5 livros para entender e amar cidades
Imagem: VISUALISTA/Flickr.

5 livros para entender e amar cidades

Não são muitos os livros que mostram o que é uma cidade, como ela funciona e, ainda, com uma linguagem cativante. Mas eles existem!

21 de maio de 2020

O estudo de cidades — urbanismo — é uma área de crescente interesse pelo fato de sermos uma espécie cada vez mais urbana. A medida que se diminui a necessidade de mão de obra para agricultura e indústria, aumenta a proporção de humanos vivendo em centros urbanos, trabalhando com serviços e ideias nestes “reatores sociais”, uma definição de cidade usada pelo estudioso de complexidade Geoffrey West. No entanto, muitos livros nos contam histórias de cidades, outros pulam diretamente para receitas específicas de como corrigir um determinado problema urbano. Não são muitos os livros que mostram o que é uma cidade, como ela funciona e, ainda, com uma linguagem cativante. Nesta seleção, o leitor não só vai entender e amar as cidades, mas descobrir que elas são organismos incríveis e complexos.

Nova York Delirante, por Rem Koolhaas

Capa do livro Nova York Delirante

“A disciplina bidimensional da retícula também cria uma liberdade jamais sonhada para a anarquia tridimensional. A retícula define um novo equilíbrio entre controle e descontrole, em que a cidade pode ser ao mesmo tempo ordenada e fluida, uma metrópole de rígido caos.”

Rem Koolhaas, um dos arquitetos e urbanistas mais influentes da atualidade, nos conta a história de Manhattan, uma das cidades mais relevantes do mundo contemporâneo que teve uma forma singular de urbanização. Dentro do seu xadrez viário rígido, Manhattan permitiu a “anarquia tridimensional”, usando suas palavras, gerando o que o autor chama de “cultura da congestão”, uma condição da vida metropolitana que Manhattan conseguiu extrair ao máximo.

As regulações urbanas adotadas em Manhattan — além do grid — até a II GM eram ínfimas próximas às da atualidade, hoje uma cidade “comportada”. Mas o que aconteceu durante o século que Manhattan atraiu centenas de milhares de imigrantes buscando os céus para acomodá-los? De que forma se desenvolveu uma cidade onde o urbanista sai da cena para abrir espaço aos arquitetos? “Nova Iorque Delirante” faz o leitor mais cético respeitar o “manhattanismo”, tornando-se mais aberto ao experimental, ao radical e a uma cultura da congestão.

São Paulo nas Alturas, por Raul Juste Lores

Capa do livro São Paulo nas Alturas

“Copan. Conjunto Nacional. Galeria do Rock. Galeria Metrópole. CBI-Esplanada. Itália. Bretagne. Paquita. Três Marias. Jardim Ana Rosa. Esses são alguns dos melhores prédios já erguidos em São Paulo. Se é fato que a arquitetura possui temperamento, esses edifícios são altivos e generosos.

Foram todos projetados ou inaugurados entre 1950 e 1960: em pouco mais de uma década, São Paulo viveu um verdadeiro milagre arquitetônico. Em um raríssimo alinhamento de astros, os arquitetos desenhavam os prédios que sonhavam, que agradavam a seus clientes/patrões e que coincidiam com o que o público desejava comprar. A escola moderna vendia, e os três grupos ficavam radiantes com o resultado.”

Assim escreve Raul Juste Lores no início de “São Paulo nas Alturas”. Há quem ache São Paulo uma cidade feia, mas nem sempre foi assim. Como o parágrafo indica, o livro explica os detalhes do sucesso da capital paulista nesta “época de ouro” da arquitetura da cidade.

Jornalista, ex-correspondente em Washington, Nova York, Pequim e Buenos Aires, Raul narra brilhantemente, após dezenas de entrevistas, visitas e pesquisas de inúmeros documentos históricos por que e como este processo aconteceu e por que deixou de acontecer nos anos seguintes, sempre colocando São Paulo e os atores da sua arquitetura no contexto global da época.

