Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Shenzhen foi a mais rápida na história a quebrar a marca dos 10 milhões de habitantes. Em 1979 era um vilarejo de 30 mil, hoje possui 12,5 milhões.
12 de fevereiro de 2019Quando se fala em velocidade de crescimento populacional, Shenzhen é a vencedora: foi a cidade que quebrou a marca dos 10 milhões de habitantes mais rápido que qualquer outro lugar na história da humanidade.
Em 1979 era um vilarejo de 30 mil moradores, e hoje possui 12,5 milhões. Este resultado se deu, principalmente, por ter se tornado, em 1980, a primeira Zona Econômica Especial (SEZ) da China, atraindo migrantes do país inteiro.
Da população atual, cerca de três quartos não possuem o hukou, ou registro nacional para usufruir serviços públicos, em Shenzhen. E se o PIB per capita chinês cresceu rápido nestes últimos 30 anos, o de Shenzhen cresceu duas vezes mais.
A primeira vez que fui a Shenzhen foi quase vinte anos atrás, quando fui visitar familiares que moram em Hong Kong e fizemos um passeio de um dia para conhecer a pequena vila de pescadores que estava se transformando rapidamente.
Na época eu ainda não tinha estudado urbanismo, mas confesso que achei o cenário estranhíssimo: porque andávamos em uma avenida tão larga se não havia nada construído ao redor? Porque torres altas envidraçadas subiam isoladamente no horizonte? Eram alguns dos primeiros sinais da rápida transformação que a cidade já estava sofrendo.
Desta vez minha estadia em Shenzhen também foi curta, apenas um dia de visita indo e voltando de balsa a partir de Hong Kong. Mesmo assim, pude ter uma boa impressão da cidade. A estação da balsa em Shenzhen é integrada com o metrô, que foi relativamente fácil de usar, comprando cartões de acesso em máquinas que tinham a tradução para o inglês.
Saindo do metrô, sem mapa impresso ou saber me comunicar em chinês, fiz toda navegação pelo Google Maps e, felizmente, encontrei bicicletas dockless da Ofo disponíveis. Shenzhen é conhecida mundialmente pelo seu pólo industrial e comercial de eletrônicos, então me surpreendi quando fiz todo trajeto de bicicleta em meio a zonas residenciais em meio a parques arborizados.
Nosso primeiro ponto de parada foi o OCT Loft, uma área industrial que, em 2004, começou a ser convertida em um centro de arte, inovação e design. Diferente de outras zonas culturais mundiais, ou até mesmo o 798 Arts District em Pequim e TianZiFang em Shanghai, o OCT Loft foi uma iniciativa centralizada do grupo estatal OCT focado em turismo, imóveis e eletrônicos.
Alguns autores consideram o empreendimento uma exceção à regra, dado que a maioria das tentativas planejadas de criar centros de cultura e inovação de forma centralizada fracassam. No entanto, neste caso, a empresa não tinha objetivos de retorno financeiro imediato e pôde selecionar inquilinos através de uma curadoria e a preços subsidiados. Aliado a isso, os gestores dos espaços não dão muitas regras ou prazos para os inquilinos, abrindo espaço para espontaneidade das atividades.
O OCT Loft é extremamente organizado, com sinalização bilíngue e mapas para se localizar no espaço imenso, composto por vários blocos. Restaurantes, lojas, ateliês, intervenções arquitetônicas e graffiti mais uma vez representam o crescimento de uma classe cultural significativa em uma China que se transforma constantemente.
Shenzhen foi nomeada, em 2008, uma “Cidade do Design” pela UNESCO, organiza uma Bienal de Arquitetura e Urbanismo e terá um novo centro cultural em parceria com o museu britânico Victoria & Albert, apesar do alto custo e das incertezas sobre o seu funcionamento.
A próxima parada foi o “Seg-E Market”, um grande centro comercial de seis andares com centenas de pequenos estandes, vendendo tudo desde componentes de hardware a iPhones falsificados. O Seg-E é localizado em Huaqiangbei, a região principal destinada a eletrônicos em Shenzhen.
Mesmo tendo se desenvolvido recentemente, a Huaqiang North tinha acabado de se transformar em um grande passeio de pedestres, rodeado por comércio e torres corporativas, onde cerca de 500.000 consumidores passam diariamente.
