Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Uma das questões que vem em mente vendo o processo de inserção de novas plataformas de mobilidade nas cidades da América Latina é qual será a resposta das autoridades locais, regionais e nacionais.
27 de dezembro de 2018Depois de ler o artigo muito interessante de Anthony Ling sobre o futuro do transporte coletivo, acredito que seja mais importante do que nunca reconhecer os benefícios que podem surgir de novos modelos disruptivos em nossas cidades. Uma das questões que vem em mente vendo o processo de inserção de novas plataformas de mobilidade (representados nas empresas de ridesharing e outros modelos vinculados à economia colaborativa e à noção de Mobilidade como Serviço, ou “Mobility as a Service”) nas cidades da América Latina é qual será a resposta da governança urbana, vinda das autoridades locais, regionais e nacionais.
Como mostra um dos textos publicados na Uber Newsroom, em alguns casos, há interesse em reconhecer processos inovadores e de encontrar formas de regulamentação e de articulação com os órgãos de governança urbana locais. No entanto, no contexto de muitos países da região, a posição dos governos tem sido perseguir diretamente estes modelos considerados como “irregulares”, ou, infelizmente, até mesmo ignorar a sua existência e os impactos positivos que essas inovações podem trazer às cidades.
As cidades colombianas têm sido, em muitos aspectos, paradigmáticas na recepção dessas inovações porque, apesar de serem consideradas referências na gestão da sua mobilidade urbana, não têm mostrado seu melhor lado frente ao surgimento de serviços potencialmente disruptivos de transporte coletivo privado. Estas cidades são interessantes para analisar, uma vez que apresentam as seguintes características:
1 – A natureza informal relacionada a estes serviços urbanos já está enraizada nos processos sociais da cidade, que, no caso da mobilidade, é ilustrada nos serviços coloquialmente chamados de “piratas”;
2 – A virtual incapacidade e ausência dos governos federal e local, com a possível exceção da cidade de Medellín, para organizar o fornecimento de infraestrutura de transporte público eficiente além dos famosos sistemas BRT que foram instalados em algumas cidades;
3 – A saturação e a rigidez de muitos dos sistemas existentes, que destruíram a acessibilidade de muitos pontos das regiões metropolitanas do país, que, bem ou mal, eram atendidas pelos esquemas tradicionais de transporte público coletivo, desmantelados para criar sistemas de transporte de massa como os BRTs;
4 – O surgimento de redes colaborativas de transporte privado informal e não regulado, inseridas em todos os níveis de renda;
5 – E, finalmente, a expansão das redes mencionadas por plataformas digitais, que disponibilizam essas redes de colaboração para todos os cidadãos com o uso de um smartphone.
Diante disso, a grande dúvida está em como os governos — especialmente governos locais — podem reconhecer estes fenômenos emergentes e agir de acordo com sua realidade, mas também oferecer alternativas que proporcionam aos cidadãos o direito de se mover como eles consideram melhor.
Entre as alternativas, é necessário renovar os sistemas tradicionais de transporte público para flexibilizar suas condições. Fatores como o ajuste das frequências e da rede de veículos alimentadores, assim como o uso de estações espaciais para locação comercial para ajudar a sustentabilidade financeira do sistema, são ideias para tornar o serviço competitivo frente às novas alternativas de mobilidade. É o transporte coletivo público tradicional — ou aquele que restou nas cidades colombianas, após a criação dos sistemas unificados de transporte de massa — que deve ser revisado, de forma que possa oferecer serviços de “primeira e última milha”, bem como acessibilidade a áreas complicadas, de preferência com integração tarifária.
É importante notar que o retorno do transporte público coletivo tradicional não implica de forma alguma no retorno aos ônibus velhos que, no passado, infernizavam as cidades colombianas e latinoamericanas. No entanto, é necessário reabrir o mercado do transporte público na cidade além das redes de massa, a fim de fornecer acessibilidade a toda a cidade. Neste caso, a frota veicular poderia ser, preferencialmente, elétrica ou híbrida, com características de média e alta escala, de vans a ônibus articulados, independente da faixa exclusiva para BRTs.
Finalmente — e é aí que entramos nas inovações em governança urbana —, é necessário lidar com o transporte “informal”, serviço reforçado não apenas pelas características pouco flexíveis dos transportes de massa, mas também pelo seu papel histórico como serviço público urbano na Colômbia.
Neste caso, é necessário que a governança urbana local considere a regularização dos serviços informais: desde o moto-táxi até o táxi coletivo, Uber, Cabify e outras redes emergentes locais. Deve existir apenas regras mínimas de segurança, normalmente já aplicadas para automóveis particulares, o reconhecimento do trabalho dos motoristas e apoio à presença das tecnologias digitais neste mercado. Nestes casos, os mínimos regulatórios devem ser alcançáveis para todos os atores na cidade, evitando exigências e requisitos inatingíveis que, em última instância, criam barreiras de acesso que limitam a concorrência do mercado.
Da mesma forma, este nivelamento de regulamentos mínimos de segurança e trabalho deve ser estabelecido para todos os participantes do mercado, incluindo o transporte público coletivo e o transporte tradicional, a fim de estabelecer uma situação de competição justa e evitar desigualdades. Em outras palavras, um mercado da mobilidade urbana com condições iguais para competir.
Todos esses pontos devem ser unificados, reconhecendo a tecnologia digital individual para a prestação e solicitação de serviços de transporte público, com o entendimento de que o transporte do futuro será baseado não em uma gestão da oferta de veículos e linhas, mas no leque de opções “sob demanda” que os cidadãos têm a sua disposição.
A pergunta colocada, tanto para planejadores urbanos como aos formuladores de políticas públicas e, ao final, aos cidadãos, é como reagiremos a essas realidades? Como nossos governos reagirão? O debate está aberto e os tempos que nos esperam são interessantes, pois esses modelos disruptivos tendem apenas a crescer.
Luis Lozano-Paredes é Arquiteto e Mestre (MSc) em Economia Urbana. Seus interesses de pesquisa incluem a mobilidade urbana, ordens emergentes, teoria organizacional e política de tecnologia.
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