Entendendo a acessibilidade habitacional: o efeito cascata
Foto: Wikimedia Commons

Entendendo a acessibilidade habitacional: o efeito cascata

O efeito cascata na habitação, também conhecido como filtragem, sugere uma forma de lidar com o problema da acessibilidade habitacional. Porém, sua abordagem pode ser simplista e é preciso entender as complexidades da dinâmica do mercado e das cidades.

30 de janeiro de 2025

Com os desafios habitacionais dominando as discussões nas cidades ao redor do mundo, não surpreende que as soluções sejam frequentemente apresentadas com frases de efeito que parecem simples e intuitivas. Infelizmente, algumas dessas frases são repetidas tantas vezes que acabam sendo tomadas como verdades. A teoria do “efeito cascata” na habitação, também conhecida como filtragem, é um exemplo clássico disso – um conceito usado em debates, muitas vezes sem um entendimento real de suas limitações. Políticos são especialmente culpados por isso, mas não são os únicos que tratam essa teoria como uma verdade absoluta, em vez de um arcabouço cheio de suposições falhas.

Antes de mergulharmos nos detalhes, vamos pausar para lembrar o que é, afinal, uma teoria.

Uma teoria é uma forma de explicar como ou por que algo funciona, com base em evidências e raciocínio. Não é uma lei da natureza. Trata-se de uma interpretação de observações que pode nos ajudar a fazer previsões ou identificar padrões. As teorias são ferramentas poderosas, mas não são verdades absolutas. Elas evoluem quando surgem novas evidências ou perspectivas e quase sempre funcionam dentro de determinadas condições. É importante destacar que as teorias são moldadas pelos pontos de vista das pessoas que as desenvolvem. Isso significa que são inerentemente limitadas – podem não capturar totalmente a complexidade das situações do mundo real.

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Isso nos leva à teoria do efeito cascata, ou filtragem, na habitação. Apesar de ser tratada como uma verdade fundamental em alguns círculos, está longe de ser uma lei inabalável. Ela se baseia em suposições que nem sempre se sustentam na realidade.

Mas, afinal, o que é a teoria do efeito cascata? É a ideia de que, à medida que novas habitações de alto padrão são construídas, famílias mais ricas se mudam para elas, deixando para trás moradias mais antigas e menos caras para os grupos de renda média e baixa. À primeira vista, parece uma forma natural e eficiente de lidar com a acessibilidade habitacional – simples, certo? Bem, simples demais. A realidade dos mercados habitacionais é muito mais bagunçada, moldada por restrições de oferta, desigualdades e políticas que interrompem esse suposto fluxo.

Para entender por que a teoria do efeito cascata não funciona tão bem quanto se anuncia, precisamos desconstruir as suposições nas quais ela se baseia. Aqui estão as três principais – e por que elas desmoronam na prática:

  • A oferta habitacional é elástica em todos os níveis: Essa suposição sugere que os incorporadores podem e vão construir habitações suficientes em todas as faixas de preço para atender à demanda. Porém, na realidade, as leis de zoneamento restritivas, os altos custos de construção e as barreiras regulatórias tornam mais fácil focar em projetos de alto padrão, onde os lucros são maiores. Isso deixa as famílias de baixa renda com poucas ou nenhuma nova opção de moradia.
  • A dinâmica de mercado, sozinha, garante distribuição equitativa: A teoria assume que, à medida que famílias mais ricas desocupam unidades mais antigas, essas moradias vão naturalmente “filtrar para baixo”, para grupos de menor renda. Mas o que realmente acontece? Unidades mais antigas são frequentemente reformadas, requalificadas ou adquiridas por investidores, especialmente em bairros em processo de gentrificação. Em vez de “gotejar para baixo”, as moradias tendem a “gotejar para cima”, com famílias mais ricas superando as mais pobres na disputa por qualquer estoque disponível.
  • Necessidades habitacionais homogêneas: A teoria também presume que o estoque de moradias desocupadas será adequado às famílias de baixa renda em termos de tamanho, qualidade e localização. Na prática, isso raramente é alinhado. Habitações que ficam longe de empregos ou serviços – ou unidades muito grandes e caras para manter – não resolvem os problemas de acessibilidade para aqueles que mais precisam.

Essas suposições falhas explicam por que a teoria do efeito cascata fracassa como solução independente. Ela reduz a complexa questão da acessibilidade habitacional a um processo linear e simplista que ignora desigualdades estruturais e realidades espaciais. Quando deixadas à própria sorte, as forças de mercado priorizam lucros, não inclusão, deixando as populações mais vulneráveis desassistidas. O mercado é um mecanismo desprovido de sentimentos ou valores morais.

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Alain Bertaud, em seu livro “Ordem sem Design”, oferece uma crítica incisiva, mas equilibrada, a essa abordagem. Ele argumenta que, embora o efeito cascata possa ocorrer de forma limitada, ele não consegue abordar toda a complexidade da oferta e demanda habitacional. Em Xangai, por exemplo, mesmo a construção em larga escala de novas habitações não aliviou os desafios de acessibilidade para grupos de baixa renda, porque o novo estoque não foi distribuído de uma forma que atendesse às necessidades dessas populações.

Bertaud também traz luz ao fenômeno oposto – o efeito de “cascata para cima”. Quando a oferta é limitada, famílias mais ricas superam as mais pobres na disputa por moradias existentes, frequentemente deslocando estas últimas no processo. Essa dinâmica, vista em cidades com zoneamento restritivo e alta demanda, frequentemente agrava a desigualdade. Em Chennai, por exemplo, habitações de interesse social subsidiadas eram frequentemente adquiridas por famílias de renda mais alta, capazes de pagar mais. Esses exemplos destacam como os mercados habitacionais respondem a forças econômicas, não a intenções, e por que modelos simplistas falham em entregar resultados equitativos.