Em mercados como o Seg-E, assim como nas demais lojas de Huaqiangbei, eletrônicos falsificados são rotineiros. Um dos vendedores nos mostrou um celular idêntico a um iPhone, mas que rodava uma versão do Android que tinha sido modificada para ficar semelhante com o iOS, o sistema operacional do iPhone.
Em uma loja que tinha um grande logo da Apple, vi nas estantes caixas tanto de produtos falsificados como de originais. Quando perguntei dos produtos originais, segurando uma das caixas, a vendedora me informou que estes eles não tinham na loja. Mais uma vez, assim como as cidades históricas do interior da China ou com os hutongs em Pequim, chineses não pareciam se importar com a autenticidade dos seus eletrônicos.
Cansados de ver peças eletrônicas, ainda tínhamos tempo para um último destino em Shenzhen: Baishizhou, uma das últimas “vilas urbanas” que permaneceram na cidade e certamente uma das áreas mais impressionantes dada a forma construtiva raríssima no urbanismo mundial. A população estimada desta pequena área de cerca de 0,6 km² é entre 100 e 140 mil habitantes, o que resultaria em uma densidade demográfica próxima de 180 mil habitantes por km².
Para efeito de comparação, a densidade demográfica da maioria dos empreendimentos residenciais do resto da China fica em torno de 70 mil habitantes por km². A densidade de Copacabana, um dos bairros formais mais densos do Brasil, chega a quase 50 mil habitantes por km², e de bairros como Pinheiros ou Itaim Bibi, na região sudoeste São Paulo, não passam de 10 mil habitantes por km².
Para atingir esta concentração de pessoas, Baishizhou não é um parque de torres gigantescas, mas um conjunto de edificações de, em média, sete andares, o limite de altura aceitável na ausência de elevadores.
Os edifícios são aproximados o máximo possível entre si, separados por ruelas de um pouco mais de dois metros de largura, e por isso receberam o apelido “handshake buildings”, ou “edifícios aperto de mão”, pois seria possível apertar a mão do vizinho do apartamento do prédio ao lado. Não apenas isso, mas as unidades também são pequenas e, em alguns casos, o número de moradores por unidades também é alto.
As condições parecem ser precárias, mas praticamente a unanimidade dos autores que estudam a região relatam que este tipo de moradia foi imprescindível para o crescimento da cidade e para evitar a expulsão de moradores de rendas mais baixas das regiões mais centrais.
Inicialmente, Baishizhou era um conjunto de vilarejos agrícolas que foram desapropriados e consolidados durante e era comunista, tornando a área em uma área agrícola comunal. Nos anos 80 as áreas foram desapropriadas pelo governo para desenvolvimento de infraestrutura, deixando aos moradores apenas o lote onde originalmente estavam suas casas.
Estes pequenos agricultores foram os que, posteriormente, se tornaram os incorporadores imobiliários de Baishizhou. O que tornou o desenvolvimento ainda mais peculiar foi a coordenação entre estes pequenos agricultores para reorganizar e maximizar o potencial dos seus terrenos em conjunto.
Assim, eles criaram sua própria “malha viária”, com quadras totalmente edificadas de aproximadamente 14 metros de lado e ruas de largura entre 2,6 e 6 metros nas “ruas principais”. Os apartamentos tem, em média, 22 m², com uma pequena cozinha e banheiro, e as unidades térreas foram alugadas para pequenos comerciantes ou manufaturas artesanais.
Apesar das condições precárias, milhares de moradores hoje residem em Baishizhou dado os preços até três vezes menores que em novos empreendimentos adjacentes de tamanho similar na região.
Originalmente a população era composta de migrantes de outras regiões da China, pequenos empreendedores e trabalhadores industriais, mas atualmente as unidades também são procuradas por jovens profissionais recém formados da área de tecnologia, dada a proximidade do vilarejo à corporações gigantes como a Tencent e a DJI. A área é um exemplo claro de como as preferências de moradia podem mudar de um lugar para o outro, apesar de planejadores locais olharem para os prédios aglomerados com desgosto.
Com respaldo político, desde 2012 o grupo imobiliário de Hong Kong LVGEM já divulgava seus planos de substituir a área por quase 5,5 milhões de metros quadrados de área construída de torres, shoppings e hotéis, e em 2014 a área foi marcada para demolição.
