Entrevista com Alain Bertaud: a evolução das utopias urbanas
Imagem: Flávio André - MTUR.

Entrevista com Alain Bertaud: a evolução das utopias urbanas

Leia nossa entrevista com o urbanista Alain Bertaud, sobre as ideias e utopias urbanas e suas evoluções ao longo do tempo.

8 de novembro de 2021

No episódio 48 do nosso podcast — que você pode ouvir na integra aqui —, tivemos o privilégio de receber o urbanista francês Alain Bertaud, para uma conversa sobre sobre as ideias e utopias urbanas e suas evoluções ao longo do tempo.

Alain Bertaud se formou em arquitetura em 1967 na Escola Superior Nacional de Belas Artes, em Paris. Durante a graduação, interrompeu seus estudos para trabalhar com licenciamento em Tlemcen, na Argélia, assim como na nova cidade projetada por Le Corbusier de Chandigarh, na Índia. Após a sua formatura, mudou-se para Nova York, onde trabalhou brevemente para o arquiteto Philip Johnson e também como urbanista da Prefeitura.

Sempre acompanhado da sua esposa, Marie-Agnes, também urbanista, Alain Bertaud mudou-se para o Iêmen, onde trabalhou planejando a rede viária para expansão urbana. Por quase 20 anos, ele foi um dos principais urbanistas do Banco Mundial, onde aconselhou governos locais e nacionais de vários países europeus, Índia, México, Rússia, África do Sul e China, onde teve a oportunidade de aconselhar o governo na abertura econômica durante o governo de Deng Xiaoping.

Atualmente, Alain Bertaud é um senior fellow no Marron Institute of Urban Management na Universidade de Nova York. Ele também é autor do livro “Ordem sem Design”, ainda sem tradução para o português.

Abaixo, transcrevemos nossa conversa, traduzida para o português, sobre as utopias urbanas.

Confira nossa entrevista com Alain Bertaud:

Anthony Ling: Alain, você estudou arquitetura nos anos 1960 na École des Beaux-Arts de Paris. Na época, Le Corbusier estava na casa dos 70 anos; a Carta de Atenas, considerado o nascimento do planejamento urbano moderno, é de 1933. Como o planejamento urbano modernista e Le Corbusier eram vistos em Paris e na academia de urbanismo na época em que você estava estudando?

Alain Bertaud: Bem, ele se tornou nos anos 60 parte do establishment, digamos. Sendo um dissidente nos anos 20 e 30, ele estava atacando o establishment, em particular a École des Beaux-Arts. Nos anos 60 ele era literalmente um deus. Quer dizer, ele era um guru, todo mundo o admirava, indo para suas conferências. A tal ponto que em 1963 os estudos de arquitetura eram muito longos, de oito anos, e sem nenhum diploma intermediário, aliás. Então em 1963 eu fico um pouco entediado com meu estudo na Beaux-Arts e resolvo tirar um ano, ou melhor, nove meses.

Fui trabalhar em Chandigarh, que estava sendo construída na época e era considerada com o melhor tipo de planejamento. Foi um pouco antes de Brasília. Chandigarh começou mais cedo. Então eu fui para lá pegando carona a partir de Marselha, o que não poderia ser feito agora. Cruzando Turquia, Irã, Afeganistão e Paquistão e chegando em Chandigarh. Lá trabalhei com um primo do Corbusier, Pierre Jeanneret, que estava lá.

Plano urbano de Chandigarh. Projeto em que trabalhou Alain Bertaud.
Plano urbano de Chandigarh, capital de Punjab, na Índia.(Imagem: Fundation Le Corbusier/ADAGP)

Se eu fosse um turista, provavelmente estaria convencido de que era uma cidade fantástica. Mas eu estava morando lá.

Eu precisava me encontrar com meus colegas, e tinha que ir ao escritório todas as manhãs. De repente percebi que todo esse conceito modernista de setores autônomos, com uma área comercial no centro, não funcionava de fato. Não só o planejamento mas a arquitetura, com o que chamam de brise-soleil — cortar o Sol com uma laje de concreto, se tornada um radiador. A poeira, antes da monção, se acumula nessa laje e o vento a sopra para dentro da sala. Tudo estava errado.

Brise-soleil de Chandigarh, onde trabalhou Alain Bertaud
Brise-soleil no edifício da alta corte de Punjab e Haryana High Cour, na cidade de Chandigarh. (Imagem: Fernando Stankuns/Flickr)

Quando eu estava com meus colegas e queríamos ir a um restaurante tomar um drink, ou até mesmo comprar uma roupa, íamos para uma área de favela. As pessoas que estavam construindo Chandigarh tinham construído uma favela porque não tinham dinheiro para morar em Chandigarh. Isso para mim foi uma revelação, de toda a teoria de Corbusier que lia e admirava e achava racional. Na época, a utopia era funcional, algo tem que ser funcional. A forma deve seguir a função e não devemos ter ornamento nem nada, a função, em si, é a coisa.

Isso foi uma utopia e percebi que não funciona, não dá para planejar uma área comercial e decidir que tipo de loja vai ter lá e onde vai estar. De certa forma, as pessoas que abrem uma padaria ou restaurante têm mais informações do que os urbanistas, eles sabem onde abrir os seus negócios. E é por isso que abrem nas favelas, não só porque é mais barato mas porque há liberdade de localização.

Chandigarh, onde trabalhou Alain Bertaud
Moradores jogando uma partida de críquete. Ao fundo, o prédio da Assembleia de Chandigarh. (Imagem: Lian Chang/Flickr)

Eu assisti a duas palestras do Corbusier lá e o achei extremamente amargo e negativo, aliás. Ele era um homem muito difícil. Então essa era a atmosfera na época. Também se dizia que, se você acredita que tudo tem que ser racional, é claro que você tem sua própria racionalidade. Como um francês do século 20, você pensa que a racionalidade é universal e que você deve impô-la a outros que não a tem.

Um pouco mais tarde veio Philip Johnson, Mies Van Der Rohe e o estilo internacional que, novamente, é a racionalidade e que é universal. Não deveria existir um planejamento arquitetônico específico para o Brasil, China ou Índia. É como a matemática, por exemplo, estamos todos usando a mesma matemática. Então a ideia era de que o planejamento seria como a matemática.


Anthony Ling: Alain, você mencionou que, lá atrás, o Le Corbusier, pelo menos quando estava começando, estava desafiando o mainstream. Qual era esse mainstream antes e como essas ideias eram vistas em Paris? Por exemplo, Solly Angel menciona sobre, digamos, o planejamento urbano clássico. O Comissioner’s Plan em Nova York, Cerdà’s, expansão em Barcelona. Até a reforma de Haussmann em Paris. Como essas ideias foram percebidas quando você era estudante e quais eram seus pensamentos naquela época?

Alain Bertaud: Achávamos que eram obsoletos. O que, de certa forma, é um pouco complexo. Porque, por um lado, morávamos em Paris e a admirávamos. Quando você anda por Paris, você encontra muitas coisas interessantes. E, ao mesmo tempo, quando Corbusier diz que queremos destruir a rua, a rua deve desaparecer. A ideia era tão radical que era atraente. Embora seja um absurdo completo, é claro. Principalmente quando você mora em Paris quando, por falta de zoneamento, você encontra uma padaria e um salão de beleza e uma galeria de arte totalmente misturados. E é isso que torna Paris tão atraente, a variedade.

Estranhamente, acho que as pessoas gostam desse anti-establishment, algo revolucionário. O establishment ainda era bastante poderoso, inclusive na École Des Beaux-Arts, mas eles elogiavam Corbusier porque suas ideias era muito popular entre os jovens. Então elogiavam mas faziam uma espécie de art-déco, e no planejamento praticamente a continuação da ideia de Haussmann ou Cerdà, principalmente Cerdà.

Então havia essa contradição. Claro que Corbusier jamais aceitou Chandigarh e sua possível influência em Brasília, nem construiu uma cidade, não teve sucesso no planejamento urbano, realmente. Exceto na habitação pública, onde o governo abraçou suas ideias. Precisamente porque as pessoas que vivem nela não são os clientes. O cliente, quando você constrói uma nova cidade, são os funcionários que estão lhe dando contratos. Não são as pessoas que vão morar na cidade. Portanto, não há feedback.


