O que o Parque Ibirapuera em São Paulo tem a ver com o Nobel de Economia?
Na perspectiva do desenvolvimento econômico, vemos que alguns aspectos da configuração urbana de São Paulo são excludentes.
Defendidas por décadas como solução para a mobilidade nos municípios, rodovias que cortam áreas centrais de localidades (vias expressas) têm sido retiradas em diversas cidades do mundo e substituídas por moradias, comércios, parques, calçadas e ciclovias.
23 de junho de 2022Construídas para evitar congestionamentos e facilitar o deslocamento pelas cidades, as estradas rápidas e os viadutos implementados nos centros dos municípios ou em seus entornos não cumprem com o seu propósito. Elas trazem mais problemas que resultados, separando vizinhanças, impactando os negócios e a vitalidade das comunidades e aumentando o tráfego e a poluição ambiental e sonora.
Os investimentos grandiosos realizados nas últimas décadas por diversos países para criar mais infraestrutura para os carros diminuíram a capacidade das localidades de conectar as pessoas entre si e estimular a cultura e o comércio, aponta o estudo “Vida e Morte das Rodovias Urbanas”, financiado pelos departamentos brasileiros do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP, na sigla em inglês) e da organização EMBARQ.
As vias expressas são estradas de acesso limitado em áreas populosas, desenhadas para possibilitar o trânsito motorizado em alta velocidade por longas distâncias, define o ITDP. Por serem “forçadas sobre o traçado urbano”, essas rodovias formam barreiras — que foram batizadas de fronteiras desertas pela escritora e ativista Jane Jacobs — que acabam retirando o dinamismo e o convívio social da rotina das cidades, reforça o relatório da ITDP Brasil e da EMBARQ Brasil. O documento — que apresenta estudos de caso de cinco cidades no mundo que se propuseram a reverter esta condição — afirma, ainda, que essa solução viária é inadequada para os municípios e prejudica tanto habitantes, empreendimentos e bairros próximos às vias expressas como a operação de toda a malha urbana das localidades.
Além de piorar os engarrafamentos — uma vez que a oferta de infraestrutura leva mais indivíduos a usarem seus automóveis — e as emissões de gases de efeito estufa, essas estradas degradam as regiões centrais e as comunidades do entorno, ameaçam lugares de valor histórico e afetam a saúde da população, acrescenta a pesquisa Vida e Morte das Rodovias Urbanas. Crianças que moram perto de vias expressas, por exemplo, têm 50% mais chances de terem asma que as que vivem em outros pontos das cidades, indica outro estudo feito pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento.
Segundo o material, lançado em 2021, cidadãos de grandes municípios podem perder mais de 100 horas por ano no tráfego. Outro dado revela que uma faixa de uma estrada urbana movimenta somente 1,6 mil pessoas em 60 minutos enquanto uma de BRT (ônibus de transporte rápido) leva até 15 mil indivíduos no mesmo período de tempo. Já uma ciclovia de mão dupla pode chegar a 3 mil cidadãos circulando em uma hora. O levantamento ressalta também que pessoas que residem em bairros caminháveis são 15% mais propícias a confiar em seus vizinhos, mostrando a importância da disponibilidade de alternativas de locomoção para o estabelecimento de vínculos com as comunidades.
Essa fórmula de planejar localidades, onde a visão que predomina é a que vincula desenvolvimento à abertura de vias expressas e foca no design para os veículos, ganhou força nos anos de 1950 e 1960 quando os Estados Unidos deram início à implementação do seu Sistema Rodoviário Interestadual Nacional, conectando o país de uma maneira inédita, recorda reportagem do The New York Times. De acordo com a matéria, municípios foram atravessados com pouca preocupação sobre os efeitos que provocariam nos lugares. “Rodovias e vias expressas sempre foram hostis às cidades”, salientou o historiador de Transporte da Universidade da Virgínia, Peter D. Norton, em entrevista para o jornal.
Em locais como Detroit (Michigan), Nova Orleans (Louisiana), Richmond (Virgínia), entre outros, estradas federais e outras vias expressas eram erguidas em prósperos bairros negros em nome da “limpeza de favelas”, enfatiza o The New York Times. Ainda conforme a publicação, grande parte dos projetos de rodovias integrou um programa mais amplo de “renovação urbana que reformulou os municípios norte-americanos na segunda metade do século 20, deslocando mais de um milhão de pessoas em todo o país, a maioria negra”.
Com isso, comunidades densas e de uso misto foram substituídas por gigantes centros de convenções, shoppings e estradas. Essa concepção de urbanismo, que incentiva também o espraiamento das cidades, foi importada entre os anos de 1960 e 1970 por diversas localidades brasileiras, como relata o relatório Vida e Morte das Rodovias Urbanas, que agora precisam lidar com as consequências dessa maneira de desenhar as cidades, assim como repensar a utilização desses espaços e revitalizar bairros e áreas centrais degradados.
Os reflexos da construção de estradas rápidas nas cidades são tema de debates acirrados desde a década de 1950 e foram responsáveis pela famosa briga entre a escritora e ativista Jane Jacobs e o planejador urbano Robert Moses sobre como o município de Nova York deveria ser no futuro. Influente na metrópole e com diversos projetos de vias expressas concretizados, Moses defendia a modernização da localidade a partir da edificação de rodovias e de arranha-céus que dividiam as vizinhanças, destaca reportagem da Fast Company. Um ideal que se contrapunha ao de Jane Jacobs, que acreditava que a vitalidade dos bairros estava na disseminação de comunidades mistas, densas e diversas — em lugares que permitam a interação social.
