Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Nesta entrevista com Alain Bertaud, conversamos sobre o papel dos mercados na formação das cidades, moradia acessível e muito mais.
20 de maio de 2019Desde a primeira travessia pelas periferias de Saná — uma das cidades mais antigas do mundo a ser habitada continuamente — na sua Land Rover em 1970, Alain Bertaud conquistou uma reputação de “Indiana Jones” do planejamento urbano. Mas também há um aspecto “Forrest Gump” em seu longo currículo. Seu trabalho em organizações como o Departamento de Planejamento da Cidade de Nova York e o Banco Mundial o colocam em momentos chave da história urbana recente. Ele pode contar sobre a organização de grupos no East Harlem junto ao Partido dos Panteras Negras no final dos anos 60, o trabalho com urbanistas em Pequim, quando a República Popular da China iniciou a abertura no início dos anos 80, e a criação de novos mercados de terra urbana em São Petersburgo e Moscou pós-União Soviética no início dos anos 90. Hoje Bertaud é pesquisador sênior do Marron Institute of Urban Development da Universidade de Nova York. Seu novo livro, Ordem sem Design: como os mercados moldam as cidades, argumenta que urbanistas e economistas têm muito o que aprender uns com os outros.
Eu sentei recentemente com Bertaud para discutir o papel dos mercados na formação das cidades, o que São Francisco pode aprender sobre moradia acessível com Jacarta e como um urbanista pode lidar com os protestos contra o aumento do imposto sobre combustível em Paris. Nossa conversa foi condensada e editada para maior clareza.
Nolan Gray: No início do livro Order without Design há uma bela foto de você trabalhando como urbanista no Iêmen nos anos 70. Como foi essa experiência?
Alain Bertaud: Começando em 1970, eu trabalhei por três anos como urbanista no Iêmen. Eu estava em Saná e meu trabalho oficial era aconselhar o governo e escrever relatórios para a ONU. Mas naquela época Saná estava crescendo 7% ao ano. Em pouco tempo meu trabalho se tornou ajudar a planejar e traçar no solo ruas suficientes para que, à medida que a cidade expandisse, as pessoas tivessem acesso fácil a elas.
Eu dirigia até o local em minha Land Rover e falava com os proprietários de terras nas bordas da cidade. Nós discutíamos onde ficariam as ruas de modo que todos tivessem acesso a rede de vias mais amplas, seguindo as linhas das propriedades. Um momento crucial da conversa envolvia a largura. Quanto mais largas as ruas, mais terras eles perderiam. Por outro lado, eles sabiam que vias mais largas dariam mais valor às suas terras. Então nós falávamos enquanto eu rabiscava e colocava os marcadores no solo. Depois de uma hora, nós chegávamos a um acordo e a rua estava planejada e traçada diretamente através dos campos.
Aquilo foi, de longe, a coisa mais útil que eu fiz no Iêmen: aumentar a oferta de terra de uma maneira que permitisse que o mercado de trabalho de Saná funcionasse. Isso permitiria que mais pessoas pudessem acessar qualquer parte da cidade no menor tempo possível.
NG: Você descreve cidades como mercados de trabalho. O que você quer dizer com isso?
AB: Às vezes quando leio os trabalhos de meus colegas urbanistas, tenho a impressão de que eles pensam que as cidades são como a Disneylândia ou um resort do Club Med. Cidades são mercados de trabalho. As pessoas vão para as cidades para encontrar um bom emprego. As empresas se mudam para as cidades, que são caras, porque é mais provável que encontrem os funcionários e especialistas que precisam. Se a cidade é atraente, isso é um bônus. Mas, basicamente, as pessoas vêm para conseguir um emprego.
Essa foi uma das lições que aprendi quando trabalhei na China no início dos anos 80, quando ainda era uma economia de controle centralizado. Não havia um mercado de trabalho. As pessoas tinham empregos em uma fábrica estatal e elas ficavam lá a vida toda. A fábrica fornecia moradia ao lado. Da mesma forma, as fábricas estatais estavam presas onde estavam, com os trabalhadores que tinham. Havia uma enorme incompatibilidade entre empregados e empregadores e todo mundo estava na pior.
