Vamos apagar a linha imaginária que divide as cidades brasileiras
Imagem: S-t-v/Flickr.

Vamos apagar a linha imaginária que divide as cidades brasileiras

As cidades brasileiras não apenas convivem com a irregularidade no uso do solo urbano mas passaram a depender dela.

9 de dezembro de 2019

Em alguns aspectos, a existência de favelas e outras áreas irregulares hoje funciona como uma ferramenta não oficial de desenvolvimento urbano, sem a qual cidades brasileiras seriam ainda menos funcionais, colocando em xeque o próprio sistema que define a linha imaginária que separa o “regular” do “irregular”. A cidade formal da informal.

Poucos setores da hiper-regulada economia brasileira são tão restritos pela legislação quanto o uso do solo para fins urbanos. Não por outra razão, esse é um dos setores em que o mercado lícito — frequentemente denominado mercado formal, um eufemismo — tem mais dificuldade em gerar oferta compatível com a demanda.

Pela legislação, são proibidos lotes urbanos menores que 125 metros quadrados, lotes em morros muito íngremes ou às margens de corpos hídricos, por exemplo. Qualquer subdivisão de uma gleba em lotes deve ser precedida de uma série de estudos de impacto ambiental, de impacto de trânsito, etc., que atestem a sua viabilidade de acordo com critérios de cada prefeitura.

Grande parte das glebas a serem urbanizadas devem ser convertidas em área de domínio público. Todas as redes de infraestrutura devem ser implementadas pelo empreendedor no prazo máximo de quatro anos, para então serem doadas ao governo e — via de regra — geridas por concessionárias monopolistas, que passarão a cobrar dos próprios habitantes do loteamento, pela sua utilização.

Mais ainda, qualquer construção que se pretenda edificar sobre um dos lotes resultantes deve ser antecedida por um longo processo de aprovação pela prefeitura, a quem caberá verificar se o projeto atende aos parâmetros definidos pelo zoneamento, códigos de obras e uma série de outras leis, compostas por índices tão absurdos, no plano conceitual, quanto arbitrários, no plano concreto.

Alguém poderia imaginar que quanto mais próximas da conformidade estivessem nossas cidades, mais inclusivas, menos violentas, mais ecologicamente sustentáveis e mais prósperas elas seriam. Em vários aspectos, porém, ocorre justamente o contrário. Muitas das mazelas urbanas — do intenso congestionamento de veículos à exclusão social, da poluição do ar à violência — não são geradas pela ausência de conformidade ao aparato legislativo mas, como argumentaremos a seguir, atenuadas pelo desrespeito a diversas leis.

É preciso reconhecer como algo auto evidente, empírico e indisputável que os parâmetros, regras e procedimentos definidos nas leis e normas são inexigíveis e inatingíveis. Basta olhar pela janela para ver o desenvolvimento informal que surge para atender uma demanda ignorada pelas regulações.


Basta olhar pela janela para ver o desenvolvimento informal que surge para atender uma demanda ignorada pelas regulações.


Por mais que não se possa ignorar seus vários efeitos negativos, as áreas constituídas ilegalmente geram alguns efeitos positivos, livres das normas enraizadas de como fazemos cidade.

Um desses benefícios é a oferta de moradia barata, atendendo a uma clara necessidade de mercado. Como o mero custo de atender às inúmeras exigências legais já é suficiente para tornar o produto imobiliário formal inacessível a grande parte da população, os extratos socioeconômicos mais baixos de nossas cidades ficam excluídos do mercado formal, exceto se por meio de subsídios diretos e programas de distribuição de riqueza. 

A lei da oferta e demanda é tão irrevogável quanto a lei da gravidade, e o mercado tende a se ajustar à insuficiência combinada do mercado convencional e dos programas de subsídio, oferecendo alternativas de habitação informal a preços compatíveis com o poder aquisitivo da população, já precificando os efeitos da alienação legal — acesso dificultado à infraestrutura, ao crédito, à segurança jurídica, à proteção policial e até mesmo à prestação de justiça.

Vista aérea de Manaus, capital com grande nível de informalidade.
Vista aérea de Manaus, capital com grande nível de informalidade.

Ao lado da maior oferta habitacional, outra externalidade positiva da constituição de assentamentos infralegais é o adensamento populacional dos centros urbanos. 

A irregularidade urbana frequentemente envolve a extrapolação dos limites populacionais estabelecidos para uma determinada zona do território. Com gente morando onde teoricamente não poderiam, a densidade resultante da mancha urbana passa a ser maior — após o assentamento irregular — do que a prevista pelo plano diretor, zoneamento e/ou outros instrumentos legais e normativos.

O adensamento e a miscigenação de usos são medidas fundamentais à reversão de muitos dos problemas urbanos que vivemos em nossas cidades. Maior densidade significa menores distâncias de deslocamento, que significa mais viabilidade econômica do transporte coletivo e mais trajetos a pé ou de bicicleta. Significa mais gente na rua e, consequentemente, mais segurança. Analogamente implica em sistemas de infraestrutura mais compactos e mais eficientes, com menor custo de operação e utilização. E por aí vai.

