O que aconteceu com as gigantes cidades fantasmas da China?
Imagem: Spyfiles/Flickr.

O que aconteceu com as gigantes cidades fantasmas da China?

As novas cidades da China atentam contra princípios básicos da vida urbana. Impedem o desenvolvimento autônomo, baseado nas necessidades do dia a dia da população, ao mesmo tempo em que coíbem a criatividade espontânea oriunda de concentrações populacionais.

9 de junho de 2017

Quando pensamos em migração do campo para a cidade, imaginamos um movimento em busca de melhores condições de vida, motivado por necessidade ou pela ambição de um futuro mais promissor. Na China, no entanto, um processo de incorporação de mais de 250 milhões de pessoas a cidades, em apenas 20 anos, não pode ser inteiramente debitada na vontade e necessidade dos campesinos.

Como mostram documentários e livros recentes sobre o tema, o processo chinês é fruto de planejamento centralizado, meticuloso e agressivo. Os Congressos do Partido Comunista, a cada quatro anos, estabelecem metas plurianuais que delineiam as políticas públicas — o que, na China, significa pura e simplesmente o destino da nação — para o período de quatro anos à frente. Isto inclui as cidades, que, nas últimas três décadas, foram crescentemente ganhando espaço e intensidade na formulação de estratégias socioeconômicas no país.

Um dos exemplos práticos dessa força aparece em imagens que de vez em quando pipocam na mídia, mostrando enormes cidades aparentemente fantasmas. Nelas, um vazio toma conta de largas avenidas e praças megalômanas, plantadas em meio a envidraçados arranha-céus e projetos habitacionais idênticos.

O processo de urbanização do interior, inclusive, vem sendo paulatino e acelerado, sendo um dos principais fatores por trás do salto no investimento estatal entre ano passado e este na China. O problema, porém, é que a população rural local resistia à mudança, enquanto a expressiva parcela dos campesinos desejosos da vida em cidades preferiam as regiões litorâneas, já estabelecidas.


Dois anos depois […] a cidade já alcançaria a marca de milhões de habitantes, num ritmo de crescimento de cerca de 400 mil moradores ao ano.


A cidade de Ordos, na província da Mongólia Interior, era um desses casos, e foi retratada no interessante Terra de Muitos Palácios, em cartaz nesta semana no festival Ecofalante, em São Paulo e Rio de Janeiro. Construída em meio a um vazio nas laterais do Deserto de Gobi, foi resultado da descoberta de abundantes minas de cobre na região. O Partido Comunista Chinês, então, erigiu ali uma cidade-modelo, que deveria ser um marco para o novo estágio do processo de urbanização chinês — agora com mais intensidade nas províncias do interior, distantes das pujantes metrópoles às margens do Pacífico. A solução encontrada pelo Partido Comunista para preencher Ordos foi forçar a retirada dos campesinos, com o governo local passando a atuar intensamente, de casa em casa, para convencer os moradores da mudança para os apartamentos da cidades. O filme retrata o cotidiano de uma jornalista que trabalha no convencimento dos campesinos, ao mesmo tempo em que ajuda os novos moradores de Odeon a se ajustar às comodidades e convenções urbanas.

Dois anos depois das imagens de uma “Nova” Ordos vazia ficarem famosas em Shanghai e Pequim, a cidade já alcançaria a marca de milhões de habitantes, num ritmo de crescimento de cerca de 400 mil moradores ao ano.

O processo inclui a tradicional avalanche de propaganda pelo Partido Comunista, onde a vida de um indivíduo é instrumento para construção e desenvolvimento da nação — se esta o chama para uma missão, não há como recusar. A urbanização da China, avisam as telas imensas e os megafones espalhados pelas ruas, é parte desta empreitada. A televisão, controlada pelo aparato estatal, ocupa seu principal programa de notícias ressaltando as obras estruturantes e as tantas vantagens de se viver em um lugar promissor e “esperançoso”, como aquele.

Praça central de Ordos, China. Imagem por Bert van Dijk/Flickr.

O Prefeito (2014), outro documentário chinês, descreve processo similar em Datong, uma cidade também construída do zero no interior. Nesta, porém, o que existia antes era um vilarejo mais estabelecido, que foi levado inteiramente abaixo para erigir uma “metrópole moderna, civilizada, e ordenada”. Nesta, se acompanha o dia-a-dia de um prefeito “importado” para construir e colocar em prática o plano de urbanização determinado pelo Partido.

O resultado, em ambas as transformações, é impressionante, tanto pela velocidade como pela foto final. Grandes cidades erguidas em um curto espaço de tempo, pontilhadas por extravagantes esculturas glorificando o governo e os heróis da China e do Comunismo. Shoppings reluzentes e ocidentalizados. Avenidas largas e enormes (e vazias), cortando superquadras sem fim de conjuntos habitacionais idênticos.

