Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Recuos obrigatórios prejudicam a diversidade arquitetônica, matam a relação dos edifícios com a calçada e incentivam a construção de muros.
7 de outubro de 2021O muro é um dos principais problemas de nossas cidades. Materialização divisionista por excelência, tira o sentido da convivência nas ruas e transforma o caminhar por nossas calçadas em uma experiência vazia, monótona e insegura. Os “olhos na rua” são essenciais para a vida urbana, especialmente em uma sociedade violenta como a brasileira. Por que nossas cidades têm tantos muros? Usualmente se culpa o setor imobiliário, eterno vilão para os que costumam confundir causa e consequência. Mas, na verdade, casas já antigas também se valem deles.
E ainda que seja questionável a real efetividade dos muros, deveria ser previsível que com tantos assaltos, arrastões e cracolândias os imóveis por aqui fossem murados em busca de alguma sensação de segurança. Entretanto, cidades violentas de outros países, como Bogotá ou a Nova York dos anos 1980, não apelaram aos muros.
Mesmo no Rio de Janeiro, bairros como Copacabana e Flamengo tampouco sofrem desse mal. E a explicação para isto tem origem em um dogma do urbanismo tupiniquim nas últimas décadas: o recuo obrigatório.
Repare que regiões mais antigas, como os centros das grandes cidades brasileiras, não são cheias de muros. Bem como em Buenos Aires ou nas cidades europeias, as construções geralmente são coladas umas nas outras, no alinhamento da calçada, com portas e janelas já voltadas para a rua.
Ou seja, a própria construção cumpre a função de muro, só que com relação direta com o espaço público.
Mas a partir de meados do século 20, com a hegemonia no Brasil do urbanismo modernista (que sempre concebeu a cidade para os automóveis), prefeituras passaram a obrigar que as construções fossem separadas da rua e entre si, ocupando só um pedaço no meio do terreno. Essa imposição tinha motivação ambiental, com base em conceitos ultrapassados que entendiam que uma maior insolação e ventilação eram essenciais do ponto de vista sanitário.
Hoje, com exceção de áreas construídas antes dessa legislação, ou informais (como as favelas, feitas fora da lei, com ruas vivas e muitas residências que também abrigam comércio), praticamente toda cidade brasileira se baseia nesses recuos que aumentam distâncias e a mancha urbana, desconsideram o pedestre e a escala humana, e criam espaços que muita gente entende que precisam ser fechados por muros.
O recuo obrigatório também mata a diversidade arquitetônica (projetos como os paulistanos Copan, Conjunto Nacional e Galeria do Rock não poderiam ser construídos hoje), diminuindo a autonomia projetual de arquitetos que estudaram anos para saber a melhor forma de aproveitar um lote específico.
Até mesmo a busca por densidade, atualmente desejada pelas Prefeituras, pode ser atrapalhada por recuos que, combinados com limitações de altura, impedem que se construa o máximo previsto para um terreno.
É bom esclarecer que este artigo não é contra o uso de recuos. Bens como o maravilhoso Palácio Gustavo Capanema e o Brascan Century Plaza, em São Paulo, têm os recuos como parte essencial de seu sucesso. Mas que sejam utilizados por decisão do arquiteto e do incorporador, por entenderem que é assim que poderão aproveitar da melhor maneira possível aquele terreno para o empreendimento e a cidade, ou previstos somente para locais específicos.
Já é tempo de pôr fim a esta exigência sem sentido para a maior parte das áreas urbanas. Em meio a estímulos para “fachada ativa” e conscientização em busca de uma cidade mais voltada ao pedestre, é irônico que justamente uma sociedade que sofre com os muros e os reconhece como nocivos, mantenha uma legislação que dá incentivo a sua proliferação.
Artigo publicado originalmente em Árvore do Futuro em 23 de setembro de 2021.
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COMENTÁRIOS
Concordo plenamente na ineficiência dos recuos obrigatórios em promover qualidade urbana. Faltou comentar a falha também dos recúos laterais, que têm deixado, às vezes, apenas 6 metros entre edifícios muito altos. Tenho visto apartamentos sem nenhuma insolação, com corredores de vento que impedem a abertura das janelas e com vista apenas para a televisão do visinho.
Vale lembrar que regra de recúo não muda regra de taxa de ocupação. Logo, se o edifício ocupar a frente toda do lote, o fundo ficará aberto, criando um páteo interno e possibilitando insolação e ventilação.