“São Paulo nas Alturas” deve agradar não apenas paulistanos e/ou arquitetos, mas aqueles que buscam a beleza e a vida urbana que talvez nossas cidades já tiveram no passado. Os leitores serão cativados pela paixão do autor pela arquitetura e pela cidade, demonstrada não apenas na sua obra escrita mas na continuidade do seu trabalho como editor da Veja São Paulo e um ávido influenciador de redes sociais com os melhores (e piores) exemplos de como a arquitetura influencia no dia a dia do cidadão urbano.

Order Without Design, por Alain Bertaud

Capa do livro Order Without Design

“A ordem criada pelos mercados se manifesta através da forma de cidades. Mercados transmitem informação através dos preços, gerando ordem espacial. Quando preços são distorcidos, também é a ordem gerada pelos mercados.

Planejadores urbanos — em nome de políticos — tentam modificar esta ordem através do design. Estas intervenções de design implementadas pelos planejadores consistem, em sua maioria, em regulações e na construção de infraestrutura e espaços públicos. O objetivo das regulações de planejamento é modificar o resultado de mercados livres para aumentar o bem estar dos cidadãos.

Qual é a extensão da modificação do resultado de mercado atingida pelos planejadores? Varia de poucas modificações em cidades como Houston, Texas, para a completa obliteração em cidades como Brasília, Brasil, e em algumas cidades na antiga União Soviética.”

Depois de uma carreira de 55 anos como urbanista em Tlemcen, Paris, Nova York, Sana’a, Porto Príncipe, Washington, San Salvador e Washington, Alain Bertaud finalmente consolida o conhecimento adquirido em um futuro clássico do urbanismo. Tendo não apenas trabalhado nessas cidades mas, como urbanista do Banco Mundial, tendo tido a experiência de conhecer cidades na China e na Rússia quando estes países tinham economias planejadas, Bertaud traz em “Order Without Design” relatos que remetem a histórias de um verdadeiro “Indiana Jones” do urbanismo, como quando marcava a abertura de novas vias com uma Land Rover no Iêmen em 1970.

Alain descreve seu livro sobre urbanismo como a “interação observada entre mercados econômicos e o design no desenvolvimento de algumas cidades pelo mundo”, com o objetivo de “melhorar o planejamento urbano operacional como é praticado nos departamentos de urbanismo, ao aplicar o conhecimento (e os modelos) de economistas urbanos ao design e planejamento de regulações e infraestrutura.”

“Order Without Design” fala sobre as diferenças, contradições e limites entre o planejamento urbano “desenhado” e a ordem espontânea gerada por mercados, ilustrada pela sua carreira aventureira pelo mundo junto com a sua esposa, Marie-Agnes, também urbanista. Quais os problemas encontrados em cidades onde os preços foram abolidos, sendo totalmente planejadas? Quais são os efeitos não intencionais de regulações sobre acessibilidade à moradia? Qual deve ser o papel de um urbanista ao se deparar com problemas urbanos?

O livro agradará tanto profissionais de urbanismo treinados, trazendo um sólido arcabouço técnico em urbanismo e economia urbana, mas também aqueles que estão iniciando seus estudos sobre cidades. Com linguagem acessível (embora ainda não traduzido para o português), exemplos práticos e ilustrações, as ideias de Bertaud devem impactar profundamente a formação de quem ama as cidades.

O triunfo da cidade, por Edward Glaeser

Capa do livro O Triunfo da Cidade

“A força que advém da colaboração humana é a verdade central por trás do sucesso da civilização e o principal motivo da existência de cidades. Para entender melhor as cidades e o que fazer com elas, precisamos nos apegar a essas verdades e nos desfazer de mitos prejudiciais.

Precisamos descartar a visão de que o ambientalismo significa viver ao redor de árvores e que os urbanistas devem sempre lutar para preservar o passado físico da cidade. Precisamos parar de idealizar a casa própria que favorece loteamentos de casas nos subúrbios, em detrimento dos edifícios de apartamentos, e parar de romantizar as vilas rurais.

