Jaywalking: como a indústria automobilística proibiu atravessar a rua

Jaywalking: como a indústria automobilística proibiu atravessar a rua

Você sabia que, nos EUA, o pedestre é proibido de atravessar a rua fora da faixa de segurança e pode ser multados por isso? Este é o chamado "jaywalking", considerado um crime em escala nacional.

16 de março de 2015

A ideia de ser multado por atravessar a rua no lugar errado pode surpreender turistas que viajam aos Estados Unidos, onde as origens do chamado jaywalking estão em uma campanha publicitária da indústria automobilística da década de 1920.

O código de trânsito da Califórnia diz: “nenhum pedestre deverá começar a atravessar em direção a um sinal de “Não atravesse!” ou símbolo de mão levantada. Também proíbe atravessar entre interseções controladas, o “jaywalking”.

No final de 2013, a polícia propôs uma ação conjunta para se fazer cumprir as regras em Los Angeles. Pedestres têm “retardado o transito e causado muitos acidentes e mortes”, um oficial da polícia de trânsito comentou. As multas variam entre US$ 190 a US$ 250.

Oficiais em Nova York responderam às diversas mortes de pedestres no mês passado com a emissão de milhares de multas por jaywalking. A campanha logo gerou controvérsias quando um imigrante chinês de 84 anos que tinha sido multado por jaywalking foi ferido na cabeça durante uma discussão com a polícia.

O cumprimento das leis contra jaywalking nos Estados Unidos é esporádico, frequentemente desencadeada por reclamações de motoristas sobre o comportamento de pedestres em um local particular. No entanto, já por muitas décadas, o jaywalking permanece ilegal em todas as regiões do país.

A primeira referência conhecida ao jaywalking é datada de dezembro de 1913, diz Peter Norton, um professor de História na Universidade de Virginia e autor de Fighting Traffic — The Dawn of the Motor Age in the American City. Naquele mês, uma loja de departamentos em Siracusa contratou um papai noel que ficava na rua com um megafone, bradando contra pessoas que não atravessavam a rua no local correto, chamando-os de jaywalkers.

“Eu não sei como isso chegou à Siracusa, mas na gíria do oeste um jay era uma pessoa do interior do país que era tagarela, que não falava nada de interessante, como o pássaro bluejay”, disse.

A cobertura jornalística rapidamente mudou, de forma que, em 1923, todos estavam culpando os motoristas, e ao final de 1923, todos estavam culpando o jaywalking.

A palavra foi primeiramente usada para descrever “uma pessoa do interior que vai à cidade e fica tão deslumbrado pelas luzes e vitrines que fica parando e obstruindo a passagem dos outros pedestres”.

O uso de jaywalking como um termo para ridicularizar os pedestres começou na década de 1920.

Um momento chave, diz Norton, foi uma petição assinada por 42.000 pessoas em Cincinatti no ano de 1923 com o intuito de estabelecer como velocidade máxima de fábrica dos carros em 40 km/h. Embora a petição tenha fracassado, a indústria automobilística entendeu o recado e se apressou em transferir a culpa das mortes dos pedestres dos motoristas para os pedestres.

Concessionárias locais contrataram escoteiros para entregarem folhetos aos pedestres, explicando o significado de jaywalking. “Esses escoteiros ficavam nas esquinas e, quando alguém fosse atravessar a rua, eles entregariam um desses folhetos”, disse. O folheto falava sobre o perigo e quão fora de moda tal comportamento estava, e que uma nova era estava por vir, onde não iríamos mais atravessar a rua dessa forma”.

Palhaços eram normalmente usados em paradas e passeatas para retratar os jaywalkers como um resquício do passado pré-motor, rural e ignorante.

Outro artifício era oferecer aos jornais locais um serviço grátis: os repórteres enviavam detalhes sobre os acidentes de trânsito locais a Detroit, e o Comitê de Segurança das indústrias automobilísticas devolvia um relatório completo da situação de sua cidade.

“A cobertura jornalística rapidamente mudou, de forma que, em 1923, todos estavam culpando os motoristas, e ao final de 1923, todos estavam culpando o jaywalking”, diz Norton

Prefeitura de Boston proibindo o jaywalking nos anos 1960.
Prefeitura de Boston proibindo o jaywalking nos anos 1960. (Imagem: cityofbostonarchives/Flickr)

Logo, ele comenta, os grupos de lobby automobilístico passaram a desenvolver os materiais de segurança para as escolas, destacando que “as ruas são para os carros e as crianças devem ficar na calçada”. Leis contra o jaywalking foram adotadas em muitas cidades ao final dos anos 20, e se tornaram a regra (norma) na década de 1930.

Nas décadas seguintes, a ascendência cultural do automóvel foi assegurada pelas campanhas publicitárias da indústria automobilística na promoção “do caso de amor dos norte-americanos pelo automóvel”. Os fabricantes os retrataram como a expressão máxima de liberdade pessoal, um elemento essencial do “sonho americano”.

Contudo, o objetivo principal dos planejadores e engenheiros de cidades passou a ser o livre e desimpedido tráfego dos carros

“Por anos os pedestres foram tirados da equação ao desenhar as ruas”, diz Tom Vanderbilt, autor de Traffic — Why We Drive the Way We Do (tradução livre, Trânsito — porque dirigimos da forma que dirigimos”.

