalhães, revisado por Anthony Ling e publicado neste site com a autorização do autor.

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