Devemos evitar a visão simplistas de que a melhor comunicação a longa distância reduzirá nosso desejo e nossa necessidade de estar perto uns dos outros. Acima de tudo, devemos nos libertar de nossa tendência de ver as cidades como sendo suas edificações e lembrar que a cidade real é constituída de gente e não de concreto.”

Best-seller do New York Times, Ed Glaeser se tornou uma das maiores referências do urbanismo contemporâneo com este livro e um dos meus urbanistas favoritos. Através de uma viagem pelas principais cidades do planeta, Glaeser quebra lendas urbanas que normalmente impedem a urbanização, respondendo questões controversas como “O que há de tão bom sobre os arranha-céus?” e “Não há nada mais ecológico que o asfalto?” com respostas embasadas, elegantes e, no fim, mais pragmáticas que controversas.

Com este livro aprendemos que grande parte do sucesso da humanidade está nas grandes cidades, que nos tornam “mais ricos, inteligentes, saudáveis e felizes”, e não o contrário, como muitos imaginam. No entanto, para que isso aconteça é necessário perder nossos medos irracionais relacionados ao adensamento, à verticalização e à urbanização propriamente dita para, enfim, permitir que a cidade aconteça. A clareza, eloquência e embasamento acadêmico de Glaeser torna “Triumph of the City” (seu título em inglês) uma leitura obrigatória para aqueles que estudam as cidades.

Morte e Vida das Grandes Cidades, por Jane Jacobs

Capa do livro Morte e Vida das Grandes Cidades

“Tratar de uma cidade, ou mesmo de um bairro, como se fosse um grande problema arquitetônico, capaz de ser resolvido através de um trabalho disciplinado de arte, é cometer o erro de tentar substituir a vida pela arte. Os resultados de tão profunda confusão entre arte e vida não são nem arte, nem vida. Eles são taxidermia.”

Este livro é, sem dúvida, um dos livros mais influentes da história do urbanismo e o mais influente no pensamento contemporâneo sobre cidades. Jane Jacobs, uma jornalista canadense morando em Nova Iorque, mostra seu entendimento sobre grandes cidades através das suas próprias observações e vivências urbanas, tornando-se a maior crítica do planejamento urbano modernista do início do século XX, de representantes como Lúcio Costa, Le Corbusier ou Robert Moses.

Através dessas observações, Jacobs denuncia em linguagem direta e auto-didata como as grandes interferências autoritárias dos urbanistas nas cidades construindo viadutos, destruindo patrimônio histórico e bairros inteiros para construir guetos de habitação pública eram as principais causas dos problemas que as cidades estavam enfrentando.

Quem já ouviu falar do conceito de “olhos da rua”, onde calçadas vivas, repletas de gente, aumentam a nossa percepção de segurança na cidade, e de como usos mistos e “fachadas ativas” contribuem para essa vida urbana, deve saber que estes conceitos originaram e se disseminaram principalmente a partir da obra de Jacobs. Uma defensora de uma cidade mais espontânea, admirando no seu texto o crescimento orgânico das cidades antigas, a vida nas ruas, o “balé complexo”, o texto de Jacobs permanece atual até os dias de hoje.

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COMENTÁRIOS

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  • Cara, que show teu blog, já ganhou um fã e um leitor assíduo. Parabéns. Como leigo, já estava cansado de procurar por material de qualidade sobre o assunto e cair apenas em páginas cujos textos seguem agendas políticas. Show, continue assim com honestidade e transparência na hora de passar a informação.

  • Faltou “Por amor às cidades”, adorável entrevista com Jacques Le Goff, e a dupla de Henry Lefebvre: “O Direito à Cidade” e “A Revolução Urbana”.

  • Anthony Ling,

    Muito oportuno o post, mas a maior parte desses livros não levam em consideração um aspecto básico que explica as cidades, são visões que ignoram o contexto social, econômico e político sob os quais as cidades são produzidas.

    Gostaria de sugerir outros livros:

    Ermínia Maricato. Para entender a crise urbana

    Flávio Villaça. Espaço intraurbano no Brasil

    Nabil Bonduki. Origens da habitação social no Brasil.