“Eles nem mesmo apareciam nos primeiros modelos computacionais; e quando apareciam, eram como ‘obstáculos’ — obstruindo o tráfego de veículos”.

Isso tornou as cidades norte-americanas notavelmente hostis aos pedestres, diz Vanderbilt. Jaywalking tornou-se um “termo guarda-chuva”, normalmente mal interpretado, cobrindo muitas situações nas quais o pedestre deveria, na verdade, ter o direito de passagem.

Alguns países seguiram os passos dos Estados Unidos e impuseram medidas contra o jaywalking. A polícia chinesa começou a multar quem praticasse jaywalking no ano passado e, em Shanghai, ela obriga os pedestres a lerem o código de trânsito em voz alta. Pequim foi uma das cidades chinesas onde a polícia começou a multar pedestres no ano passado.

“Pequim foi uma das cidades chinesas onde a polícia começou a multar pedestres no ano passado.”

Em outros lugares, como Cairo ou Calcutá, uma falta de regras ou da sua aplicação, e a ausência de infraestrutura para pedestres significa que a única forma de atravessar a rua é seenfiando no meio do trânsito.

O Reino Unido está entre aqueles países onde o jaywalking não é uma ofensa. Mas a taxa de mortes de pedestres é metade daquela dos Estados Unidos, em 0.736 por 100.000 habitantes em 2011, comparado com 1.422 por 100.000 nos Estados Unidos.

Mesmo em Singapura, onde repetidas ofensas de jaywalking podem levar a multas de até US$ 1.000 ou seis meses de prisão, as regras são rotineiramente desconsideradas.

Placa informando que é proibido atravessar a rua fora da faixa em Singapura.
Placa informando que é proibido atravessar a rua fora da faixa em Singapura. Imagem: JPowers65/Flickr)

Houve resistência dos Estados Unidos também. Reportagens nos jornais da década de 1920 mostram que muitas pessoas estavam irritadas pelos folhetos distribuídos pelos escoteiros, diz Peter Norton.

Em Nova York, uma tentativa de acabar com a prática de jaywalking no mandato do prefeito Rudy Guiliani sofreu forte oposição dos oficiais de polícia, que disseram ter coisas melhores para fazer. Em Los Angeles, o cenário da obra de ficção científica distópica The Pedestrian de Ray Bradbury de 1951, pedestres e ciclistas estão cada dia mais presentes no centro da cidade.

Quando o Departamento de Polícia de Los Angeles publicou sua campanha contra jaywalking na sua página do Facebook, comentários acusaram a polícia de estar buscando uma fonte fácil de receita ao multar pessoas que tenham condições de pagar, além de deixarem de atender ocorrências realmente importantes.

“Eu adoro ver como as pessoas são multadas por jaywalking diariamente na esquina da 5a com a Broadway, embora eu não consiga chegar até meu carro sem receber… qualquer variedade de narcóticos pesados” — escreveu uma mulher em uma mensagem que acabou em “#prioridades”.

Defensores dos pedestres dizem que os motoristas são os maiores culpados pelas mortes e pelas lesões de pedestres, e que não existe evidência de que as campanhas contra jaywalking sejam efetivas.

Isso soa verdadeiro para John Moffat, um ex-comandante da polícia de trânsito de Seattle.

Seattle era conhecida por ser especialmente rígida quanto ao jaywalking, e Moffat calculou que cerca de 500.000 multas foram emitidas lá entre as décadas de 1930 e 1980. Contudo, ele verificou uma mudança de política em 1988 depois que um estudo na cidade mostrou que a maioria dos pedestres vulneráveis era composta de idosos, crianças e bêbados — e não jaywalkers. “São eles que acabam no cemitério ou no hospital?”, diz. “A resposta é não, e a razão é que a maioria deles é ágil e capaz de caminhar tranquilamente.”

Alguns pensam que o sucesso de diversos projetos para tornar as cidades norte-americanas mais caminháveis é um sinal de esperança para os pedestres.

Mas existe pouca experimentação com projetos mais radicais tais como espaços compartilhados, os quais buscam reduzir a velocidade dos veículos ao remover a distinção entre ruas e calçadas. As multas por jaywalking tendem a continuar, diz Ray Thomas, um advogado em Portland, Oregon, especialista em leis para pedestres e bicicletas:

“As pessoas que aplicam as leis de trânsito tendem a se identificar com a perspectiva do motorista”, diz. Sempre e quando ocorre um esforço para proteger os direitos dos pedestres, os oficiais sentem que também devem impor limites sobre eles.

“É a versão deles de ser justo”, diz. “A diferença é que nenhum jaywalker nunca acelerou e matou um motorista, e por uma simples questão de sobrevivência a maioria dos pedestres não atravessam na em frente ao carros”.

Aidan Lewis é jornalista da BBC. Este artigo foi publicado originalmente na BBC News em 12 de fevereiro de 2014. Foi traduzido por Matheus Pacini e revisado por Anthony Ling com autorização do autor.

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