NG: Algumas das histórias mais interessantes que você conta são desses tempos de transição, de economias de comando, como a União Soviética, China e Vietnã, em transição para economias de mercado. Como era trabalhar como urbanista nessas cidades?
AB: De certa forma, o sonho de todo urbanista ou arquiteto é não ser restringido pelo mercado. Você acredita, como arquiteto ou urbanista, que poderia alocar os usos de terra e densidades de maneira eficiente sozinho, como se estivesse desenhando uma casa.
Eu percebi rapidamente que se você não tem preços para te guiar, você acaba dependendo de normas arbitrárias. Por exemplo, na China, o governo central decidiu que cada casa deveria ter uma hora completa de luz do sol todos os dias. Então você conectava a altura, latitude e ângulo do sol no solstício de inverno para o seu local, e isso iria formular a densidade permitida da moradia.
Não era uma ideia totalmente idiota. Se você não tem preços para mostrar como o solo deveria ser usado, você tem que contar com heurísticas estranhas como essa. Você tenta encontrar algo que soe científico. O ângulo do sol em Pequim no solstício de inverno é completamente científico. O que não é científico é estabelecer padrões de luz solar para a moradia do país inteiro.
Foi semelhante na União Soviética. Os métodos de produção estatal decidiam a densidade. Eles tinham guindastes alinhados um depois do outro e o alcance do guindaste decidia a distância entre os prédios. A medida que a economia da União Soviética crescia, eles começaram a construir com elevadores, então os prédios começaram a crescer. Os edifícios altos não refletiam uma alta demanda por solo — mas sim a tecnologia do momento. É por isso que na União Soviética os edifícios e densidades altas estavam nos subúrbios e os edifícios baixos estavam no centro.
Sem preços, eles nunca conseguiam prever a demanda com precisão. Os moradores não pagavam aluguéis de mercado, o que significava que construtores estatais não tinham recursos e sinais para construir mais. Nós costumávamos estimar os aluguéis de moradia baseados em maços de cigarros! Como resposta a essa escassez, você acabava com apartamentos que eram subdivididos, uma família por cômodo, com quatro ou cinco famílias dividindo um banheiro e uma cozinha. Isso certamente não era o que os urbanistas pretendiam.
NG: Uma questão em que você foca muito é a acessibilidade a moradia. Ela é hoje um grande problema em muitas cidades americanas. O que Nova York pode aprender com uma cidade como Jacarta?
AB: Na Indonésia, eles têm pequenos enclaves urbanos, chamados kampungs, onde os moradores locais estabelecem um padrão mínimo de moradia. A cidade não interfere — eles só conectam a infraestrutura. Na prática, a maioria dos kampungs permitem muitas unidades pequenas, dando às pessoas mais escolhas em termos de tamanho de moradia e proximidade com os centros de empregos. Ambos são importantes. Os moradores precisam ter uma renda e eventualmente encontrar um emprego melhor. Para isso, eles precisam de moradias que possam pagar em uma localização que é conveniente para encontrar trabalho.
Por outro lado, as cidades ocidentais tipicamente requerem um nível mínimo de consumo de moradia, exigindo que apartamentos sejam muito grandes e tenham coisas como vagas de garagem. Essas regulações são bem intencionadas — eles veem pessoas aglomeradas e insistem em unidades maiores, por exemplo. Mas ao menos que o Estado possa prover subsídio ou gratuidade a todos que não podem pagar por esse nível de moradia, isso apenas empurra as pessoas para longe dos centros de empregos, piorando as coisas.
Eu comparo isso com a comida: você não pode alimentar um faminto apenas determinando que todos comam duas mil calorias por dia. Isso é absurdo. Você precisa fornecer mais comida. Da mesma maneira, cidades como São Francisco tem que aumentar a oferta de solo e deixar que os consumidores determinem o tamanho das unidades.
NG: Mais adiante no livro Order without Design, você distingue visões e indicadores. Por que você prefere indicadores?
AB: Com frequência, nas cidades, a prefeitura tem dois ou três slogans, mas esses slogans não são mensuráveis. Por exemplo, você diz “Nós vamos tornar a cidade mais habitável”. Ótimo! Todos são a favor de uma cidade mais “habitável”. Mas se você não tem indicadores que refletem essa meta, é papo furado.