Anthony Ling: Eu notei, tendo estado em Paris, que os subúrbios parisienses com moradias públicas e a expansão da área metropolitana de Paris são radicalmente diferentes de Paris e provavelmente têm muita inspiração em Le Corbusier.

Alain Bertaud: Sim, isso mesmo, porque o governo interveio. Não acho que haja uma adesão do setor privado à Corbusier. É sempre do setor público, porque de alguma forma Corbusier pedia normas e uniformidade. E isso é muito atraente para os funcionários públicos. Eles aprovam contratos e se você tem normas é muito mais simples. Mas a vida não é simples.


Anthony Ling: E quanto a Haussmann em Paris, talvez hoje? Existe uma visão consensual sobre o que foi feito em Paris? E qual sua opinião? Vi você falando que, sem o que ele fez, talvez Paris não pudesse ter sobrevivido.

Alain Bertaud: Isso mesmo. Você sabe que em uma cidade grande você precisa de mobilidade e, antes de Haussmann, Paris ainda era uma cidade medieval em grande parte. Para se ter uma ideia — havia muito poucos estudos sociológicos — mas se você leu os romances de Balzac, ele descreve a habitação, em 1830, uns 20, 30 anos antes de Haussmann. Ele descreve muitos bairros, ou pessoas morando em alguns bairros. Então você vê que eram realmente favelas, no mesmo sentido que a favela de Londres descrita por Dickens. Mas o problema não era a moradia mas sim se locomover pela cidade. E acho que Haussmann resolveu isso de certa maneira.

Mas se você comparar Haussmann a, digamos, Robert Moses, em Nova York, a vantagem de Haussmann é que ele fez uma operação imobiliária, não de infraestrutura. Ele não cavou boulevards apenas para remanejar o trânsito, como você faz com uma rodovia. Foi inteiramente financiado através da venda de terrenos em ambos os lados do boulevard ao setor privado. Então pegou-se dinheiro emprestado do setor privado através do mercado imobiliário. O que também acho que é a grande diferença em relação à Brasília.

Brasília não foi financiada pelo imobiliário, foi financiada pelo contribuinte brasileiro. A Paris de Haussman foi financiada por pessoas que compraram terrenos adjacentes ao boulevard, e existia um valor reconhecido pelas pessoas. É uma grande diferença se comparado a moradias públicas construídas pelo governo nos subúrbios. Portanto, o charme de Paris, de certa forma, é que ao longo desses boulevards, o que foi construído foi inteiramente movido pela demanda, embora o bouleverd em si fosse de cima para baixo, obviamente. Mas o que foi construído em ambos os lados do boulevard foi impulsionado pela demanda.


Anthony Ling: Você mencionou Moses e talvez possamos passar para o seu período em Nova York. Você diz que chegou em 1968?

Alain Bertaud: Isso, em janeiro de 1968.


Anthony Ling: Acredito que foi o ano em que Jane Jacobs deixou Nova York para se mudar para Toronto.

Alain Bertaud: Sim, ela foi julgada por desordem, ou algo assim, e acho que precisou pagar uma multa, e daí ela se mudou para o Canadá aquele ano. Na época, sua luta estava muito nos noticiários de Nova York. Existia um jornal que já desapareceu que se chamava The Village Voice, mas todo mundo que era mais progressista, ou que estava na universidade, pessoas com mais ensino, o lia, além do New York Times. The Village Voice era realmente a voz de Jane Jacobs na época.


Anthony Ling: Seu trabalho “A Morte e a Vida das Grandes Cidades Americanas” é de 1961, “A Economia das Cidades” é de 1969… Então ela já estava escrevendo sobre suas ideias no The Village Voice. Ela já era uma influência nos círculos de planejamento urbano? Você leu os seus livros na época?

Alain Bertaud: Não, porque ainda não haviam sido publicados. Eu os li quatro ou cinco anos depois. Acho que ela escreveu seu livro quando se mudou para o Canadá, se bem me lembro. Eu não me lembro. Mas eu lia sobre ela e era mais anti-Moses do que pró-Jacobs, digamos.

Acho que a maioria das pessoas se familiarizou com a teoria de Jane Jacobs cerca de 10 anos depois. Claro que qualquer pessoa que morava no Village ou perto dele, o Greenwich Village, e a ideia de que uma rodovia vai cruzar o Washington Park é… Isso não era uma operação imobiliária como com Haussmann, mas uma operação de infraestrutura. A ideia era basicamente transferir caminhões e carros de, digamos, Nova Jersey para Long Island.

A ideia de uma rodovia como essa poderia se justificar se fosse subterrânea porque daria valor aos dois lados, por exemplo.

Projeto Lower Manhattan Expressway
Projeto Lower Manhattan Expressway. (Imagem: Museu of the City of New York)

Mas digamos que você corta um tecido urbano existente com uma rodovia, você terá uma diminuição no valor dos imóveis. Você corta Manhattan em duas e, provavelmente, a um quilômetro ao norte e ao sul da rodovia, você terá um tecido urbano semi-morto porque todas as ruas seriam becos sem saída no meio de Manhattan.

Em Manhattan há uma continuidade. Existem alguns centros como Greenwich Village, Midtown ou Wall Street, mas esses estão ligados por uma continuidade, não são autossuficientes. São vetores que vão de Wall Street ao Harlem. Se você a cortasse, seria como cortar um membro do seu corpo, algumas partes morreriam. Então o custo real dessa rodovia, se fosse justificado em termos de mobilidade, seria enorme porque você teria essa desvalorização nos dois lados. A área que perderia valor, pelas minhas estimativas, seria de cerca de um quilômetro em ambos os lados. E Manhattan em si, sendo dividida em duas, também perderia valor. Você ainda vai ter uma fragmentação do mercado de trabalho pela dificuldade de ir e vir.


Anthony Ling: Em muitas grandes cidades brasileiras, vimos essas vias expressas urbanas terem exatamente esse efeito. Há algumas discussões hoje de demolir algumas delas, então é um tema muito próximo da nossa realidade.

Alain Bertaud: E, para minha consternação, descobri que às vezes o BRT tem o mesmo efeito. Pude notar isso em parte de Curitiba, mas ainda mais em Bogotá. Se você olhar os imóveis dos dois lados do TransMilenio em Bogotá, verá que é sempre um valor imobiliário muito baixo. É o equivalente a ter uma rodovia.

Isso pode ser resolvido por alguma mudança no desenho urbano, é possível. Mas, do jeito que está, lembra um pouco do projeto de Robert Moses.

O BRT obviamente se ramifica para os moradores ao redor, então ele tem um lado positivo, transportando muitas pessoas por um preço barato. Mas a questão imobiliária não se resolve no BRT, incluindo algumas regiões de Curitiba.


Anthony Ling: Muitos dos BRTs que temos aqui são realmente muito largos e, para cruzá-los, foram construídas passarelas de pedestres que não são muito amigáveis.

Passarela da Estação Merck do BRT do Rio de Janeiro
Passarela da Estação Merck do BRT do Rio de Janeiro. (Imagem: Subprefeitura da Barra e Jacarepaguá)

Alain Bertaud: Sim, e isso poderia ser resolvido, suponho, com design urbano. No meu livro, eu não trato de design urbano — o livro já está longo demais como está — mas acho que é uma parte importante, uma parte complementar. Novamente, um parque como o Washington Square é muito eficaz, embora seja relativamente pequeno, com quatro hectares. Muito eficaz porque é um bom design. Mas há parques maiores que não são muito eficazes por não serem acessíveis, ninguém vai lá. O design, assim, é uma parte muito importante do planejamento e do uso do solo em geral.

Washington Square Park, em Nova York
Washington Square Park, em Nova York. (Imagem: BeyondDC/Flickr)

Anthony Ling: Com certeza. Então, Alain, voltando para Nova York e Jane Jacobs. Você mencionou suas percepções hoje sobre o efeito dessas vias expressas que passam pela cidade. Naquela época, no final dos anos 1960, 1970, você trabalhava na prefeitura de Nova York?

Alain Bertaud: Meu primeiro trabalho foi com o arquiteto Philip Johnson. E foi uma experiência incrível porque foi no Edifício Seagram, construído por Mies Van Der Rohe. É certamente um dos melhores arranha-céus de Nova York, em termos de design.