O embate entre os dois, que nunca se encontraram pessoalmente e que já virou assunto de livro e até enredo de ópera, começou quando a ativista soube, por meio de um panfleto, da proposta de Moses para estender a 5.ª Avenida de Manhattan através do Washington Square Park, no centro histórico de Greenwich Village, como descreve matéria do The Guardian. Jane, que morava no bairro, deu início a uma série de estratégias de comunicação, incluindo uma carta para o prefeito, e de organização da comunidade local para impedir a demolição do parque. Ela conseguiu, inclusive, o engajamento de residentes importantes, como a ex-primeira dama dos Estados Unidos Eleanor Roosevelt.
Enquanto Jane mobilizava a população e terminava sua célebre obra Morte e Vida de Grandes Cidades, o Conselho de Habitação e Redesenvolvimento de Nova York avançava com um estudo para classificar uma extensa área de Greenwich Village como “destruída”, recorda o jornal, o que possibilitaria a remodelação da região em sintonia com a visão de Moses. A escritora também se envolveu nos esforços para evitar que o lugar — densamente povoado e que reunia uma das maiores coleções de arquitetura de ferro fundido do mundo — fosse totalmente descaracterizado. Nenhum dos projetos foi levado adiante e até hoje a concepção de Jane para os municípios continua sendo discutida e adotada por diferentes planejadores urbanos.
Nos últimos anos vêm crescendo o número de localidades norte-americanas com iniciativas para retirar vias expressas e dar novos usos a esses espaços. O Congresso para o Novo Urbanismo (CNU), grupo que tem acompanhado a substituição dessas estruturas, apurou que havia 33 propostas nesse sentido em 28 municípios dos Estados Unidos, conforme reportagem do ano passado do The New York Times. Rochester, no estado de Nova York, é um exemplo de cidade que está repensando seus ambientes urbanos e transformando uma de suas estradas rápidas. Edificada na década de 1950, a rodovia foi erguida onde antes havia moradias e empresas e separou o Centro das demais regiões por meio de uma ampla vala de concreto — conhecida pelos residentes como o “fosso”.
Para “costurar o bairro novamente”, a localidade preencheu cerca de um quilômetro da via expressa, criando uma rua menor, com usos mistos e mais vida no seu entorno. “Rochester mostrou o que pode ser feito em termos de reconectar o município e restaurar um senso de lugar”, observou o professor da Universidade de Connecticut, Norman Garrick, que investiga como a remoção dessas estradas impacta as cidades. Segundo o jornal, Syracuse (Nova York) e Detroit (Michigan) já se comprometeram a trocar trechos da rodovia interestadual por comunidades mais acessíveis e conectadas e muitos outros locais têm sido pressionados por seus moradores para atuarem no combate aos efeitos negativos que essas vias trouxeram, como Nova Orleans (Louisiana) e Dallas (Texas).
Em Rochester, onde antes ficava o “fosso”, agora podem ser vistos sobrados, scooters e bicicletas dividindo o espaço com os carros e diversas ruas transversais que eram cortadas pela estrada foram interligadas, incentivando mais caminhadas na área. E o medo de que o trânsito ficasse pior não se concretizou, aponta o The New Tork Times. Com essa nova abordagem, o município, em vez de fazer com que os indivíduos se movam para dentro ou para fora do Centro da forma mais rápida possível, está tentando tornar essa região um lugar mais habitável.
Passados alguns anos desde o preenchimento do trecho da rodovia (concluído em 2017), muitos prédios estão sendo construídos e novos negócios ainda não se instalaram no bairro. Apesar da revitalização da comunidade, residentes estão preocupados de que não foram abertos ambientes públicos, como praças e parques, e que a edificação de apartamentos de alto padrão (mesmo com a previsão de reserva de unidades para inquilinos de baixa renda e outros grupos vulneráveis) possa levar muitas pessoas a terem que se mudar da área. O projeto prevê também a derrubada de mais uma parte da estrada, na face Norte, que traz desafios diferentes para os planejadores urbanos. Isso porque esse segmento possui mais trânsito e separa há muito tempo dois bairros distintos: um de baixa renda e composto em sua maioria por negros e hispânicos e outro mais rico e branco, como assinala a reportagem do jornal.
Os Estados Unidos, no entanto, não são o único país que está colocando em prática a retirada das vias expressas urbanas. Em Seul (Coreia do Sul), no início dos anos 2000, o projeto de restauração do Cheonggyecheon — um riacho que passa pela região central da cidade — resultou na remoção da estrada, pontes e rampas de acesso erguidas sobre ele e na criação de um parque linear de 5,8 quilômetros de comprimento e 16 metros de largura, com plantas nativas, quedas d’água, praças, fontes, iluminação e mobiliário, como detalha o relatório Vida e Morte das Rodovias Urbanas, do Instituto de Políticas de Transporte e da EMBARQ. Dentre os casos apresentados pelo estudo está também o de Bogotá (Colômbia), que decidiu investir na implementação de um sistema de transporte de massa em vez de construir 17 quilômetros de rodovias, melhorando a circulação e reduzindo os acidentes e a poluição.
Artigo publicado originalmente em Somos Cidade em junho de 2022.
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