Não vou fazer muitos amigos dizendo isso, mas um prefeito é basicamente um zelador glorificado. Seu primeiro trabalho é manter a qualidade de infraestrutura e serviços na medida em que a cidade cresce organicamente. Esse foco em uma “visão” enfatiza o controle de cima pra baixo, quando o trabalho do prefeito deveria ser na verdade em torno de indicadores que emergem de baixo pra cima.
Um exemplo desse tipo de administração pragmática é como os chineses apoiaram o desenvolvimento do Delta do Rio das Pérolas. Eles abandonaram o seu jeito centralizado de pensar e começaram a pensar em termos de clusters. Esses clusters tinham se desenvolvido por si próprios, espontaneamente, como resultado do crescimento das indústrias de alta tecnologia e exportação. Eles basicamente disseram: “Está ótimo; essa é uma nova forma de urbanismo e nós vamos apoiá-la”. Agora 65 milhões de pessoas vivem no Delta do Rio das Pérolas e os urbanistas estão ajudando a apoiar a integração regional.
NG: Então se a transformação urbana deveria ser predominantemente um fenômeno de baixo pra cima, qual você acredita ser o trabalho dos urbanistas?
AB: Planejamento urbano é um papel importante a ser executado. Com a exceção de regulamentações de segurança, urbanistas deveriam focar muito menos no que as pessoas fazem na sua rotina ou no seu apartamento, e muito mais na administração dos espaços públicos, como ruas e parques.
Assim como os urbanistas lidam com usos do solo e densidades, eles deveriam monitorar de perto as tendências para estarem por dentro do que está acontecendo. Por exemplo, em Nova York, o tamanho da moradia despencou nos últimos trinta anos. Os urbanistas deveriam estar conscientes disso e atacar a falta de flexibilidade que previne a cidade de acomodar essas mudanças demográficas.
Uma área em que os urbanistas deveriam ter um papel muito mais ativo é a mobilidade, principalmente adaptando os sistemas existentes a tendências emergentes. Mobilidade urbana é a chave para a moradia acessível. Uma melhora no transporte urbano faz com que mais áreas estejam disponíveis para moradia e portanto permite que mais pessoas com baixa renda vivam em áreas que são baratas e com acesso a maior parte da cidade.
NG: Você tem se envolvido com planejamento na França. Qual é a perspectiva do planejamento urbano sobre os protestos recentes contra a taxa sobre o combustível em Paris?
AB: Quando se pensa em Paris, você pensa no centro histórico da cidade, que é bem servido por uma densa rede de metrô urbano. O metrô atende 2,5 milhões de pessoas. A área metropolitana de Paris tem 11 milhões de pessoas. Quase três quartos das viagens nessa área metropolitana é dos subúrbios para os subúrbios. O metrô e o trem suburbano não servem a essas pessoas — a maioria das pessoas precisa usar o carro para chegar ao trabalho.
Os protestos têm sido completamente absurdos. Mas eu entendo porque as pessoas estão indignadas. O imposto sobre combustível representa mais da metade do preço da gasolina. É completamente legítimo ter imposto sobre carbono, mas o governo deveria ter feito o que todo urbanista deveria fazer antes de qualquer decisão: perguntar. “Quem vai pagar por essa mudança na legislação? Quem vai pagar o peso desse imposto?” Nesse caso, está sendo pago pelas pessoas que ganham cerca de 20 a 30 mil por ano e já gastam muito com transporte.
A primeira reação desse governo foi dizer “Oh, nós vamos investir mais em transporte público!”. Mas isso não resolve o problema. Se você é uma enfermeira numa área rural, que vai de casa em casa, o aumento no imposto do combustível vai afetar uma parcela significativa da sua renda. E o transporte público não vai resolver o seu problema. Para atingir o mercado de trabalho de Paris, localizado principalmente nos subúrbios, e achar um bom emprego, muitas pessoas dirigem entre 20 e 30 quilômetros. Eles dependem muito dos automóveis privados.
No meu livro Order without Design, eu falo muito de curvas de distribuição de renda. Toda vez que os urbanistas fazem algo, deveriam perguntar: quem vai pagar por isso?
Texto publicado originalmente em Market Urbanism em 11 de dezembro de 2018. Traduzido para o português por João Neves, com revisão de Anthony Ling e Gabriel Lohmann.
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