Para mim, vindo de Paris, nunca tinha estado em um prédio de oito andares. Não havia arranha-céus na França na época. Arquitetos na França naquela época queriam passar uma impressão de serem boêmios embora fossem empresários como todo mundo. Então se vestiam como o Che Guevara, essas coisas, e de repente acabei com Philip Johnson.

Philip Johnson estava sempre vestido com os melhores ternos italianos. Dentro do escritório, você encontrava uma escultura de Giacometti na entrada, uma tapeçaria de Picasso, outra de Miró. Foi incrivelmente diferente.

Mas rapidamente achei muito chato, embora parecesse muito bom no meu currículo de arquiteto. Porque tinha esse negócio de “guru”, exatamente como com Corbusier. As pessoas idolatravam Philip Johnson e ele era um cara interessante. Muito espirituoso, mas acho que ele não tinha a menor ideia de nada, francamente. Então foi muito frustrante trabalhar lá.

Depois de uns cinco ou seis meses, comecei a conhecer as pessoas, graças à cultura americana. Como estrangeiros, não conhecíamos ninguém, mas fomos rapidamente convidados por todos os tipos de pessoas. E assim estabelecemos uma rede de contatos. Acho que tínhamos uma rede maior de amigos em Nova York depois de seis meses do que em Paris depois de cinco anos. Então, encontrei um emprego no departamento de planejamento urbano municipal. Foi a época do prefeito Lindsay e dos Panteras Negras e do Black Power.

Nunca me disseram isso, mas acho que fui contratado por causa do meu sotaque francês. Eles estavam desesperados para dialogar com a comunidade negra, mas havia uma, digamos, falta de confiança entre o establishment branco e a comunidade negra. E descobriram que eu era um bom intermediário. Eles não tinham certeza de que eu era branco e não conseguiram me colocar em uma caixa por causa do meu sotaque. Então foi muito mais fácil para mim me relacionar lá. Então, primeiro trabalhei ao lado da prefeitura, no departamento de planejamento no centro da cidade, depois mudamos para um escritório no Harlem.

Aliás, tentando vender para a comunidade um projeto completamente absurdo. Um projeto idealizado por professores do MIT: a idea era continuar a Park Avenue até o Harlem e construir um arco sobre a ferrovia que fica sob a Park Avenue. Em seguida, mover os pobres para este novo prédio em ambos os lados da Park Avenue. A ideia na época era muito comum em todo o mundo, se você construiu casas muito boas para pessoas pobres, então o problema está resolvido. Você erradica a pobreza apenas construindo boas moradias para eles.

Na época, o Harlem tinha muitos problemas, o crime e o vício em drogas eram incríveis. Basicamente, muitos prédios em ambos os lados da Park Avenue, Lexington e Madison, foram abandonados e usados ​​apenas por viciados para uso de drogas.

Então não é construindo novas moradias que se resolve esse problema do crime. Na verdade, teria piorado porque para se comunicar entre as duas partes do Harlem — Harlem leste e Harlem oeste —, você teria que passar por baixo deste arco que era ainda maior, mais largo. Então você teria um pequeno túnel e túneis não são muito bons em uma área com muita criminalidade e viciados em drogas.


Anthony Ling: Acho que nessa época Robert Moses já estava saindo da prefeitura.

Alain Bertaud: Sim. Ele nunca esteve na prefeitura, ele nunca foi eleito. Mas ele era muito poderoso, nas palavras de Robert Caro, o “Power Broker”, era exatamente o que ele era mesmo sem ser eleito, porque tinha tantas conexões com a indústria da construção, indústria rodoviária e os políticos. Nem tudo o que ele fez foi negativo, a polícia, por exemplo, depois Jones Beach, foram coisas válidas. Mas a rodovia para ir a Jones Beach tinha pontes muito baixas, para evitar o tráfego de ônibus e que a população mais pobre “bagunçasse” as praias.


Anthony Ling: Você mencionou que estava na prefeitura e alguns desses projetos poderiam ser vistos hoje como um pouco absurdos. Você mencionou que quando esteve em Chandigarh já teve um, digamos, primeiro despertar.

Então, quais foram seus pensamentos na época? Como estava evoluindo sua visão sobre o planejamento urbano e como você via a maneira como eles planejavam Manhattan na época?

Alain Bertaud: Foi um pouco como uma continuação de Chandigarh, de certa forma. Quando trabalhei pela primeira vez neste projeto no Harlem, construindo este arco e usando direitos de potencial construtivo ainda havia meu lado arquiteto. E arquitetos gostam de construir coisas, especialmente coisas novas, que parecem diferentes. Então, primeiro eu pensei “Isso é ótimo! Este é um grande projeto.” E, novamente, quando você mora no lugar, percebe, por exemplo, a dificuldade de atravessar o bairro sob a ferrovia que cruzava o Harlem. É um lugar perigoso, as pessoas urinavam lá. E meu projeto vai triplicar a largura deste túnel. Então você percebe que não gostaria de cruzar isso. Que o que parece, como arquiteto, ser um grande projeto, de sair em revista, é uma coisa terrível quando você está vivendo aquilo.

Então comecei a investigar, principalmente quando ainda estava no centro, durante o meu intervalo para o almoço. Ia a determinado lugar na área de Wall Street e tentava entender como as pessoas que estavam a pé se movem pela cidade.

Quando você sai do metrô e tem que ir para o escritório, existem várias alternativas de percursos. Por que você escolheria um caminho em vez de outro? Então comecei a seguir as pessoas e anotar em um mapa o que elas estavam fazendo, e notei que às vezes elas não pegavam a rota mais curta e entravam na rota mais atraente. Com mais diversidade de estabelecimentos, onde havia mais lojas, mesmo que eles não a visitassem.

Para mim, essa visão de pedestre do urbano foi muito importante, e que costumava ser completamente negligenciada pelos planejadores urbanos. Por exemplo, Philip Johnson construiu uma biblioteca para a NYU em Greenwich Village. O bairro é interessante, tem diversas lojas e restaurantes, mas a biblioteca é uma parede em branco, pedra calcária vermelha muito bonita, mas que de repente fica chato.

Então não estou dizendo que na biblioteca você deva ter um espaço para um café ou algo assim — talvez possa. Mas o contato entre o espaço privado de uma quadra e a rua deve ser o mais transparente possível. Não deve ser uma fortaleza. Acho que é isso que é interessante e, de certa forma, você mencionou: sim, eu era crítico em relação ao que meus colegas estavam fazendo.

Inclusive a Marie-Agnes, minha esposa, na época em que estava também na prefeitura, mas ela trabalhava dando incentivos para fazer uma praça como o Edifício Seagram, falo disso no meu livro. Realmente, a praça do Edifício Seagram é um sucesso, um sucesso de design urbano, é maravilhosa. Mas você não pode regular um bom design. Assim que o regular, você o mata.

Praça do Edifício Seagram
Praça do Edifício Seagram, citado por Alain Bertaud. (Imagem: Robert Ostmann/Flickr)

Por exemplo, na 6ª Avenida, a ideia de que todos os novos arranha-céus sejam como o prédio Seagram, com uma praça. Mas se todos os prédios têm uma praça, não há praça, é apenas uma avenida mais larga.

Aí o advogado toma conta, já que, já que a praça é um espaço privado, se alguém quebrar a perna lá ou qualquer coisa, é o prédio o responsável por isso, não a prefeitura, podendo ser processados. O advogado então convence o arquiteto a deixar essa praça o mais hostil possível para que haja o mínimo de gente possível.

Mas há uma lógica nisso, não é apenas uma conspiração ou má vontade, há uma lógica nisso. E você tem que entender essa lógica, por que as coisas não dão certo apenas por meio da regulamentação.


Anthony Ling: Perfeito, o exemplo da praça é excelente. Então, avançando talvez 10, 15 anos. Os livros de Jane Jacobs já foram publicados. Seu trabalho em torno de uma ordem emergente nas cidades é talvez um dos primeiros a serem escritos dessa forma. E para mim ressoa muito com o trabalho que você publicou recentemente, de uma forma diferente. O trabalho dela influenciou você na época?

