Serviços e segurança pública: quanto um programa de urbanização de favelas pode entregar?
Real Parque, São Paulo. Foto: Google Earth

Serviços e segurança pública: quanto um programa de urbanização de favelas pode entregar?

Nem tudo o que é prometido em termos de infraestrutura e serviços acaba sendo entregue pelas intervenções. Já a sensação de segurança, endereçada indiretamente pelas obras, pode aumentar, apesar de os problemas ligados à criminalidade persistirem nas comunidades.

15 de agosto de 2024

“Por que é que você está tirando fotos aqui?”, foi o que ouvi assim que tirei o celular do bolso na entrada do Real Parque. Mal fiz um clique da paisagem e um homem em uma moto surgiu e veio me questionar. 

“É para um trabalho de mestrado”, a arquiteta da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) que me acompanhava se apressou em dizer.

Com essa atmosfera de vigilância, desconfiança e segurança precária, começou em fins de 2018 a minha visita à favela, àquela altura totalmente urbanizada. Eu conduzia a minha pesquisa de campo para o que se tornaria a dissertação “Urbanizando favelas: esquemas de financiamento e seus efeitos sobre oportunidades econômicas, provisão de infraestrutura e segurança”, apresentada no ano seguinte à Universidade de Columbia. O objetivo da pesquisa foi comparar os resultados da urbanização das favelas Real Parque e Sapé. O primeiro assentamento recebera recursos de uma Operação Urbana Consorciada (OUC) e o segundo, não.

Leia mais: Urbanização de favelas em São Paulo e modelos de financiamento

As Operações Urbanas Consorciadas (OUC) são instrumentos de intervenção nas cidades em áreas com potencial de desenvolvimento urbano e de interesse do mercado imobiliário. Nas OUC, são arrecadados valores a partir da venda de metros quadrados além do originalmente autorizado pela legislação para a construção de empreendimentos. As receitas financiam investimentos do poder público na área da operação ou nos arredores – como foi o caso da urbanização do Real Parque, nas proximidades do perímetro da OUC Faria Lima. 

Embora o foco da análise da pesquisa fosse a área da habitação, optei por estender o estudo para outros campos, dentre os quais, a provisão de serviços essenciais e infraestrutura e a sensação de segurança. 

Provisão de serviços e infraestrutura

Em São Paulo, os projetos de urbanização de favelas priorizam a consolidação das áreas, isto é, a execução de redes de drenagem e saneamento, a pavimentação de ruas e vielas e a regularização de domicílios que não sejam excessivamente precários ou que não estejam em áreas de risco, situações em que são removidos. 

A Favela do Sapé, na periferia Oeste da capital paulista, seguiu esse modelo. Tendo recebido recursos de fundos públicos municipais, como o Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB) e o Fundo Municipal de Saneamento Ambiental e Infraestrutura (FMSAI), e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, o Sapé teve um orçamento modesto – cerca de 160 milhões de reais até 2019 – quando comparado ao Real Parque, que recebeu mais de 338 milhões de reais arrecadados na OUC Faria Lima.

Com mais recursos, o Real Parque, nas imediações da Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, viu todos os seus domicílios serem demolidos e darem lugar a vários condomínios abastecidos de redes de saneamento, eletricidade, dentre outros tipos de infraestrutura.

Além disso, o projeto inovou ao prever a construção de cerca de 70 boxes comerciais, isto é, pequenos espaços para lojas geridas por moradores do assentamento. Visitei os boxes, que foram construídos e entregues ao fim das obras. 

Boxes comerciais no pavimento térreo dos condomínios no Real Parque. Foto: SEHAB

Já a provisão de equipamentos públicos no Real Parque não saiu conforme o planejado. O projeto original previa a construção de um posto de saúde na área, o qual não havia sido construído até a conclusão da pesquisa, em 2019, por falta de recursos.

Embora tenha havido percalços, não faltou dinheiro para a remoção de todos os domicílios do assentamento, que foi reconstruído e se transformou em condomínios com um total de 1.246 unidades habitacionais, todas elas com acabamento e ligações de água, saneamento, eletricidade e gás.

Isso foi, sem dúvida, um avanço frente à situação de muitos dos moradores da favela antes das obras. “Nós morávamos com os ratos”, contou uma moradora, que completou que instalava redes de mosquito acima de sua cama para que as ratazanas não caíssem em cima dela à noite.

Leia mais: Podcast #90 | Urbanização de favelas

Já o Sapé, com um orçamento modesto, também viu serviços de saneamento e drenagem chegarem à favela, assim como a construção de uma ciclovia e a construção de condomínios residenciais para uma parcela dos moradores. Entretanto, uma biblioteca e um telecentro, previstos com outros condomínios, ficaram pelo caminho – também por falta de recursos.

Condomínio (à esquerda) erguido na obra de urbanização do Sapé e área consolidada à direita. Foto: Guilherme Formicki

Sensação de segurança versus segurança de fato 

Uma questão importante a ser entendida nesses dois casos é a segurança pública. Embora as obras de urbanização de favelas não tenham como objetivo dar mais segurança aos moradores dos assentamentos alvos de intervenção, elas alteram, no mínimo, a sensação de segurança nessas áreas. 

A jornalista e urbanista estadunidense Jane Jacobs, no seu famoso livro Morte e Vida de Grandes Cidades, lançado em 1961, já alertava para a importância do movimento nas ruas e dos “olhos que vigiam” as vias a partir de lojas e das janelas das casas e dos apartamentos. A autora explica que as pessoas se sentem mais seguras ao andarem por ruas com vitalidade, bem iluminadas, sem muros altos e com prédios que conversam com a escala do pedestre.

Pois bem. A minha pesquisa identificou que alguns moradores do Sapé se sentiram mais seguros após a urbanização. “O Sapé sempre foi perigoso. Agora está calmo”, uma moradora me disse. “[A segurança] melhorou um pouco”, outro residente contou. “Por causa dos edifícios. E o convívio das pessoas melhorou.”

Já no Real Parque, alguns moradores apontaram a melhora na sensação de segurança, enquanto outros diziam que havia medo por conta da ação dos bandidos e da polícia.

De fato, o crime não cessou nas duas áreas. No Sapé, grupos ligados ao tráfico seguem ativos. Depois de indefinições no Real Parque sobre qual secretaria da prefeitura de São Paulo deveria fiscalizar os boxes comerciais, eles foram tomados pelo tráfico de drogas. “Muito triste”, uma assistente social da prefeitura desabafou em entrevista. Eu mesmo senti na pele a atuação dos olheiros do crime, como descrevi no início do artigo.

Resultados positivos, mas insuficientes

Nota-se que nem tudo o que foi prometido em termos de infraestrutura e serviços foi, de fato, entregue. Além disso, a sensação de segurança parece ter aumentado nos dois assentamentos, mas os problemas ligados à criminalidade seguem latentes.

Arrisco-me a dizer que a urbanização em si, voltada à habitação, pode alcançar efeitos positivos em outros campos da política pública. Entretanto, ela não substitui as outras políticas, ainda mais em territórios onde o Estado historicamente não chega ou, na melhor das hipóteses, onde raramente atua.

Guilherme Rocha Formicki é doutorando em Planejamento Urbano e Regional na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Arquiteto e urbanista formado na FAU-USP, cursou o mestrado em Planejamento Urbano pela Universidade de Columbia (EUA). Lá, ganhou o prêmio Charles Abrams pela dissertação com o maior comprometimento com justiça social. Guilherme trabalhou na Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo entre 2014 e 2016, com atuação na urbanização de sete favelas das zonas Sul e Oeste da cidade.

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