Um dos grandes desafios de arquitetos, urbanistas e gestores públicos brasileiros é a construção de moradia acessível, em especial nas áreas centrais das cidades. O mercado imobiliário lança diversos projetos nessas regiões, mas raramente a preços que moradores de baixa renda consigam pagar.
Programas governamentais como o Minha Casa, Minha Vida são capazes de produzir um grande número de unidades, mas em regiões periféricas, onde o preço dos terrenos é mais barato — justamente por serem menos atraentes. Arquitetos e incorporadores apresentam alternativas que reduzem os custos de obras e diminuem o tamanho das unidades, abrindo mão da qualidade do produto por uma localização mais privilegiada.
Do outro lado, urbanistas e gestores criam políticas como a “Cota de Solidariedade”, também conhecida como “Zoneamento Inclusivo” e prevista no Plano Diretor de São Paulo, que permite que incorporadores construam edificações maiores caso incluam unidades populares. Até agora, no entanto, nenhuma das alternativas se provou capaz de produzir moradia a preços acessíveis, em uma escala satisfatória e em tamanhos confortáveis. O que todos os lados parecem ignorar é que existe um ingrediente secreto capaz de transformar moradias de elite em habitação popular: o tempo.
Um dos fatores mais importantes (e surpreendentemente pouco discutido) na questão da moradia é que, ao longo dos anos, edificações novas se tornam usadas, depreciam e ficam mais baratas. O debate costuma se concentrar em tentativas de solucionar o déficit construindo imóveis novos que devem atender diretamente a moradores de baixa renda, mesmo que o ano de construção das habitações pouco importe para estas pessoas.
Imagine que uma incorporadora construa uma edificação luxuosa. O primeiro morador do novo empreendimento, de renda maior, liberará sua unidade anterior que, já depreciada, passará a atender um morador de renda mais baixa. Essa mudança gera um efeito cascata que pode tornar disponível, ao final, a unidade mais barata do mercado.
O problema que enfrentamos é que nossas cidades não estão construindo unidades suficientes para que, no futuro, tenhamos habitações acessíveis em larga escala nas localidades mais demandadas.
Chamado de “filtragem”, esse efeito pode ser observado na prática em imóveis das regiões centrais das cidades brasileiras. Edifícios lançados como palacetes verticais para as elites do passado tiveram grande alteração demográfica desde sua origem, tornando-se uma opção acessível para um número muito maior de pessoas.
Na região central de São Paulo é possível encontrar apartamentos de 60 metros quadrados por R$ 180 mil, menos da metade do preço de um apartamento novo do mesmo tamanho na mesma região — e dentro do valor teto do programa Minha Casa, Minha Vida, de R$ 240 mil. Com R$ 1.800 por mês, você pode morar no centro de São Paulo em 80 metros quadrados dentro de palacetes ecléticos projetados por Ramos de Azevedo, ou de clássicos modernistas de Rino Levi. Um lançamento de mesmo tamanho e local chega a custar o dobro e, com arquitetura “assinada”, o triplo.
Isto foi possível apenas devido ao desenvolvimento de outras regiões da cidade que hoje atendem a moradores que, no passado, teriam escolhido o centro. A filtragem no Brasil ocorre de forma ainda mais significativa devido à propriedade em condomínio, prática comum na grande maioria dos edifícios residenciais. Condôminos em constante conflito sobre os investimentos necessários para preservar o valor da sua edificação fazem dos condomínios uma opção menos eficaz do que uma única entidade proprietária com autonomia decisória.
O problema que enfrentamos é que nossas cidades não estão construindo unidades suficientes para que, no futuro, tenhamos habitações acessíveis em larga escala nas localidades mais demandadas. Uma das razões é que, ao observar apenas o produto imobiliário no seu valor atual, muitos acreditam que novas unidades que atendem rendas mais altas não são relevantes para atender o déficit habitacional, ignorando o fato de que elas são ferramentas eficazes a longo prazo.
Outro motivo é a atuação dos próprios Planos Diretores e Códigos de Zoneamento que, apesar de tentarem promover desenvolvimento urbano com equidade social, acabam por muitas vezes restringir a oferta imobiliária em bairros demandados, implicando diretamente no aumento de seus preços. Se a intenção daqueles que buscam uma solução para moradia é resolver o problema de maneira eficiente, eles precisam deixar de lado o preconceito com o tipo de moradia que está sendo construída hoje. Um mercado habitacional saudável deve permitir que haja construção o suficiente para que as unidades sejam filtradas para rendas mais baixas no futuro — mesmo que isso signifique construir para rendas mais altas nos dias de hoje.
Texto publicado originalmente no Esquina, em 19 de outubro de 2017. Essa foi a primeira colaboração de Anthony Ling para o site.
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