Alain Bertaud: Sim, mas relativamente pouco. Depois de Nova York, fomos para o Iêmen, onde ficamos três anos. Portanto, no Iêmen, os livros de Jane Jacobs não eram acessíveis, embora tivessem sido publicados na época em que estávamos lá. De certa forma, o que Jane Jacobs falava eu havia observado.

Em Chandigarh, que a favela tinha mais diversidade do que a cidade planejada e coisas assim. Mas eu não tinha uma teoria por trás disso, era um pouco anedótico. No Iêmen, observei também a densidade. Na época as cidades no Iêmen eram completamente não planejadas, no sentido de que as pessoas estavam apenas agregando coisas.

Meu trabalho principal no Iêmen era realmente traçar novas ruas, porque a cidade estava crescendo tão rápido e não havia nenhum sistema. Então observei muitas coisas, como, por exemplo, que densidade diminuía quando você se distanciava da cidade. Para mim, essas eram apenas observações pessoais, idiossincrasias de cidades. E foi só quando fui ao Haiti e trabalhei com um economista urbano que percebi que todas essas coisas que observei eram, na verdade, economia urbana. Eles também as observavam, mas as mediam e construíam uma teoria sobre elas.

Alain Bertaud traçando novas ruas no Iêmen, 1970.
Alain Bertaud traçando novas ruas no Iêmen, 1970.

Isso confirmou e deu uma base teórica para coisas que eu tinha observado e achado positivo. E foi a mesma coisa com Jane Jacobs, em particular seu livro, The Economy of Cities. Acho que é neste livro onde ela fala também sobre a cidade turca construída em torno de reservas de obsidiana, então os empregos se acumulam e quando a obsidiana não é mais necessária, a cidade desaparece.

Mais uma vez, isso confirmou minha visão de uma cidade baseada no mercado de trabalho. Você começa com a obsidiana mas, se você não diversificar e a cidade não estiver particularmente bem localizada, então ela irá desaparecer.

Foi assim que eu adquiri aos poucos… não vou chamar de conhecimento acadêmico mas sim de conhecimento teórico de outras pessoas, observando com muito cuidado o que estava acontecendo no terreno. Aí eu achei uma convergência com isso.

E uma divergência total, claro, com a ideia de estilo internacional ou mesmo com grandes planejadores da época. Havia um grego chamado Doxiadis que construiu Islamabad e muitas outras cidades. Não sei se fizeram alguma coisa na América Latina, esqueci, provavelmente fizeram.


Anthony Ling: Havia alguns planos no Brasil, acredito que no Rio de Janeiro.

Alain Bertaud: Verdade. E esses eram realmente o tipo de coisa Corbusier, de certa forma. Uma racionalidade completa, construída sobre fórmulas sem muita observação de como as pessoas vivem em uma cidade. A ideia de que você tem uma rua comercial no meio de um bairro porque é a mais próxima de toda parte. Como se todo bairro estivesse completamente isolado.

Uma cidade é uma continuidade, uma rua é uma continuidade. De certa forma, Christopher Alexander tem uma compreensão melhor da teoria do que Doxiadis ou, novamente, a continuação dessa coisa da unidade planejada completamente independente e autossuficiente.

E Chandigarh era assim, tinha os setores que eram 800 metros por 1 quilômetro, ou algo assim. E todo o comércio ficava em uma pequena praça e algumas ruas no meio da quadra. Enquanto, de fato, o comércio prosperava onde as pessoas andavam. É bom estar desse jeito no centro para uma escola primária, mas não é bom para o comércio.


Anthony Ling: Alain, olhando para a linha do tempo, de utopias e ideias urbanas, vejo uma mudança de mentalidade, talvez começando com cidades-jardim ou modernismo, onde os planejadores urbanos começaram a tentar, digamos, organizar a forma da cidade.

E, desde então, talvez Jane Jacobs seja a primeira a dar uma perspectiva diferente sobre o problema. Mas ainda depois que ela publicou seus trabalhos, muitos planejadores tentaram usar as qualidades e ideias que ela descreve em suas observações como uma espécie de manual de design.

Tentando regular a diversidade de renda dentro do mesmo prédio, ou a idade nos prédios para dar as qualidades que Jacobs descreveu pela observação de um resultado espontâneo.

Alain Bertaud: Sim. Sim, isso é o que há de triste nisso. Novamente, é a mesma história do Edifício Seagram. O Seagram Building foi um bom projeto porque era único ali, e de repente, assim que você começa a torná-lo uma regra geral, ela se destrói.

O importante em Jane Jacobs é a espontaneidade. Ao mesmo tempo, ela não falava de ordem espontânea exatamente, mas de algo semelhante. Ela fala sobre aleatoriedade, sabe? E isso é o que é tão difícil de aceitar para planejadores, aleatoriedade.

De certa forma, talvez voltemos à ideia de Hayek ou mesmo de Adam Smith, da iniciativa individual. As pessoas têm conhecimento de como administrar uma padaria, ou um açougue, no caso de Adam Smith. Os urbanistas não sabem quantos açougues devem haver ou onde eles devem estar.

Para criar uma regra, de repente, você observa que em Paris que tem um açougueiro para cada 10 mil moradores. Pronto! Vamos planejar uma cidade onde você tenha um açougueiro para cada 10 mil pessoas. Falo em açougueiro, mas poderia ser qualquer outro serviço, como um shopping center ou algo assim.

Aí dá errado, justamente porque essas coisas estão evoluindo, dependendo da forma como a demanda evolui. Em determinado momento, pode ser que as pessoas diminuam o consumo de carne, ou comprarão carne de outro lugar que não seja o açougueiro.

A cidade deveria poder evoluir nisso. E acho que há uma contribuição importante da Jane Jacobs nesse ponto. Deveríamos ter uma estrutura, como as ruas de Greenwich Village, que era um modelo, elas nunca mudam e ela não queria que mudassem. Mas nelas você constrói coisas de forma diferente, dependendo da maneira como as pessoas e a tecnologia evoluem. E eu acho que essa é a mensagem mais importante, sabe?

Então você tem uma ordem espontânea que é feita de indivíduos que buscam seus próprios interesses, voltando novamente à teoria de Adam Smith, e que têm um conhecimento local especial, como postula Hayek. Então você ainda precisa de uma estrutura de cima para baixo, como Haussmann, da qual você ramifica isso. Então o importante é essa comunicação entre o privado e o público, que muitas vezes é muito negligenciada.

Eu reprovo muitos planejadores urbanos por gastarem tempo demais tentando projetar o que está acontecendo no setor privado e não o suficiente na área em que são responsáveis. Na concepção do espaço público, especialmente na relação entre o público e privado. Por exemplo, na abertura de lojas, de garagens, e como fazer para que se tenha o máximo de vida na rua possível.

Eu vejo algum progresso no desenho das calçadas em Nova York em algumas regiões, então isso é muito bom. Mas isso é novo, deveria ter sido a principal preocupação dos planejadores urbanos.

Volto também à questão do BRT, acho que o BRT sofre com a falta de um bom desenho urbano, de ligar a estação com o resto da cidade e a forma como a cidade se comunica ao longo da linha de BRT. São problemas de desenho urbano.

Acho que isso foi totalmente negligenciado, mas se você olhar para o plano de zoneamento de Nova York, eles entram em detalhes minuciosos sobre a altura do prédio, a distância que devem estar um do outro, o tamanho da cozinha, a forma como o banheiro deve ser conectado. Não estou falando aqui de regulamentação de segurança, incêndio ou saneamento. Isso eu deixo para os responsáveis, é preciso contar com os bombeiros para saber o que é um prédio à prova de fogo.

Mas qualquer coisa que seja o uso do espaço, quanto espaço você consome e como está organizado, acho que o consumidor é o melhor juiz para fazer isso. E o lojista também, em Nova York, por exemplo, em muitas lojas há um espaço mínimo e máximo por algum motivo. Não sei de onde vem, são números mágicos.


Anthony Ling: Temos visto desde Jacobs uma espécie de explosão de novas utopias. O Novo Urbanismo e mesmo o Desenvolvimento Orientado pelo Transporte têm uma visão final sobre a forma como a cidade deve parecer.