    David Harvey. A produção capitalista do espaço.

    • Alex, obrigado pela leitura e pelas suas sugestões.

      Gosto muito mesmo dos textos do Nabil e do Villaça, mas a lista foi direcionada principalmente àqueles iniciando seus estudos em urbanismo ou àqueles que não são necessariamente da área mas que tem um grande interesse por ela. Estes dois textos que você recomendou são, no meu entendimento, muito acadêmicos ou até densos demais para este público.

      Já as indicações da Maricato e do Harvey, embora tragam luz ao debate sobre cidades, são textos essencialmente políticos, que também achei que não se enquadrariam no perfil desta lista.

      Por fim, devo discordar de que as indicações aqui colocadas “ignoram o contexto social, econômico e político sob os quais as cidades são produzidas” pois, se fosse o caso, seriam irrelevantes para o entendimento sobre as cidades. A leitura dos mesmos me parece deixar claro que este não é o caso.

      Um abraço,
      Anthony

  • Parabéns pelos artigos! O momento urge discutir o presente e o futuro das cidades. Entender tendências e os cenários complexos que estão por vir.

  • Gostei do artigo 5 livros para entender e amar as cidades. Mas faltou o livro mais importante. Existe uma obra fundamental quando o assunto é cidade: A cidade na História. Leo Hubermann

  • Anselmo, obrigado pelo comentário detalhado. Leitores como você são essenciais para o início de um debate sério sobre a cidade, algo que falta no urbanismo brasileiro. Gostaria, assim de responde-lo com minhas observações.

    Entendo o seu ponto de vista no sentido de que é difícil alterar o zoneamento de um bairro que JÁ POSSUI possui zoneamento pois o cidadão se sente no direito de defender as características legais que existiam quando ele comprou o imóvel. No entanto, essa legislação é semelhante ao protecionismo ou subsídios que empresários tem para atuar em um determinado mercado: eles abrem suas empresas se beneficiando de uma legislação, embora essa legislação os beneficie em detrimento do resto da sociedade. Este é o mesmo resultado do zoneamento. Talvez seja razoável defender uma reparação para estes moradores na eliminação do zoneamento, mas é difícil argumentar que ele traz resultados bons para a cidade como um todo.

    No entanto, você estende a sua defesa nesta escala falando sobre externalidades, e assim sigo minha resposta.
    Primeiro, o próprio zoneamento é aquele que atualmente mais produz externalidades nas cidades, como comentei antes. Poluição e ruído gerado pelo trânsito é em grande parte resultado do zoneamento, que você contesta mas vou discorrer em maior profundidade em seguida.

    Em seguida, você comenta sobre a “internalização de externalidades” produzida pelo zoneamento. É exatamente isto que defendo com loteamentos e bairros privados, onde os moradores tem controle da propriedade e, assim de como será este zoneamento. Não vejo nada de errado com isso.
    O problema é quando se delega este zoneamento ao poder público, que pode impor um determinado zoneamento sobre um bairro que não gostaria desse zoneamento, eliminar um zoneamento que os moradores gostariam de fato arcar com os custos para mantê-lo ou, ainda, privilegiar moradores com zoneamentos que produzem resultados negativos para a cidade mas que não transferem estes custos aos moradores, como é o caso dos bairros Jardins, em São Paulo. Produzido por um loteamento privado este zoneamento foi incorporado à legislação da cidade, e hoje protege os moradores mais ricos da cidade para que o bairro deixe de se transformar, sem que haja pressão imobiliária no preço dos seus terrenos.
    Em seguida, você vê o zoneamento como a única forma de resolver as externalidades, o que é falso. Além dos bairros privados, condomínios e loteamentos já mencionados, alguns casos podem ser resolvidos com “Coasian bargaining” (ver Teorema de Coase) e em outros casos a externalidade negativa é simplesmente irrelevante, dados os benefícios das externalidades positivas da ausência do zoneamento. Isso é o caso no desenvolvimento de muitas das grandes metrópoles da humanidade. O desenvolvimento de Nova York por mais de um século não tinha este tipo de provisão, mas milhões preferiam habitar a cidade de qualquer maneira dado o spillover effect da cultura, educação e oportunidades de trabalho que a metrópole gerava para os seus habitantes. Nossos centros urbanos se desenvolveram da mesma forma, com ausência de zoneamento e uma grande atratividade, que hoje voltam a se tornar bairros chave nas nossas metrópoles justamente dadas às suas qualidades urbanas.