Outro aspecto crítico do problema é entender o consumo habitacional – o tipo e a quantidade de habitação que diferentes famílias efetivamente ocupam. Isso inclui área útil, localização e qualidade. Famílias de baixa renda frequentemente “consomem” muito menos habitação do que os padrões socialmente aceitáveis determinam, seja devido ao tamanho inadequado, localização desfavorável ou qualidade inferior.

O método de Bertaud conecta explicitamente a distribuição de renda ao tamanho da habitação (ou seja, às necessidades de área útil) e demonstra como isso pode ser usado como uma ferramenta de diagnóstico para orientar os resultados de mercado. Como mostrado abaixo, essas informações podem ser representadas graficamente para informar políticas e tomadas de decisão.

Distribuição de renda e tamanho da habitação – resultado do mercado. Imagem: livro Ordem Sem Design, de Alain Bertaud

Bertaud explica claramente como esse método pode ser aplicado a outras cidades, usando Hanói, no Vietnã, como estudo de caso.

Como os gráficos “Distribuição de renda e tamanho da habitação – resultado do mercado” são usados no contexto de Hanói, Vietnã. Observe as conexões entre área por moradia, renda familiar e número de famílias. Imagem: livro Ordem Sem Design, de Alain Bertaud

A importância dos dados sobre consumo habitacional não pode ser subestimada, e vale destacar que a maioria das cidades não coleta informações sobre consumo habitacional no nível detalhado que Bertaud propõe. Por exemplo, as necessidades de área útil de diferentes grupos de renda raramente são levantadas, e municípios como Vancouver não são exceção. Isso impede que os governos identifiquem as deficiências necessárias para fornecer habitação acessível e endereçá-las de forma eficaz. Sem informações completas, os governos só conseguem especular (com o trocadilho intencional) sobre como enfrentar a questão da acessibilidade.

Bertaud também aborda os subsídios diretos ou apoios à renda, já que essas medidas são frequentemente propostas como soluções para ajudar famílias de baixa renda a superar a lacuna de acessibilidade habitacional. Embora possam empoderar as famílias a fazer escolhas que melhor atendam às suas necessidades, o sucesso dessas políticas depende de condições críticas. A instituição que fornece os subsídios deve ter recursos suficientes para atender à demanda de todo o grupo qualificado rapidamente. Caso contrário, as famílias permanecem em longas listas de espera, com um sistema de sorteio oferecendo chances mínimas – uma solução que carece de credibilidade para endereçar o problema.

Mesmo quando os recursos são adequados, os subsídios falham se os governos não resolvem as restrições de oferta. Sem remover barreiras como zoneamento restritivo, processos de aprovação demorados e outras regulações que limitam a oferta habitacional, os subsídios apenas aumentam os preços, à medida que a demanda supera a disponibilidade. Subsídios eficazes exigem tanto suporte direcionado quanto reformas sistêmicas para evitar se tornarem contraproducentes.

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Bertaud também enfatiza que a política habitacional deve conectar a distribuição de renda à tipologia habitacional – os tipos de habitação disponíveis, desde apartamentos em grandes edifícios até assentamentos informais – para garantir que a oferta esteja alinhada com as necessidades de diferentes grupos de renda. Em Mumbai, por exemplo, as famílias de baixa renda que vivem em assentamentos informais consomem muito mais terra por unidade de área útil do que aquelas em habitações formais, refletindo uma ineficiência gerada pela necessidade. Alinhar a oferta com as realidades espaciais e econômicas pode reduzir essas ineficiências e, ao mesmo tempo, melhorar o acesso à habitação adequada.

A localização também importa muito. Moradias acessíveis que estejam longe de empregos, escolas ou transporte público não são verdadeiramente acessíveis. Quando governos constroem habitações em áreas remotas para economizar nos custos de terra, eles isolam os moradores de oportunidades econômicas. Isso leva a falhas como programas de realocação de favelas, em que os residentes abandonam as novas moradias em favor de assentamentos informais mais próximos dos centros urbanos.

Loteamento do “Minha Casa, Minha Vida” em uma área isolada em Eunápolis (Bahia). Foto: Wikimedia Commons

Também é importante compreender como a economia de práticas comuns de Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS) pode minar a acessibilidade. Novos eixos de transporte, por exemplo, podem aumentar o valor das terras adjacentes e empurrar as habitações acessíveis para longe desses locais estratégicos, para onde o custo da terra é mais barato.

Então qual é a alternativa?

Adotar estratégias multifacetadas. Expandir a oferta de terras, flexibilizar zoneamentos restritivos e incentivar a diversidade de tipologias habitacionais pode ajudar. Políticas como a redução de tamanhos mínimos de unidades ou limites de densidade podem facilitar a construção de moradias acessíveis que atendam a uma variedade de necessidades habitacionais, dependendo do contexto. Subsídios diretos ou apoios à renda também podem permitir que famílias façam escolhas que melhor atendam às suas necessidades.

Mas, segundo Bertaud, nada disso funciona sem dados confiáveis sobre consumo habitacional, distribuição de renda e acesso espacial – novamente, informações que muitas cidades norte-americanas não coletam de forma abrangente, incluindo a cidade de Vancouver.

Em última análise, enfrentar a questão da acessibilidade habitacional exige superar as suposições simplistas e falhas da teoria do efeito cascata. Isso requer uma abordagem detalhada e baseada em dados que reconheça as desigualdades estruturais e espaciais que moldam os mercados habitacionais.

Artigo originalmente publicado em Spacing, em dezembro de 2024.

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