Temos visto isso desde a Cidade Jardim, há cerca de 120 anos. E Jane Jacobs apareceu com suas novas ideias, mas que se perderam de alguma forma no meio do processo e ainda não estamos no caminho de voltar ao planejamento urbano clássico. Gostaria de saber a sua opinião sobre por que isso acontece. Às vezes eu penso, é o fato de que aprendemos planejamento urbano e arquitetura como a mesma coisa? Seria alguma outra coisa? Por que você acha que essas ideias duraram tanto tempo?

Alain Bertaud: Sim, acho que é muito, muito difícil para arquitetos e engenheiros e, basicamente, as cidades são construídas por engenheiros e arquitetos… e advogados. É muito difícil para eles admitir que existe uma ordem espontânea, que existem certas coisas que eles podem não saber e que deveriam deixar o máximo de flexibilidade de uso do solo, porque querem otimizar tudo.

Por exemplo, se você quer otimizar o transporte. Eu me lembro de um caso na Indonésia, onde os japoneses da JICA estavam planejando um VLT atravessando Jacarta. Eles têm engenheiros de tráfego muito competentes, é claro. Eles calcularam que, para tornar este VLT viável, precisavam de uma densidade ao longo dele de, digamos, digamos 250 pessoas por hectare no corredor de um quilômetro de ambos os lados do trem.

Portanto, a ideia não era maximizar a mobilidade em Jacarta mas sim maximizar a viabilidade financeira de sua infraestrutura. Não estou dizendo que um VLT não era uma boa ideia em Jacarta, mas o objetivo é um pouco diferente. Então, se o objetivo é fazer com que o VLT funcione, não para torná-lo ideal para se locomover pela cidade, mas para fazê-lo funcionar, então é claro que eles precisam ter essa densidade maior lá, porque não havia demanda para essa alta densidade ainda. Dizendo que a área que não fica ao redor do trem deveria ter uma densidade baixa obrigatória.

O plano de Curitiba, de certa forma, segue essa lógica. Então você tenta maximizar a eficiência da infraestrutura, decidindo primeiro sobre a infraestrutura, para então dizer que as pessoas em torno dessa infraestrutura devem ser agrupadas dessa forma para que ela seja muito eficiente.

Sistema de BRTs de Curitiba.
Sistema de BRTs de Curitiba, mencionado por Alain Bertaud. (Imagem: Mariana Gil/EMBARQ Brasil)

Essa não é a maneira certa de fazer as coisas. Embora um sistema de transporte seja um setor público, é a mesma coisa que quando a General Motors diz que o que é bom para a General Motor é bom para o país, não é necessariamente verdade.

Então, o tipo de uso do solo que é bom para o trem leve não é necessariamente bom para Jacarta. Então, ao mesmo tempo, em Jacarta, outro exemplo como esse, e acho que responde muito bem à sua pergunta, por que tivemos problemas. Foi o Banco Mundial, inclusive. Tínhamos engenheiros de esgoto e de drenagem muito competentes e eles olhavam para Jacarta e para as condições do solo e diziam, “em um país tropical como aquele, poderíamos ter resultado sem ter um sistema de esgoto tradicional, poderíamos ter tanques de oxidação, que são locais, e uma fossa de infiltração”.

Mas, para fazer isso, a densidade precisaria ser inferior a 50 pessoas por hectare. Então eles falaram que os urbanistas deveriam planejar uma cidade com menos de 50 habitantes por hectare, dessa forma, se economizaria muito no esgoto. Você inverte as coisas aqui. Claro que você deve ter um esgoto que seja o mais barato possível, mas para servir as pessoas onde elas estão, não para projetar uma cidade em torno de um sistema de esgoto.


Anthony Ling: É um ótimo exemplo. O exemplo que você mencionou com o VLT na Indonésia, eu diria que é basicamente a ideia dominante no Brasil hoje. O último plano diretor de São Paulo é baseado nessa ideia. Então, eles permitiram uma densidade maior, mas não tanto, um índice de aproveitamento de quatro, em torno das principais linhas ferroviárias e de BRT.

Mas disseram “tudo bem, fora dessas áreas, vamos querer densidade mais baixa e dentro dos corredores de alta densidade vamos incentivar unidades menores para ter mais pessoas ocupando esses prédios e vamos restringir a quantidade de estacionamento, para que as pessoas também não usem o carro, elas usarão o metrô ou o ônibus.”

Alain Bertaud: Sim, de novo, por mais estranho que pareça, você vê no final do meu pequeno artigo lá sobre a Cidade de 15 minutos, eu tenho uma citação de Tocqueville que de certa forma, quando se olha o regulamento que você descreve em São Paulo, são pessoas que estão realmente preocupadas em fazer as coisas funcionarem.

E então eles estabelecem regras para que o que eles projetaram funcione sem realmente considerar por que algumas pessoas em São Paulo precisam usar carros. Talvez um médico ou um encanador obviamente precise usar um carro. Eles falam, bom, “funcionaria tão bem se todo mundo andasse, sabe?”.

E eu acho que aí eles colocam regras que não parecem muito tirânicas. Dizer que vamos reduzir as exigências de estacionamento. Aliás, não acho que o estacionamento deveria ser obrigatório. É uma parte do mercado imobiliário e deve ser operado de forma privada, porque em muitas cidades o estacionamento é subsidiado. E, como em muitas cidades do mundo, se fala que uma loja que precisa de tantas vagas de estacionamento, você está o subsidiando, porque está obrigando as pessoas a pagarem por isso.

Então eu acho que deve ser uma parte do mercado imobiliário, e da mesma forma que você não deve decidir quantas padarias você tem em uma cidade, não deve decidir quantas vagas de estacionamento.

Mas deve ser impulsionado pelo mercado, não deve ser subsidiado. Deve-se ter muito cuidado com o aspecto do desenho urbano, como todo esse estacionamento privado que provavelmente será subterrâneo vai se comunicar com a cidade para que não a obstrua ou seja perigoso para os pedestres ou qualquer coisa assim.

Então esse é um aspecto que deve ser regulamentado, o desenho urbano e a ligação entre os dois. Mas, novamente, para mim, o desenho urbano está principalmente na área pública, que não é movida por mercados, que não é movida pelas preferências das pessoas.

Você pode observar o número de pedestres na rua e dizer “bem, precisamos de calçadas mais largas”. Mas o mercado não vai te dar calçadas mais largas, não tem mecanismo para isso, mesmo com uma demanda alta. Então aqui tem que ser de cima para baixo de certa maneira.

Muita atenção deve ser dada a isso, mas muito menos ao tamanho do apartamento ou coisas assim, que eu acho que as pessoas podem decidir por si mesmas. E certamente não deveria haver regulamentação para dizer qual é o número de apartamentos desse ou daquele tamanho.

Em Nova York temos o contrário, o número máximo de apartamentos que podem ser construídos em cada bloco, que se baseia em um número que foi inventado em 1962 com base nas densidades da época quando o tamanho médio da família era de cerca de cinco pessoas. Agora acho é 1,3 em Manhattan, ou perto disso. Portanto, é um número completamente arbitrário simplesmente vindo do nada, como se viesse do signo do Zodíaco.


Anthony Ling: É incrível, ainda temos um longo caminho pela frente e acho que seu trabalho é uma grande inspiração para nós. Então, Alain, acho que seu comentário sobre a cidade de 15 minutos nos dá uma boa dica para passarmos às perguntas de alguns de nossos apoiadores.

Evandro enviou uma pergunta por mensagem. Ele pergunta se o argumento para a Cidade de 15 minutos não poderia funcionar de fato como uma estratégia de marketing, então talvez não para Paris, onde aquela cidade já otimizou por 15 minutos onde pode, como você argumentou em seu artigo. Mas talvez no Brasil ou nos Estados Unidos, subúrbios parisienses que não tenham atingido esse nível de acessibilidade ou uso misto. Portanto, sua dúvida é que talvez este conceito seja uma boa forma de resumir um objetivo para os cidadãos que não são formados como planejadores urbanos.

Alain Bertaud: Sim, é maravilhoso ter até uma cidade de 10 minutos, meu problema não é o objetivo, meu problema é a maneira como você o atinge. Acho que você alcança, digamos, a cidade de 10 minutos ou a cidade de 15 minutos para coisas como comida, escolas ou coisas assim, eliminando as regulamentações que impedem o atendimento da demanda.