O espalhamento das cidades, entretanto, é induzido pela legislação. Limites arbitrários — e bastante restritivos — aos gabaritos, potenciais construtivos, vagas obrigatórias, padrões construtivos, etc., levam ao esgotamento do direito de se construir nos centros e restringem o adensamento e a verticalização, fazendo com que a expansão privilegie a dimensão horizontal e dependa de novos terrenos nas franjas da cidade para continuar acontecendo.


Não deveriam ser ilegais, por exemplo, lotes menores que 125 metros quadrados […] e a maioria das normas arquitetônicas comumente adotadas poderiam ser simplesmente abandonadas.


Não deveriam ser ilegais, por exemplo, lotes menores que 125 metros quadrados (Lei 6.766/79 Art. 4º, inciso II) e a maioria das normas arquitetônicas comumente adotadas poderiam ser simplesmente abandonadas, a exemplo das taxas de ocupação, dos afastamentos mínimos obrigatórios e de quaisquer regras que digam respeito à composição interna da unidade imobiliária. São critérios propagados por inércia, mas que não têm qualquer evidência empírica que demonstre sua necessidade ou eficácia à geração de qualidade ao ambiente construído.

Além das complexas normas e restrições urbanísticas, construtivas e arquitetônicas, o enorme desafio operacional imposto aos órgãos públicos responsáveis pelas infindáveis etapas de licenciamento e aprovação também contribui para o espalhamento da cidade. Tanto os órgãos de planejamento quanto as empresas do mercado são levados a privilegiar tipologias consideradas mais simples do ponto de vista de sua análise e licenciamento, com grande preferência por loteamentos residenciais unifamiliares.

Ao não se sujeitarem — por definição — a esse sistema normativo, as ocupações irregulares acabam sendo um instrumento casuístico de geração de alguns dos benefícios de uma cidade mais densa. E o fato de ser difícil isolar tais benefícios de outras consequências negativas da marginalidade dessas áreas não faz com que eles deixem de existir.

Este artigo não deve ser entendido como um enaltecimento do suposto multiculturalismo, ambiente criativo ou espírito comunitário muitas vezes atribuído de forma imprópria à informalidade ou, menos ainda, como uma defesa da ilegalidade ou proposta de absolvição da responsabilidade pelos crimes e infrações envolvidas em empreendimentos constituídos às margens da lei. O propósito, aqui, é acrescentar ao debate a reflexão a respeito dos efeitos econômicos da regulamentação hipertrófica do mercado de solo urbano, frequentemente negligenciados.

Quando não avaliamos esse nefasto efeito da restrição, acabamos estimulando políticas públicas que procuram solucionar problemas urbanos com mais regulamentação. É fácil impôr exigências às incorporadoras, loteadoras e construtoras esperando que o problema se resolva. Muita gente acha que empresas merecem ser taxadas e restritas pelo poderio governamental. Não percebem que quem paga a conta é, e sempre será, o consumidor, dado que empresas simplesmente param de operar quando a oportunidade de negócio deixa de existir.

Vista aérea de Paraisópolis e Morumbi, São Paulo.
Vista aérea de Paraisópolis e Morumbi, São Paulo. (Imagem: Fernando Stankuns/Flickr)

A cultura de engessamento e da acumulação de exigências cada vez mais restritivas tem vários efeitos ocultos ou, nas palavras do economista francês Frédéric Bastiat (1801-1850), “não vistos”, inobstante suas intenções originais.

Um efeito não visto, por exemplo, é o aumento da barreira de entrada no mercado. Apenas as maiores empresas conseguem arcar com o maior custo regulatório, dando-lhes uma vantagem competitiva em relação a pequenos investidores, empreendedores e novos ingressantes. Reduzida a concorrência, reduz-se a qualidade e aumenta-se o preço do produto final, em prejuízo principalmente do consumidor de menor renda. 

O resultado desse emaranhado kafkiano de regras, exigências, taxas e procedimentos é um sistema disforme de benefícios ocultos que acabam induzindo não apenas a preços mais altos, mas também a formas urbanas diametralmente opostas aos valores do século XXI, como caminhabilidade, sustentabilidade, inclusão e empreendedorismo.

Jamais podemos perder de vista que a ocupação ilegal do solo traz uma série de prejuízos ao restante da cidade, dentre os quais os exemplos mais óbvios são a insalubridade, danos ao equilíbrio ecológico do meio ambiente, sobrecarga às redes de infraestrutura e o suporte a outras atividades criminosas. Mas para caminhar na direção da cidade legal, é preciso desenvolver um debate que veja conceitos econômicos básicos como pontos pacíficos de partida e não como adversários quixotescos.

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