Os apartamentos, pelo retratado nos documentários (e também em uma fascinante safra de filmes sobre a China contemporânea), são relativamente grandes e confortáveis (em Ordos, variam entre 70 e 105 m²), equipados e mobiliados com itens comuns a qualquer casa de classe média brasileira. Ainda assim, a imagem é árida; os blocos de prédios são, a grosso modo, idênticos, e, os bairros, caracterizados por superblocos com grandes espaços vazios, pouco dinâmicos e vivos.

Ainda que em cenas ano-luz distantes dos horripilantes conjuntos habitacionais da União Soviética, os bairros parecem desprovidos de dinamismo, ainda que sejam claros os esforços do governo em dotar as áreas de parques, centros comunitários e transporte. É notável a ausência de comércio ou de movimento nas cenas.

As novas cidades da China, em todo o seu planejamento meticuloso, atentam contra princípios básicos da vida urbana. Impedem o desenvolvimento autônomo, baseado nas necessidades do dia a dia da população, ao mesmo tempo em que coíbem a criatividade espontânea oriunda de concentrações populacionais.

A falta de diversidade no tecido urbano contribui para uma frustração constante na vida de milhões de chineses diferentes entre si, agravada pelo choque com a cidade, enquanto a estreiteza da centralização tira da cidade o seu fascínio. A cultura, construção humana por definição, não é refletida nos museus e esculturas que pouco dizem sobre a sociedade ali retratada — pois não foi a própria sociedade que frutificou as obras.

Além disso, Terra de Muitos Palácios expõe outro problema das novas cidades chinesas: a dificuldade de absorção da população rural no meio urbano. Todas as nações que viram, em algum momento, um grande fluxo migratório campo-cidade, passaram pelas agruras da transição, da adequação — incluindo o Brasil nos anos 1920 e 1960, por exemplo.

Cidade de Ordos, na China. Imagem por @CharlieXia/Flickr.

A China, porém, tem o agravante da escala e do método de transformação. Enquanto em outros países a migração é mais autônoma, motivada por razões pessoais, na China ela é dirigida pelo Estado. Vilarejos inteiros são forçados à mudança para os novos projetos. Famílias são realocadas após poucos dias de aviso, para obedecer as duramente perseguidos datas-limite estipuladas por administrações locais. Como a intenção é reocupar os vilarejos com outras atividades, os campesinos são movidos com toda a família, incluindo idosos. Isto tira uma das características de propulsão do desenvolvimento de cidades em crescimento, que é a alta proporção de jovens, com ambição e potencial, no fluxo migratório.

No país também vigora um peculiar sistema de cidadania segregada, onde habitantes do meio rural necessitam de autorização para poder migrar para as cidades. O sistema hukou impede que aqueles que não têm licença usufruam de bens públicos, de uma larga porção dos empregos estatais disponíveis (meio seguro de ascensão pessoal), e da rede de seguridade do governo em geral. Ainda que tenha sido flexibilizado nas últimas décadas, o sistema é herança do Maoísmo e, até hoje, motiva perseguições dentro do país, além de representar um efetivo mecanismo de controle. A recusa de uma licença a habitar as cidades meticulosamente planejadas é vista como uma afronta ao governo, e pode gerar represálias.

O caráter forçado e repentino da migração dificulta o processo de ajuste à vida na cidade, com muitos entrevistados visivelmente contrariados. Em muitos casos há absoluta ausência de habilidades compatíveis com o mercado de trabalho urbano, aumentando o desemprego estrutural. Ainda que isto possa ser mitigado pelos (diversos) programas educacionais do governo, o processo é difícil para os mais velhos, que se veem desprovidos dos frutos da terra. Num país com rede de bem-estar social limitada, onde a maior parte da população depende de suas poupanças e trabalho, isto pode gerar uma queda sensível na qualidade de vida desta população.

Além disso, conforme divulgado pela mídia asiática, as mega construções urbanas vêm sendo terreno fértil para ocultação de fortunas, corrupção, e lavagem de dinheiro na China. Movimentando somas imensas de dinheiro, as novas cidades são um retrato fiel do insulado modelo econômico chinês, onde estatais e semiestatais inibem um desenvolvimento autônomo.

As cidades chinesas podem chamar atenção pela modernidade, a escala, a pujança. Soluções para o estrangulamento vivenciado em tantas grandes metrópoles parecem emergir em novíssimos campos de obras. Com cidades construídas do zero e uma série de metas previstas em cada novo plano, em uma ciranda que se retroalimenta, as migrações cidade-campo devem atender às diretrizes. Ainda é muito cedo para avaliar, mas a superficialidade dos assentamentos urbanos no país podem significar uma série de rupturas sociais, em um modelo econômico insustentável.

A frase final do prefeito de Datong, no filme O Prefeito, resume bem a ópera: “não é como se tivéssemos alguma outra escolha”. Na China das grandes cidades, os acontecimentos (e os resultados) são cuidadosamente orquestrados.

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