Não se esqueça que a Cidade de 15 minutos depende das densidades. Se você olhar para todos os planos de zoneamento ao redor do mundo, eles proíbem densidades. Todo zoneamento limita densidades. Seja pela área de ocupação, seja por um número mínimo-máximo de unidades habitacionais por hectare, seja por afastamentos, por todo tipo de coisa.

Então, se o desejo é aumentar a acessibilidade, há a desvantagem de ter baixa densidade para atender à demanda. Há demanda para baixa densidade também, tem gente que gosta de ter quintal e esquilos no quintal. Então essas pessoas estão fazendo uma troca e sabem que se moram em uma casa individual e preferem isso, sabem que sua padaria ou mercearia fica a 20 minutos, onde podem usar uma bicicleta para isso se eles quiserem.

Mas isso está interligado, você não pode ter uma Cidade de 15 minutos sem lidar com a oferta e a demanda. Portanto, meu problema com os planejadores é que eles parecem dizer “vamos planejar dessa forma”. Você não planeja dessa forma.

E o mesmo para as escolas. Quando li a Cidade de 15 minutos de Moreno, eu não sabia como eram construídas escolas em Paris, francamente. Então eu verifiquei e foi muito interessante. Parece que são funcionários públicos muito competentes, porque as escolas são estatais.

Não municipais mas nacionais, sob o Ministério da Educação. Somos o país de Luís XIV, muito centralizados. Esses funcionários públicos são muito responsivos, e você encontra mais escolas nos bairros mais densos de Paris e menos escolas nos bairros onde as pessoas estão envelhecendo, onde há muito menos crianças. Eles são muito responsivos e fecham e abrem escolas dependendo da mudança. Fiquei felizmente surpreso, eles estavam fazendo um bom planejamento, de certa forma.

Agora, se você disser, por exemplo, que deveria ter, especialmente na cidade densa, acesso a transporte público dentro de 15 minutos a pé, ou até a 10 minutos a pé, eu concordo plenamente com isso, mas então você deveria ter um programa para isso.

Moreno não fala sobre isso, Moreno diz que temos um caminho para redesenhar a cidade para que você encontre seu emprego em 15 minutos. Acredito que se você se mudasse para São Paulo ou para Paris ou para Xangai, não seria para conseguir um emprego em 15 minutos.

Você seleciona o melhor emprego em toda a área metropolitana de São Paulo e o empregador também está procurando selecionar a melhor pessoa em toda a área metropolitana. Portanto, essa troca deve ser entendida. Um trabalho não é um trabalho genérico. Você tem uma escolha e deve ter uma escolha de muitos, muitos empregos.


Anthony Ling: Perfeito, muito obrigado. A segunda é da Maria. Ela faz uma pergunta sobre a transformação urbana nas periferias. Assim, quando as áreas rurais são subdivididas em lotes ou talvez casas de veraneio são transformadas em áreas residenciais, ocupando de forma excessiva e intensa áreas que antes eram de baixa densidade. Acredito que você mencionou algo disso em seu livro sobre o valor da terra.

Alain Bertaud: Sim, acho que novamente aqui você tem, simplificando, dois casos. Ou o estado não vai intervir de forma alguma e você tem um desenvolvimento espontâneo, que inclui o desenvolvimento espontâneo de ruas e vias principais. Quando é uma via pequena de acesso a um lote não importa.

Mas digamos que se você tiver novos subúrbios criados na periferia de uma cidade, uma das coisas mais importantes é que esse novo subúrbio deve estar ligado ao resto da cidade, porque, novamente, as pessoas que estão se mudando para esta área fazem parte do mercado de trabalho e eles vão ter que trabalhar em algum lugar e não necessariamente em seu bairro. Provavelmente não em seu bairro.

Então, o estado aqui tem que intervir e é uma coisa de cima para baixo integrar este novo bairro com uma rede de transportes que a liga a toda a zona da cidade. Essa ideia de que a cidade poderia crescer dentro de uma área autossuficiente, você sabe que às vezes você tem isso, por exemplo, eu vi isso na Coreia, onde eles constroem novas cidades e acham que essas novas cidades próximas a Seul vão ser autossuficientes, que as pessoas que vivem lá vão trabalhar lá.

Isso não é verdade. Nunca aconteceu assim. Então o estado tem que estabelecer uma conexão com o resto da cidade. Agora, isso feito, a forma como a terra é subdividida deve ser, novamente, inteiramente orientada pela demanda. Depois de se certificar de que separou o espaço que não será destinada ao mercado, que será dedicado às ruas principais, o resto deverá ser orientado pela demanda.

O problema que temos é: ou temos falência total do estado que não desenvolve a infraestrutura para ligar esses bairros ao resto da cidade, resultando no que chamam de desenvolvimento desordenado — o que eu não acredito, não há nada realmente desordenado. Você tem todo tipo de prédio e de certa forma eles atendem melhor a demanda porque não há regulamentação. Mas aí eles carecem de transporte. Portanto, no longo prazo, isso não será muito bom para a cidade.

Ou você tem a maneira como muitas cidades americanas ou europeias se expandem, com uma imposição antecipada de um padrão, um tipo de densidade, que é arbitrário. Você não sabe qual será a demanda por, digamos, um apartamento sem elevador de três andares em comparação com casas individuais ou sobrados. Eu acho que você deveria ter um tipo de regulamento que deveria permitir ao consumidor fazer a escolha de morar em um subúrbio, mas morar em uma casa geminada ao invés de uma casa individual.

Ou, ao contrário, morar em um lote de um quarto de hectare e vamos ver o que acontece. Não vejo por que o estado deve decidir sobre o consumo de terras em qualquer área da cidade. Os engenheiros diriam, “ah, mas a infraestrutura não esta lá”. O trabalho do estado é fornecer a infraestrutura para apoiar onde as pessoas estão, não o contrário.


Anthony Ling: Com essa ideia em mente, você acha que existe uma tensão entre a necessidade do estado de fornecer infraestrutura para todas as áreas e o fato de que uma decisão individual de se mudar para a periferia de uma área urbana irá, digamos, criar uma necessidade pública? A um custo mais alto?

Alain Bertaud: O estado poderia dizer “esse é o nosso plano de infraestrutura no futuro e vamos expandir. Você não conseguirá uma estrada aqui antes de 10 anos”, isso é possível. Mas se alguém adensar uma área que está relativamente longe da fronteira da área urbana…

Novamente, você tem que perguntar: por que eles fariam isso? De certa forma, seria melhor eles estarem mais próximos, pois traria mais valor. Então, por que eles fazem isso? Às vezes porque — eu vi muito isso na Índia, a propósito — precisamente a regulamentação na periferia os obriga a usar mais terra do que eles gostariam, aí eles tem que “pular” esta área. Ou às vezes você tem um cinturão verde, então do lado do cinturão verde o terreno é muito caro porque eles sabem que é um cinturão verde, é a última terra que resta.

É preciso descobrir por que as pessoas fazem isso. A ideia de que são cruéis e estão construindo coisas em lugares impossíveis apenas para irritar os planejadores não é verdade. Novamente, frequentemente no relatório do Banco Mundial vemos “desenvolvimento desordenado”. Desenvolvimento que não está sob controle. Eu discuto com isso, qualquer desenvolvimento que aconteça tem sua razão e você tem que descobrir por que ele está lá.

É para encontrar terrenos mais baratos? Por que os terrenos são tão caros em outro lugar? E talvez existam pessoas que são mais pobres e se estabelecem ali precisamente porque não podem pagar a terra. Portanto, ao impedi-los de construir, você não os torna mais ricos. Quando essas pessoas querem participar do mercado de trabalho da cidade, onde elas se instalam?

No meu livro dei o exemplo, se bem me lembro, da Cidade do México, de um desenvolvimento informal na encosta de um vulcão que provavelmente não deveria ser construído, concordo. Mas você tem que descobrir por que as pessoas construirão seus assentamentos informais, acessíveis de motocicleta ao mercado de trabalho da Cidade do México. Por que eles construíram lá?

