Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
A Arábia Saudita provavelmente terá dificuldades em atrair negócios e pessoas para se realocarem em Neom, a megacidade tecnológica que planeja construir.
6 de maio de 2021Com todas as notícias vindas da Arábia Saudita, seria fácil ignorar o anúncio da mais recente proposta do país para uma nova megacidade: Neom. O príncipe herdeiro Mohammed bin Salman revelou seu plano para um projeto de 500 bilhões de dólares para construir uma metrópole totalmente nova e robotizada que, de acordo com um vídeo promocional, “mudará para sempre a forma como nós vivemos e trabalhamos”.
Neom, como a cidade será chamada, é, em vários aspectos, semelhante a muitas outras das chamadas novas cidades já em desenvolvimento — ou ainda no papel — na Arábia Saudita e ao redor do mundo. A China apresentou um plano semelhante em 2017 para transformar uma área de 100 quilômetros ao sul da capital em uma megacidade, a Nova Área de Xiongan, que tem a intenção de servir como a nova localização das funções não governamentais de Pequim.
Não ficando para trás, o primeiro-ministro da Índia lançou o programa “Smart Cities”, que visa construir 100 novas áreas urbanas em todo o país. As novas cidades estão sendo promovidas como a onda do futuro.
Apesar do nome e do momento desses anúncios, as “novas cidades” não são realmente tão novas. A história é repleta de exemplos de governos e urbanistas criando cidades do zero, com variados graus de sucesso. Uma retrospectiva dos triunfos e problemas do passado das novas cidades elucida as perspectivas dos desenvolvimentos futuros desse tipo, incluindo Neom.
Talvez a mais comum e reconhecível forma de nova cidade é a capital política planejada. Para países com regiões e grupos de interesse díspares e frequentemente concorrentes, fundar uma nova capital nacional é uma solução natural.
Se uma grande cidade já estabelecida fosse nomeada a capital, o governo poderia ser visto como favorecedor daquela região e dos seus interesses sobre os de outras partes do país. Uma nova cidade, por outro lado, poderia servir como um território neutro entre os vários grupos de interesse da nação.
A estratégia tem um bom histórico. Washington, D.C., que surgiu como um compromisso entre o norte e o sul dos Estados Unidos, oferece o exemplo moderno mais famoso. Mas as capitais de países como Brasil, Austrália, Paquistão e Nigéria nasceram a partir de considerações semelhantes.
A presença de um governo nacional em uma cidade proporciona um forte estímulo de crescimento para aquele local, desde que os órgãos governamentais sejam totalmente transferidos para lá.
Para driblar os seus próprios regulamentos, os governos também desenvolvem um segundo tipo de nova cidade, onde estabelecem zonas econômicas especiais — áreas nas quais o comércio é mais aberto — como um meio-termo confortável entre um controle governamental rígido sobre a economia e a liberalização.
Para os líderes de estados com economias fortemente regulamentadas, aderir ao livre comércio a nível nacional pode parecer um convite à perturbação econômica e social. Zonas econômicas especiais oferecem alguns benefícios do comércio mundial ao mesmo tempo que minimizam os riscos.
Estabelecer as zonas em grandes cidades existentes, porém, implicaria alguns dos mesmos desafios sociais e econômicos que a liberalização generalizada representaria, e isso poderia também dar a certos grupos de interesse no país uma vantagem sobre outros. Para evitar esses problemas, governos nessa posição frequentemente optam por desenvolver novas cidades para zonas especiais econômicas a fim de mitigar as consequências nas cidades existentes.
Shenzhen, na China, exemplifica essa tática. Em 1980, a cidade — na época uma pequena cidade-mercado com uma população de 30.000 pessoas — tornou-se o centro da primeira zona econômica especial chinesa, instaurada para facilitar um comércio mais liberal com a comunidade internacional.
Hoje, Shenzhen é o lar de mais de 10 milhões de pessoas, uma importante potência na crescente economia de alta tecnologia da China e a nova cidade de maior sucesso do país. Boa parte do seu impressionante crescimento deve-se às condições econômicas específicas sob as quais ela foi fundada.
Pode-se argumentar que uma zona mais aberta economicamente na China dos anos 1980 — um enorme país cuja reclusão era a única limitação na sua latente capacidade de manufatura — estava fadada a crescer independentemente da sua localização. Sem essas condições, uma zona econômica especial provavelmente não conseguiria alcançar os mesmos resultados.
Adicionar uma zona com regulamentações comerciais marginalmente mais liberais provavelmente renderia apenas um ganho marginal para os países que já liberalizaram em geral suas economias. Da mesma forma, estados sem muito potencial econômico bloqueado por políticas restritivas não obterão muitos benefícios com a criação de uma zona econômica especial.
Um terceiro tipo de nova cidade tem menos a ver com governo e política e mais com logística. Várias cidades ao redor do mundo surgiram muito antes do aparecimento dos negócios modernos e, como resultado, são inadequadas para as demandas das indústrias de hoje.