  • Que é metrópole, justamente, por isto, por atrair gente em busca de trabalho em diferentes pontos da cidade gerando tráfego e mais tráfego. E, além de tudo há zonas de uso misto justamente para suprir esta lacuna para quem assim prefere. Jane Jacobs & Cia estão na moda, muito bem, mas para além da downtown existe outro tipo de mundo com necessidade de outro projeto. Afinal, mesmo ela tinha um conservadorismo adequado para uma Manhattan que devido ao liberalismo econômico que defendia pode não ser a Manhattan de amanhã. Sua visão de bairros diversificados e com comércio intenso pode dar lugar à grandes shoppings que porão abaixo a convivência dos pequenos empreendedores devido à ausência de zoneamento. Nem defendo isto, mas pode ocorrer, por que não? A esta altura tu deve estar pensando “o sujeito quer engessar toda a cidade…” Não. O zoneamento pode ser flexível e mutável como, na verdade, já é. E, mais do que isto, o zoneamento pode ser substituído por um tipo de legislação mais inteligente… Vejamos o caso dos condomínios: no caso de Jacobs, os passeios públicos, o espaço de convívio não é “socialismo”, mas uma necessidade do liberalismo (econômico), uma vez que só os espaços privados limitam o fluxo, o comercio e, por fim, a liberdade. Por isto, a ideia de que condomínios preencheriam a necessidade que um zoneamento se propõe me traz desconfiança. Não vejo a defesa dos condomínios como solução para acabar com o zoneamento, mas vejo sim, o zoneamento como podendo ser alterado e adequado às novas necessidades. Admito, no entanto, que o zoneamento possa ser substituído por uma legislação eficiente que impeça que externalidades negativas atinjam o interior do imóvel, mas isto vai depender de adaptações tecnológicas não totalmente disponíveis que não provoquem a poluição indesejada que atinge moradores estejam onde estiverem.
    Grato pela atenção.

    • A tendência, ao contrário do que você falou, é que as atividades produtivas poluam cada vez menos. As cidades eram mal vistas no passado pois eram os centros das indústrias altamente poluentes, e as pessoas viviam em meio à chaminés de fumaça preta (lembrando que, mesmo assim, preferiam esta vida do que a vida no campo). Cada vez mais criação de riqueza depende menos de manufatura e mais de criatividade e serviços, com manufatura de processos mais otimizados e mais limpos.
      Por fim, o próprio mercado imobiliário organiza essas funções no território de forma altamente eficiente, eu diria que mais eficiente que o zoneamento pelo burocrata. Fábricas poluentes simplesmente não se inserem em meios urbanos pois precisam de grandes galpões com proximidade à infraestrutura rodoviária, algo oposto à terrenos caros e apertados nos centros urbanos onde essas externalidades se concentrariam.
      Agora, comentando sobre o trânsito, acredito que você se equivoca ao chegar à uma conclusão baseada nas suas suposições pessoais e não nas evidências reais de como as cidades se desenvolveram. Bairros monofuncionais e com densidade restrita por zoneamento prejudicam a caminhabilidade por distanciar as atividades, o que por sua vez prejudica o funcionamento de todo o sistema de transporte coletivo para as viagens trabalho-casa. Além disso, uma multiplicidade de tarefas diárias além da viagem casa-trabalho deixam de ser feitas a pé e passam a ser feitas de carro: ir à farmácia, ao supermercado, no banco, na padaria, no dentista, costureiro, etc. Durante minha infância morei em um bairro residencial zoneado e sempre dependi do carro para estas tarefas. Hoje moro em um bairro misto e faço todas elas a pé, e isso é verdade para qualquer morador de uma metrópole. A literatura sobre este tema é vasta e praticamente uma unanimidade no estudo contemporâneo de urbanismo.
      No fim você fala que o zoneamento deve ser flexível, mutável e inteligente: de que forma, se ele prejudicaria os moradores como você argumentou no início? Não vejo como defender esta tese sem contradizer os argumentos principais da sua defesa.
      Em seguida, você argumenta que condomínios exterminam a vida na rua do passeio público. No entanto, é exatamente o mesmo resultado que bairros monofuncionais geram na cidade, o que deveria ter a mesma conclusão. Ainda assim, não defendo estritamente condomínios, mas principalmente loteamentos e bairros privados, que são espaços abertos ao público mas de administração e propriedade privada.