No entanto, Baishizhou segue vibrante. Não apenas os direitos dos moradores são mais respeitados em Shenzhen do que em Pequim como, no caso de Baishizhou, os proprietários de imóveis são muito mais coordenados do que em outros casos, organizando-se entre eles para impedir a destruição da comunidade.
A densidade tanto construída como populacional e a complexidade da estrutura de propriedade da comunidade torna muito mais custoso para o poder público desapropriar Baishizhou do que áreas mais abertas em outras regiões da cidade, e assim ela permanece.
Segundo o arquiteto Duan Peng, ativista pelos direitos dos moradores de Baishizhou em matéria para a revista Foreign Policy, “Se Shenzhen perder a sua moradia acessível, a cadeia inteira vai ser quebrada. Teremos um vácuo no setor industrial e, para a maioria das nossas startups, empresas de design e tecnologia, o custo do trabalho vai aumentar, porque quase todos os jovens trabalhadores moram nos vilarejos urbanos”.
Apesar dos corredores escuros, as “ruas principais” de Baishizhou são extremamente vibrantes, e não vi nenhum sinal de sujeira como lixo no chão, ou baratas ou ratos como um crítico poderia imaginar. Próximo dos espaços enclausurados a população tem acesso a uma rede de metrô nova e invejável, assim como parques públicos com amplas áreas arborizadas, talvez compensando a falta de espaço privado para estes moradores.
Como diz Alain Bertaud, Baishizhou é uma área sem controle, e talvez este mesmo seja o motivo do seu sucesso. O mais provável é que, em algum momento, os antigos pequenos agricultores transformados em gestores imobiliários acertem uma negociação com a Prefeitura e se tornem multimilionários, de forma semelhante ao que ocorreu no vilarejo Dachong em Nanshan. Assim, posso dizer que tive sorte de poder experienciar esta forma única na urbanização mundial, que talvez esteja com seus dias contados.
Quase quarenta anos após sua demarcação como Zona Econômica Especial, Shenzhen continua crescendo de forma ambiciosa. No final de 2017, o grupo imobiliário privado Shimao comprou um terreno enorme com objetivo de construir o novo edifício mais alto da China. Por trás do grupo Shimao está Xu Rongmao, o maior incorporador imobiliário da China, bilionário que iniciou a sua carreira como trabalhador de fábricas têxteis em uma Hong Kong ainda muito pobre. No início deste ano, foi divulgado que o escritório Adrian Smith + Gordon Gill (o mesmo responsável por Tianfu) foi o vencedor da proposta que terá uma torre de mais de 700 metros de altura, ultrapassando facilmente a Shanghai Tower.
No entanto, a cidade já mostra escassez de terra e o governo recentemente implementou mais restrições sobre a compra e venda de imóveis em uma tentativa de diminuir a especulação imobiliária sobre unidades, relativamente comum devido às condições econômicas na China.
Mas apesar dos alertas de desaceleração econômica, Shenzhen continua crescendo — talvez menos em termos populacionais, mas seu PIB quase dobrou nos últimos oito anos. E com a crescente integração urbana do Delta do Rio das Pérolas, Shenzhen estará cada vez mais à frente da corrida para estabelecer qual cidade é, de fato, o “Vale do Silício” chinês.
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarAs mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Com o objetivo de impulsionar a revitalização do centro, o governo de São Paulo anunciou a transferência da sua sede do Morumbi para Campos Elíseos. Apesar de ter pontos positivos, a ideia apresenta equívocos.
Confira nossa conversa com Diogo Lemos sobre segurança viária e motocicletas.
Ricky Ribeiro, fundador do Mobilize Brasil, descreve sua aventura para percorrer 1 km e chegar até a seção eleitoral: postes, falta de rampas, calçadas estreitas, entulhos...
Conhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
No programa Street for Kids, várias cidades ao redor do mundo implementaram projetos de intervenção para tornar ruas mais seguras e convidativas para as crianças.
Algumas medidas que têm como objetivo a “proteção” do pedestre na verdade desincentivam esse modal e o torna mais hostil na cidade.
A Roma Antiga já possuía maneiras de combater o efeito de ilha de calor urbana. Com a mudança climática elevando as temperaturas globais, será que urbanistas podem aplicar alguma dessas lições às cidades hoje?
Joinville tem se destacado, há décadas, por um alto uso das bicicletas nos deslocamentos da população.
Muito legal essa série e o site