Se você os impede de construir lá — e pode ter um bom motivo para fazê-lo, não estou negando — é preciso oferecer uma alternativa para que seu reflexo não seja evitar coisas que você acha perturbadoras, mas dizer: por que as pessoas se mudam para lá? Podemos oferecer uma alternativa com o mesmo preço? Então você tem que monitorar o preço desse assentamento informal e dizer, se eles se mudarem para mais perto da cidade eles têm que consumir muito mais terra. Então você deveria ter, mais perto da cidade, a possibilidade de consumir pouquíssima terra para essas pessoas.

Então você tem que olhar para o problema dessa maneira. Da mesma forma que quando as pessoas querem fechar completamente a cidade aos carros, você tem que olhar: por que alguém dirige por Manhattan? Não é divertido dirigir por Manhattan, então por que eles dirigem? E você tem que encontrar uma alternativa, alguns deles poderiam ter uma alternativa para isso?

Novamente, a ideia é de que uma cidade é feita de pessoas e você tem que descobrir o que é melhor para elas ao invés de projetar a infraestrutura e dizer que as pessoas têm que se adaptar à minha infraestrutura porque realmente isso será ótimo se o fizerem.


Anthony Ling: Temos duas questões em torno deste conceito de infraestrutura e habitação informal. Uma delas é como endereçar com áreas urbanas que se consolidaram, como favelas, e a expansão urbana não foi planejada. Quais são os melhores referenciais para trazer infraestrutura para essas áreas? E outra pergunta, da Cristiane, é: e as áreas que talvez sejam áreas ambientalmente sensíveis? Temos no Brasil, por exemplo, casas acima de lagos ou rios. Levamos infraestrutura para essas comunidades ou são casos em que uma realocação seria justificada?

Alain Bertaud: Sobre a primeira, pergunta, é possível. A área que já está adensada, digamos favelas e seu entorno. Acho que um dos principais problemas aqui é, novamente, conectar essas áreas com o resto da cidade em termos de, primeiro, fornecer infraestrutura básica.

A propósito, não acho que, especialmente em um país tropical ou quente, a habitação seja tão importante quanto a infraestrutura. Então a melhor coisa que você pode fazer, na minha opinião, em uma favela, é trazer infraestrutura, água limpa e também a possibilidade de se locomover pela favela relativamente rápido e ter acesso ao transporte público.

Pode não ser possível fornecer dentro da favela, mas digamos ao redor da favela. Acho que isso é o mais importante. Portanto, é possível que em algumas áreas você precise fazer uma operação Haussmann. Para ligar, novamente, esta grande área. Posso pensar nisso em alguma área da Cidade do México onde há grandes áreas, uma população muito densa e a maioria das ruas tem cerca de seis a oito metros, não mais que seis metros. Essas pessoas são penalizadas pela falta de acesso ao grande mercado de trabalho da Cidade do México.

Então você pode ter que fazer uma operação Haussmann aqui, não cortando uma rua, provavelmente também realocando as pessoas no local, fazendo uma operação imobiliária ao mesmo tempo, sabe? Não se concentre na rua para que as pessoas sejam realocadas no local e isso fará parte do custo da rua de certa forma, mas você criará riqueza ao mesmo tempo. Você cria capital fixo.

Então é um pouco complicado, prefiro discutir isso talvez em um desenho ou em um mapa, mas acho que a vinculação de uma área pobre com o resto do mercado de trabalho por transporte rápido é muito, muito importante. Pessoas muito pobres, que não podem pagar pelo transporte, muitas vezes estão muito limitadas a aceitar empregos relativamente próximos de onde vivem, então seus salários são muito mais baixos por causa disso e eles têm muito menos possibilidades. Aprende-se muito no trabalho e essa possibilidade também os é reduzida. Então eu acho que o acesso fácil ao resto do mercado de trabalho é muito importante.

A outra questão, áreas ambientalmente sensíveis. Agora existem duas possibilidades. Se é uma área que sempre será inundada então, novamente, se as pessoas se instalam lá, certamente não é porque eles gostam de estragar o meio ambiente, é porque é a única terra barata.

Você pode fornecer algum lugar, um terreno que seja tão barato e tão bem localizado? A questão é essa. Se você não pode, você expulsa as pessoas desta área, mas você não resolve nenhum problema. A área vai ficar mais bonita sem a favela e talvez até patos surjam lá ou algo assim, vai ser muito legal.

Mas e quanto a essas pessoas? Elas ficarão em uma situação pior. Portanto, é absolutamente necessário encontrar uma solução alternativa. Não se esqueça que se eles estão lá não é porque são ignorantes ou qualquer coisa, é porque olharam a cidade inteira e optaram por isso. Embora possam ficar alagados o tempo todo, talvez estejam cheios de mosquitos e coisas assim, não muito confortáveis.

Mas eles descobriram que do ponto de vista deles este é o melhor lugar da cidade, então você pode encontrar para pessoas assim com essa renda algo que seja equivalente e que não seja uma área sensível? É isso. Lembro-me de um caso na Índia onde havia uma grande favela em uma área que era regularmente inundada e as pessoas sabiam disso. Mas essa era o motivo do terreno ser barato e por isso se estabeleceram ali.

Era relativamente perto, eles têm um bom acesso ao centro da cidade por esta área. Então primeiro a cidade decidiu removê-los e colocá-los em algum lugar longe do centro, onde na verdade eles estavam relativamente próximos. Com um bom engenheiro, descobrimos que ao construir um aterro ao redor dessa área, seria muito mais barato evitar que essa área inundasse, e não seria preciso realocar as pessoas, ao mesmo tempo que seria possível trazer água limpa e um sistema para remover o lixo desta área.

Isso também foi feito várias vezes na Indonésia, no projeto Kampong de que falo. Então, novamente aqui você deve ver se alguma obra civil não resolverá o problema de enchentes, por exemplo, se a área não for sensível de outra forma. Mas alguma área deve ficar molhada, sabe? Se eles são um pântano ou coisas assim, não tenho nenhum problema com isso, obviamente. Ou, digamos, a encosta do vulcão ao redor da Cidade do México provavelmente não deveria ser construída por causa da dificuldade, do problema de drenagem que causa e coisas assim.

O problema, às vezes, quando você aborda isso, é embelezar a área e expulsar as pessoas, e essas pessoas não vão desaparecer, não vão voltar para o seu povoado, vão para outro lugar da cidade e criarão outro problema. A menos que você resolva o problema das pessoas, particularmente a acessibilidade, o preço da terra e o acesso a empregos, você não vai resolver o problema.

Kampung
Kampung Pelanji, hoje uma atração turística de Semarang, Indonésia. (Imagem: Ratna Fitry/Pixabay)

Anthony Ling: Resposta incrível, obrigado, Alain. Acho que temos mais algumas perguntas. André diz que há um artigo de 2004 no qual você explica que a cidade de Bangalore restringia o índice de aproveitamento em áreas centrais porque acreditava que seria muito caro construir uma infraestrutura grande o suficiente para acomodar uma grande população.

É claro que isso fez com que a população se espalhasse, o que aumentou a demanda por infraestrutura. Você conhece alguma cidade onde essa restrição de densidade, por questões financeiras, faria sentido? E ela acredita que muitas pessoas no Brasil argumentam contra a densidade dizendo que o custo de melhorar a infraestrutura seria muito alto.

Alain Bertaud: Olha, é muito simples. Observe o custo do terreno e olhe o custo da infraestrutura e, muitas vezes, para economizar, digamos, U$10 milhões em infraestrutura, você explode U$100 milhões em valor imobiliário. Pode haver uma situação em que a infraestrutura em alguma área seja tão cara quanto por conta de lama, terremoto, algo assim. Mas, na minha experiência, sempre a infraestrutura é mais barata quando há demanda.

O problema é que às vezes os planejadores constroem infraestrutura no meio do nada, onde não há demanda, então a infraestrutura se torna, de fato, muito cara, porque não há demanda por ela. Mas se você está no centro da cidade ou, digamos, no subúrbio, onde há muita demanda por moradias ou prédios comerciais, na minha experiência, é sempre mais barato levar canos para lá ou aumentar o sistema de esgoto e coisas assim.

Veja cidades como Manhattan ou Paris, elas não tinham infraestrutura, a infraestrutura foi construída aos poucos. Se Manhattan tivesse decidido no século 19 — eles não tinham esgoto por sinal — que “não queremos gastar com infraestrutura, a cidade deveria se expandir” ou “você deveria se mudar para Baltimore”, não faria sentido.