  • Anthony, eu não vejo desta forma. Tua analogia sobre o impedimento de uma atividade sair de um bairro ser tão danosa quanto à proibição de entrar não procede. Em primeiro lugar, concretamente falando porque não é disto que se trata de um zoneamento: de impedir a liberdade de extinguir um negócio ou decretar falência, mas sim de impedir e/ou limitar a presença de fatores indesejáveis ao que os moradores locais aceitaram como parte da constituição da localização de seu imóvel. Este, o imóvel não existe solto no espaço, quando se compra algum, se compra o mesmo com certas características. A questão não é que “certas características o valorizaram”, mas que elas impediam a deterioração do próprio imóvel. Não me refiro ao valor de troca deste, mas sim ao seu uso. Não é justo que tais características sejam prejudicadas por elementos que as transgridam sem ao menos alguém ter que pagar por isto. Exemplos? Determinados tipos de poluição. Por isto o zoneamento é sensato, uma vez que certas atividades, no atual estágio de desenvolvimento tecnológico em que nos encontramos, poluem mesmo, seja atmosférica, sonora, visualmente, por cheiro etc. se admite sua ocorrência em áreas apropriadas para tal fim. O que não pode é se adquirir um imóvel e, de repente, a externalidade negativa nos atingir dentro do lar e se alegar com isto que “está fora de teu imóvel, então tudo bem”. Claro que não “está fora”, pois o fator impactante trouxe sua consequência até mim, até o interior do mesmo imóvel. O zoneamento se configura como consequência ‘natural’ (entre aspas) de uma cidade que é, dentre outras coisas, um campo de conflitos de interesses e não um todo harmônico onde todos concordamos com tudo. Sobre as aspas: não existe naturalidade em sistemas sociais, por isto coloquei a expressão entre aspas, mas o zoneamento é tão necessário que até mesmo cidades que não o têm (como Houston) apresentam acordos com os vizinhos (veja a importância da base local, descentralizada) que, em termos práticos, dá no mesmo, na restrição. Agora se eu fosse religioso e comprasse um imóvel porque está próximo de uma igreja, para digressar mais no teu contra-exemplo… E esta igreja abandonasse o bairro, eu não teria o direito de protestar, ao menos legitimamente, porque o beneficio que o culto me trazia não era algo que “entrava no meu imóvel”. Já, se eu fosse avesso a ideia, eu poderia reclamar se o ruído (os cânticos) adentrassem no meu imóvel acima do permitido. “Acima do permitido…” Qual o nível tolerável? Depende da zona em que teu imóvel está inserido. Quanto ao outro exemplo de que o tráfego intenso existe porque há bairros monofuncionais… Também discordo porque a cidade não é, mesmo onde não há ou não houve zoneamento, cidades com bairros auto-suficientes. Ela reflete o mercado e o centro (ou centros) tendem a concentrar atividades variadas que levam ao tráfego devido à demanda por seus produtos. Mesmo porque, a auto-suficiência de bairros não impede deslocamentos porque pessoas vêm e vão trabalhar em diferentes bairros mesmo que houvesse vários tipos de atividades em seu próprio bairro. Não há como ter uma VW em cada bairro de São Bernardo do Campo, p.ex. É diferente de ter padarias ou super mercados em cada bairro… Mesmo tendo bairros completos, no sentido de oferta de serviços teremos, obviamente, trânsito intenso conforme a oferta de trabalho aumentar na metrópole.

