Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Se pudermos pensar na água e mudar a direção em que estamos indo, teremos a chance de pensar em transporte público, espaço público e, sim, vida nas ruas.
15 de agosto de 2017Imaginemos que duas pessoas que viveram no passado de repente se materializem em São Paulo hoje. Uma vem de São Paulo mesmo, duzentos anos atrás. Outra vem de Roma, dois mil anos atrás.
Arrisco a dizer que o romano talvez se sentisse mais em casa do que o paulistano, mesmo tendo vivido muito tempo antes do outro. Como a Roma Imperial, São Paulo é um lugar onde multidões se movem pela cidade diariamente.
Talvez ele olhasse para o estádio Allianz Arena e reconhecesse os traços do Coliseu. Nossos prédios de apartamento mantêm a mesma configuração das insulae, só que mais altas, graças à tecnologia de construção e aos elevadores.
Ele talvez reconhecesse os símbolos de poder nos nossos prédios públicos – o Palácio do Governo, o fórum, etc. Enquanto isso, o paulistano estaria coçando os olhos e imaginando que talvez tivesse renascido em outro planeta, não na mesma cidade onde vivia em 1817, modorrenta, com escravos nas ruas e mulheres escondidas atrás dos muxarabis.
As cidades grandes têm problemas e questões semelhantes. Como diz a urbanista Regina Meyer, a escala muda a natureza do problema. Ou seja, o problema de alimentar e transportar 10 mil paulistanos em 1817 não é da mesma natureza do que alimentar e transportar 1 milhão de Romanos no século I ou 12 milhões de paulistanos em 2017.
As cidades têm seu apogeu e caem. Roma caiu de um milhão para 40 mil habitantes durante a Idade Média. As gravuras medievais mostram uma cidade vazia, em que os monumentos estão cobertos pelo mato, os aquedutos não funcionam e o mármore foi roubado. Detroit perdeu metade da população, com a perda de poder relativo das indústrias de automóveis da cidade. Hoje, há hortas nos lugares de prédios e os espaços vazios ficam como um recado a futuras gerações.
Há pouco mais de um ano, a cidade contemplou a possibilidade de não ter água para se abastecer e hoje parece ter se esquecido disso. Sem transporte, São Paulo colapsa. Mas, sem água, São Paulo acaba.
Se o problema não for encarado de frente, talvez não haja mais cidade. Mas imaginemos que sim, a sociedade vai se unir para pensar e agir para termos água. Teremos programas de recuperação de mananciais, plantaremos mais e mais árvores para reter água, vamos manter e expandir as áreas verdes.
Nossos esgotos deixarão de ser jogados no Pinheiros e no Tietê assim como os esgotos das cidades vizinhas, unidos num pacto metropolitano. Córregos serão reabertos e limpos. Preservaremos as áreas do município que ainda não foram urbanizadas, como a extensa e ainda preservada zona sul do município. Se fizermos tudo isso e se o regime de chuvas não se alterar catastroficamente, temos uma chance de seguir aqui em cinquenta anos.
A demografia diz que a população vai crescer mais um pouco – 800 mil pessoas – e depois estabilizar, em aproximadamente vinte anos. É um dado precioso. Significa que vamos precisar acomodar mais gente nos próximos anos.
Depois disso, estaremos num lugar em que as construções novas deverão ser menos importante do que as pré-existentes. Economicamente, isso talvez seja uma mudança no modelo de negócios da indústria imobiliária, que terá glebas menores à disposição. Isso é bom para a cidade.
Talvez consigamos mitigar gradualmente a influência negativa dos grandes condomínios que criam ambientes confortáveis para quem lá mora, às custas de muros e exclusão para o resto da cidade.
Do ponto de vista de infraestrutura, é possível que vejamos os tais carros sem motoristas andando por aí, mas o mais importante serão as estruturas de transporte público. Ao ritmo atual de obras e atrasos, nada faz prever que a cidade estará mais acessível. Esperamos que a esfera estadual se acerte com a municipal e a local para escolher melhor os projetos prioritários, evitando a situação grotesca de ter várias frentes paradas ao mesmo tempo.
A tecnologia poderá ser uma aliada importante, organizando horários e fluxos dos ônibus, metrôs e trens, mas ela depende de uma variável escassa até aqui: as métricas baseadas no conforto do usuário. Os contratos de licitação precisam valorizar essas questões que hoje ficam submersas: tempo de espera, conforto, lotação, estações mais confortáveis, com bancos e áreas de espera.
A preocupação com variáveis como essa seria, em si, uma das grandes mudanças num cenário promissor: a inserção da pessoa no centro das discussões. O fluxo, o “carregamento”, seriam conceitos que viriam em decorrência e não como pressuposto da discussão baseada na pessoa.
A cidade também vai mudar sua face. As mudanças advindas da tecnologia apontam para uma substituição muito rápida de modelos que eram quase um pressuposto da cidade: lojas físicas, escritórios físicos, estruturas físicas de negócios.
O comércio eletrônico deve seguir sua marcha implacável e reduzir em muito o número de lojas nas ruas. Isso terá um efeito tremendo sobre a qualidade da experiência urbana. Comércio que fecha significa ruas menos seguras, menos atraentes.
Talvez os alugueis baixem como consequência disso e talvez esses slots sejam preenchidos por mais e mais serviços. Mas, convenhamos, quantos mais cabeleireiros e hamburguerias a cidade consegue comportar?
Há uma inércia positiva na aglomeração de pessoas com talentos e aceso a capital e informação. A tal economia da informação talvez gere novos negócios e novas configurações. Mais gente vai publicar, pintar, tocar, programar. A economia de muitos para muitos se traduz no acesso virtual a informação. Isso leva à última questão, a discussão sobre o espaço público.
Por mais que as pessoas consigam ler, assistir filmes, conversar e pedir comida sem sair de casa, existe uma razão para imaginar que o espaço público ganhe ainda mais importância na cidade do futuro.
A razão é que a experiência física de estar na rua, de ver outras pessoas, de caminhar e ir a lugares é insubstituível. O filósofo e ex-ministro Renato Janine Ribeiro resume a questão: “Há no convívio físico riquezas únicas”[1]. Por isso, as manifestações são marcadas na rede social, mas acontecem na rua. Por isso, os parques estão e estarão lotados. Por isso, o carnaval, os grafites, a arte estão cada vez mais na rua.
Pessoalmente, acredito que o futuro possível da cidade tenha justamente esse mérito: o de conciliar a escala metropolitana dos problemas de água, transporte e energia com a escala cotidiana da vida das pessoas.
Vejo com esperança um futuro em que as pessoas lembrem de olhar para o entorno de vez em quando, tirando o olho de seus celulares (ou seus óculos de realidade virtual) enquanto se locomovem e descubram, maravilhados, que, entre todas as mudanças urbanas que viveram, a melhor parte da cidade ainda serão as outras pessoas.
1. RIBEIRO, Renato Janine. “Que saudade da presença…” Jornal O Estado de São Paulo, 3 de fevereiro de 2013, Caderno Aliás.
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