Você tem que se adaptar. O problema claro é que muitas vezes você não tem mecanismos para recuperar o custo da infraestrutura. Há um orçamento municipal para esgoto e não tem nenhum mecanismo para recuperá-lo e é possível que se você aumentar a densidade você tenha algo como uma taxa de impacto ou algo que vai pagar por essa infraestrutura adicional.

Ou você tem o sistema que você tem no Texas, onde há títulos que são pagos pelo imposto sobre a propriedade no longo prazo. Mas aí você precisa de um sistema financeiro relativamente sofisticado para fazer isso. Então eu acho que não é que a infraestrutura seja muito cara quando há demanda por área, é só que você não tem mecanismo para recuperar o custo da infraestrutura.

Você sabe, vem de um bolso onde o dinheiro está indo para outro bolso, então você não o faz. Não consigo imaginar um caso em que haja uma alta demanda por infraestrutura em que o preço dos imóveis não compense amplamente o custo da infraestrutura.


Anthony Ling: Alain, sua resposta foi precisa, pois acho que nossa última pergunta foi exatamente sobre esse assunto: Arthur pergunta sobre as cidades latino-americanas com restrições orçamentárias e como a infraestrutura poderia ser fornecida. Você já nos deu alguma luz sobre isso. O que você acha da venda de direitos de construção e outros mecanismos de financiamento que as cidades poderiam usar?

Alain Bertaud: O problema é quando o governo vende e estabelece um preço que mataria o mercado, porque você poderia precificar de uma forma que daí nada acontece. Acho que agora, se falarmos do Brasil, existe um sistema financeiro que é profundo o suficiente para ser capaz de financiar cidades.

Tenho certeza de que as cidades são capazes de emitir títulos e provavelmente esta é a melhor forma de financiamento. Isso significa que você tem um imposto sobre a propriedade ou alguma renda que irá garantir os títulos.

Eu não sou um especialista em finanças municipais, sendo franco, mas é verdade que o financiamento de infraestrutura é importante, já que muitas vezes as cidades estão quebradas. Quando na verdade você olha o preço dos imóveis na cidade você não tem a sensação de que as pessoas estão falidas, afinal se se pagam esse valor por um imóvel tem dinheiro circulando ali e não há dúvida de que deveriam pagar pela infraestrutura.

Acho que é um exemplo. Novamente, não sou um especialista nisso, mas um exemplo que acho muito convincente é o que é usado no Texas, que se chama MUD, Municipal Urban District, é uma forma de emissão de títulos. Você pode cobrir até vários municípios. Mas o título cobre a infraestrutura.

Então, quando você está em uma área suburbana, você tem um distrito que é específico para a infraestrutura, que pode passar por vários limites suburbanos. E isso parece funcionar muito bem e explica em grande parte por que as moradias em geral no Texas são muito mais baratas do que em outras partes dos Estados Unidos.

Por causa desses títulos você consegue desenvolver infraestrutura suficiente. E, por falar nisso, na cidade de Houston, revisam periodicamente agora o uso da terra para que aumentem às vezes a densidade se eles sentirem que há uma demanda para apartamentos menores ou terrenos menores. Eles podem fazer isso.


Anthony Ling: Um de nossos apoiadores, Erick, acabou de nos enviar uma mensagem dizendo que os municípios estão proibidos de emitir títulos no Brasil.

Alain Bertaud: Ah, é mesmo?


Anthony Ling: Infelizmente.

Alain Bertaud: Porque o estado acha que não tem como retribuir?


Anthony Ling: Talvez.

Alain Bertaud: Sim, então talvez tenham outros mecanismos além de títulos. Mas acho que quando as cidades podem emitir títulos e sabem que não serão resgatados pelo estado, acho que pode ser o melhor. Olha, talvez eu seja tendencioso, novamente, não sou um especialista em finanças municipais.


Anthony Ling: Existe um instrumento no Brasil que eu acho interessante, que as cidades podem especificar uma área urbana e venderem direitos de construção e com o dinheiro investir nessa área urbana. E o preço não é definido nominalmente pela prefeitura, é um leilão, e esses títulos de direitos de construção são vendidos no mercado aberto, então essa é uma maneira interessante de evitar a definição de preço.

Alain Bertaud: Isso é interessante. E suponho que nessas áreas também se estabeleçam padrões de urbanização, né? Porque os direitos de construção são baseados nas partes privadas do empreendimento, obviamente.


Anthony Ling: Sim, sim.

Alain Bertaud: É um pouco parecido com o que Hong Kong costumava fazer. Não tenho tanta certeza agora nos últimos três anos, se eles deixaram de fazer isso. Mas isso é o que Hong Kong costumava fazer no passado para se desenvolver e é por isso que você tinha subúrbios em Hong Kong com densidades muito altas, porque isso é o que as pessoas estavam dispostas a pagar para chegar o mais perto possível do centro de Hong Kong e do transporte público.

Porque com a densidade de Hong Kong, a cidade pode funcionar apenas para cerca de 80% das pessoas que usam o transporte público. Densidade de cerca de 500, 600 pessoas por hectare. Então, sim, essa é uma solução.

Eu tive um caso no Irã. Eu trabalhei no Irã depois da revolução e havia um prefeito de Teerã que estava desesperado por dinheiro, e para responder, novamente, à densidade, ele fez exatamente isso. Leiloou os direitos de construção e financiou infraestruturas assim e o governo central criticou a medida. Mas eu vi o resultado quando estive lá e senti que era um pouco primitivo, digamos, mas funcionou produzindo uma enorme quantidade de espaço que era obviamente acessível porque era todo privado.

As pessoas estão sempre pedindo uma cidade compacta. Isso criou uma cidade compacta por si só, sem ter que regulamentá-la ou coisas assim. E o fato de ter sido leiloado… se tivesse sido definido pelo governo, você poderia esperar que uma área onde não havia demanda pois eles colocaram um preço muito alto, mas aqui obviamente foi puxado pela demanda. Então, novamente, ser orientado pela demanda é muito importante.


Anthony Ling: Pessoalmente, fico surpreso com esses mecanismos porque, com todas as restrições de densidade, a maioria das grandes cidades está sobre uma pilha de dinheiro, certo?

Alain Bertaud: Sim, sim, exatamente.


Anthony Ling: Eles poderiam se financiar facilmente de muitas maneiras diferentes.

Alain Bertaud: Um cara como Trump, a forma como ele ganhou parte do dinheiro, foi comprando área em Manhattan que era zoneado para uso industrial ou algo parecido. Ainda há área industrial em Manhattan embora seria loucura criar uma indústria lá.

Então essa área tem muito pouco valor, geralmente é usada para armazenamento. Então você o compra, pois tem um valor potencial de centenas de milhões de dólares, mas você o compra por U$50 milhões. E você espera. Leva talvez 10 anos com advogados muito caros para mudar o zoneamento.

Não estou insinuando corrupção, só um processo, sabe? O presidente do conselho, a comunidade, o que for. Após 10 anos, de repente, a área torna-se comercial ou residencial e você ganhou uma bolada. Mas tudo vai para os incorporadores e os advogados, porque você precisa de advogados muito qualificados para fazer isso. Mas a cidade estava sentada sobre ela e não fazia nada.


Anthony Ling: As cidades têm muito a aprender com os incorporadores imobiliários.

Alain Bertaud: Por que Nova York mantém a manufatura em Manhattan, enquanto não há demanda para manufatura? Novamente, algumas pessoas acreditam que os empregos no setor podem voltar. Então o sindicato e outras várias pessoas acreditam que, se mantivermos essas áreas, teremos bons empregos na manufatura, ao invés de ter apenas serviços.

Quer dizer, é um mito, não vai acontecer. Ele apenas transfere dinheiro da cidade para incorporadores e advogados. Peço desculpas aos advogados aqui. Tenho grande respeito pelos advogados de zoneamento.


Anthony Ling: Está bem. Alain, já ultrapassamos o horário programado, mas foi um grande prazer conversar com você.

Alain Bertaud: O mesmo aqui, obrigado!

Traduzido por Roberta Inglês e Gabriel Lohmann.

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