“Conceitos ultrapassados” como insolação e ventilação? Talvez áreas verdes sejam algo “ultrapassado” também e o bom seja permitir concretar cada centímetro quadrado do meio urbano?
Francamente, querer transformar as cidades brasileiras em um amontoado medieval para dar vazão a uma suposta criatividade arquitetônica é de uma pobreza de visão inenarrável… não admira que essa bobagem tenha sido publicada primeiro num blog tecnocrata que defende glifosato…
Sem falar que esses urbanistas de botequim esquecem que as ruas de hoje são barulhentas e violentas, totalmente distintas das ruas que meus bisavós tinham no tempo deles. Ah, mas os egocêntricos urbanistas inventaram uma “narrativa” pra dizer que o problema é justamente do urbanismo modernista, e que se forçarem a gente a ter a Cracolândia batendo no nosso trinco da sala tudo vai melhorar.
Olá! Há um bom tempo venho me questionando sobre os prós e contras dos recuos nas construções da cidade onde vivo, por isso esse texto me surgiu num ótimo momento. Digo isso porque o Centro Antigo daqui basicamente não possui muro, a própria fachada, portas e janelas já fazem a separação entre o limite público e privado. O que, como relatado no texto, aumenta o dinamismo das ruas. Todavia, nas novas construções, os muros altos reinam e a sensação de insegurança se intensifica.
Acontece que o recuo influencia diretamente na construção do muro, mas também é responsável, numa edificação regular, pela criação de área para a absorção de chuva e, o mais importante, para a ventilação e iluminação natural de cômodos que estão voltados para as fachadas laterais e de fundo. Digo isso porque vivo numa comunidade e, aqui, a maioria das casas não possui recuo, já que uma edificação está “colada” na outra e ocupa todo o lote, o que faz com que os cômodos sejam escuros e muito mal ventilados. Em algumas construções do Centro Antigo que tive a oportunidade de entrar, a situação também era semelhante: ambientes escuros e pouco ventilados, o que aumentava a necessidade de ventilador ou ar-condicionado e iluminação artificial em plena luz do dia.
Visto assim, fica claro que o recuo consegue influenciar de várias maneiras nas construções das nossas cidades. Só que no parágrafo final do texto é proposto o seu fim, o que me gerou um certo conflito interno kkkkk. Qual seria a solução que o autor apresentaria para reduzir a iluminação artificial, a ventilação mecânica e manter as questões associadas ao conforto térmico dos cômodos que passariam a ser menos privilegiados, sobretudo falando de cidades tropicais? Digo isso porque finalizada a exigência legal e visto o histórico de autoconstrução nas grandes cidades do país, tenho quase certeza que todo o lote passaria a ser ocupado, “apartamentos alcovas” surgiriam e seriam vendidos a um menor preço, enquanto que os apartamentos voltados para a fachada se tornariam muito mais valorizados e o uso de energia elétrica aumentaria bastante. Entretanto, teríamos um ganho enorme no nível da calçada, com mais vida, escala humana e redução da sensação de insegurança.
Acho que me prolonguei demais, encerro por aqui rs.
Obrigado pelo espaço e fico no aguardo de um possível retorno!
Oi Junior, obrigado pelo comentário na nossa página!
Meu entendimento é que a não-exigência de recuos não significa que nenhum edifício terá recuos em todo seu terreno, mas que o projeto arquitetônico buscará otimizar a ventilação, insolação e absorção de água em cada caso. Da maneira que vemos hoje, existe uma solução homogênea para a cidade inteira, que muitas vezes não resolve nenhum desses aspectos. Sabemos que muitas áreas condominiais já não servem mais como áreas de absorção de chuvas, por exemplo, por terem sofrido impermeabilização do solo ao longo dos anos.
Este cenário que você descreve, de uso muito intenso do solo urbano, surge justamente pelo desequilíbrio entre oferta e demanda por habitação bem localizada em centros urbanos. Isso dito, é possível, como ocorre no próprio centro da sua cidade, que muitos prefiram abrir mão de uma ventilação e insolação “perfeita” para receber, em contrapartida, uma localização adequada na cidade. Esta decisão, no meu entendimento, deve ser do cidadão, e não do planejador urbano.
Um abraço,
Anthony