Cidades mais antigas normalmente são superlotadas, difíceis de se transportar e escassas no espaço físico e nas comodidades que as empresas modernas precisam para suas operações do dia a dia. Construir uma nova cidade em uma área próxima oferece uma maneira de aliviar esses problemas ao mesmo tempo que também ameniza parte da pressão populacional nos centros urbanos já estabelecidos.
Na Índia, a cidade de Délhi passou por esse processo pelo menos duas vezes na sua história: Nova Délhi criada no início do século 20 para aliviar a aglomeração na Velha Délhi; e, no final do século 20, a cidade de Gurugram, desenvolvida com um objetivo semelhante em mente.
O distrito de Pudong em Xangai é um arquetípico exemplo desse modelo. Localizado do outro lado do rio da Xangai histórica, Pudong forneceu as atrações modernas — um skyline impressionante — que a cidade precisava para prosperar no século 21.
A prática de construir novas cidades para complementar ou modernizar as já existentes não se limita tampouco ao mundo em desenvolvimento. Muitas capitais europeias inseriram complexos de edifícios comerciais modernos como o Canary Wharf em Londres e La Défense em Paris.
Dezenas de subcentros regionais planejados, como o bairro Century City e a cidade de Irvine, surgiram na área de Los Angeles no final do século 20, buscando suplantar e melhorar o antigo núcleo urbano. Muitas economias avançadas foram ainda mais longe e “redesenvolveram” em grande parte seus tradicionais centros urbanos, equilibrando o que estava ali e reconstruindo para aprimorar as áreas para os negócios modernos.
Dessas três estratégias, o plano da Arábia Saudita para Neom se encaixa melhor na terceira. A megacidade do reino deve ser um ambiente construído para acomodar o mundo moderno de forma mais eficaz do que podem seus outros centros urbanos.
Falei recentemente com Shirish Patel, um experiente planejador urbano indiano e um dos arquitetos chefes de Navi Mumbai, sobre como desenvolver lugares desse tipo. Na década de 1970, Bombaim, como era chamada na época, estava ficando sem espaço para construir habitação adequada e infraestrutura de transporte, situada na ponta de uma ilha longa e estreita. Patel e seus colegas decidiram construir uma nova metrópole bem planejada, Navi Mumbai, do outro lado da baía a partir do centro antigo da cidade para ampliá-lo e, por fim, substituí-lo.
Durante a nossa conversa, Patel identificou três condições principais que são críticas para que uma nova cidade tenha sucesso, se ela não for planejada como um centro político.
Primeiramente, um número substancial de operações empresariais deve migrar para lá. Em segundo lugar, a nova cidade deve oferecer um transporte conveniente para uma zona econômica vibrante já estabelecida, facilitando a transferência das atividades comerciais. Por fim, um ambiente regulatório especial poderia ajudar a tornar o novo local mais atrativo para pessoas e empresas.
Navi Mumbai lutou para alcançar esses objetivos fundamentais, embora a cidade gerasse receita suficiente para financiar sua construção. A ponte e a balsa de alta velocidade propostas para conectar a antiga e a nova Mumbai nunca se materializaram; as empresas mantiveram a maior parte de suas operações na antiga cidade, mudando principalmente os escritórios de apoio para Navi Mumbai.
E enquanto o governo deu alguns incentivos para atrair residentes e negócios do outro lado da baía, ele neutralizou esse esforço continuando a encorajar o desenvolvimento no centro da cidade antiga.
Considerando o que é preciso para uma nova cidade prosperar, as chances de sucesso de Neom parecem fracas. A Arábia Saudita não está planejando transferir sua capital para o novo projeto. Uma zona econômica especial ao redor de Neom faria pouco pelas perspectivas da cidade, uma vez que a economia do reino já é majoritariamente aberta para o mundo.
Além disso, Neom estará localizada distante de outras cidades do país, significando que ela não será capaz de se apoiar tanto em suas economias enquanto trabalha pra construir a sua própria.
Dados os fatores que atuam contra isso, a melhor esperança para Neom é que importantes negócios domésticos e internacionais se desloquem para lá. O governo saudita pode tentar persuadir as empresas do país a se instalarem na cidade. Mas o que vai incentivar os negócios do resto do mundo a se deslocarem?
A maioria das empresas multinacionais atualmente mantém sua sede regional do outro lado da fronteira nos Emirados Árabes Unidos. Persuadi-las a desarraigar suas operações do estado vizinho, com os seus agrupamentos empresariais e centros financeiros, sua sociedade comparativamente liberal e seus laços relativamente aquecidos com as comunidades xiitas da região, será uma tarefa árdua para Riade.
Uma nova cidade chamada Neom pode muito bem frutificar de alguma forma ou de outra. A probabilidade é pequena, contudo, de que ela vai cumprir suas promessas como uma expansão urbana com 33 vezes o tamanho da cidade de Nova York, abrangendo três países e sendo pioneira em nove diferentes indústrias de ponta.
Ao contrário do que o vídeo promocional promove, Neom provavelmente nunca se tornará o “lugar onde nós podemos nos preparar juntos para a nova era do progresso humano”. Todavia, ela vai fornecer uma valiosa lição para futuros urbanistas.
Artigo publicado originalmente em Worldview em 12 de novembro de 2017. Traduzido por Roberta Inglês.
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