  • Boas dicas, embora nada seja tão simples assim. Veja esta análise sobre The Gated City, de Ryan Avent:

    “Cidadãos urbanos normalmente gostam não só de imóveis mais baratos mas dos atrativos e atributos de que uma cidade é feita: possibilidades de emprego, lazer, educação e serviços de todo tipo. No entanto, sempre que surge a oportunidade de trazer essas características para a cidade – construindo novas unidades para acomodar mais gente – aqueles que moram próximo dessas construções normalmente fazem o possível para impedir sua execução.

    “A grande contribuição de Ryan Avent para a literatura de urbanismo com este pequeno livro (disponível apenas para Kindle) é mostrar como funciona o mercado imobiliário e quais os efeitos não intencionais de restrições de oferta à moradia. A ideia central é de que impedir a construção de mais unidades (ou “NIMBYism”, “Not in My BackYard”) torna as cidades cada vez mais parecidas com condomínios fechados, exclusiva à população de fora já que é impossível acomodar mais gente, uma “Cidade Cercada”, na tradução literal do título.”

    É lícito comprar um produto que passa a ser adulterado com o tempo sem que haja aviso prévio disto acontecer? Quando se compra um imóvel também se compra um lugar, com certas características garantidas por um zoneamento urbano. Se você está disposto a abrir mão disto em nome do desenvolvimento urbano, não reclame quando o som de uma casa notura ou cheiro de fritura do restaurante chinês que foram abertos ao lado de tua residência te invadirem os sentidos, pois é isto mesmo que se configura no limite da liberdade irrestrita ao ponto de suprimir a liberdade de não ser importunado pelas externalidades da vizinhança. Você está pronto para isto?

    >> rendering freedom: 5 livros para entender e amar cidades http://www.renderingfreedom.com/2014/05/5-livros-para-entender-e-amar-cidades.html?spref=tw

    • Anselmo, obrigado pelo comentário!

      Discordo da sua observação. O produto que você compra é o seu imóvel, no seu terreno. É possível comprar lotes em bairros privados e condomínios que garantem as decisões de um ambiente maior pelos proprietários. Não acredito que isso deva ser aplicado na cidade como um todo por uma série de motivos.

      Primeiro, o que está no entorno do seu imóvel não é seu, não é o produto que você comprou, mas sim produtos que outras pessoas compraram e tem liberdade de alterá-los. A sua prerrogativa congelaria o mundo ao redor da sua propriedade considerando que você comprou o bairro inteiro, o que não é verdade. Caso você queira controlar o bairro inteiro, você deve comprar o bairro inteiro.

      Em seguida, é impossível dizer o que é uma mudança “aceitável” e o que não é no ambiente do seu entorno. Se você se mudou porque existe um restaurante que você gosta na frente do seu prédio, você vai proibir que ele deixe de existir para manter as “qualidades do lugar”? Claro que não. Assim como você usa o exemplo de abrir novos empreendimentos que você não deseja no seu bairro a situação também deve ser imaginada no sentido contrário, empreendimentos fechando ou indo embora.

      Em seguida, se você está falando em externalidades, elas são muito mais impactantes por causa do zoneamento do que apesar dele. Trânsito é gerado pela necessidade de deslocamento gerado por bairros monofuncionais, o que também gera poluição. Bairros atraentes ficam cada vez mais caros e outros deixam de se transformar e morrem, porque estão congelados pelo zoneamento. Zonas industriais abandonadas existem exatamente por este motivo, assim como bolsões elitistas como os Jardins em São Paulo.

      Enfim, como você mesmo falou, a questão não é tão simples assim. Recomendo a leitura dos livros e deste blog, que talvez faça você entender melhor meus argumentos.

      Abraços,