Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
As Cidades Startup levam à política a dinâmica competitiva e ágil que funciona bem no campo tecnológico. Leia a entrevista com Zachary Caceres.
8 de setembro de 2014O Startup Cities Institute é uma organização que oferece uma nova abordagem para a reforma política, uma solução baseada em melhor governança por meio do empreendedorismo startup. Nas palavras deles, “Cidades Startup são comunidades participativas e concorrentes que testam novas políticas antes que sejam replicadas em nível nacional”. Para melhor compreensão sobre como os governos podem aprender com o trabalho das startups, conversamos com Zachary Caceres, diretor-executivo do Startup Cities Institute, na Universidad Francisco Marroquín em Guatemala.
Quando você analisa as reformas políticas, você começa a ver que tanto os reformadores como os empreendedores compartilham dos mesmos problemas: muita complexidade, pouco feedback e altos riscos atrelados a pequenos erros. As Cidades Startup propõem uma nova abordagem às reformas públicas: utilizar municipalidades pequenas e altamente autônomas para testar projetos de reforma antes que de serem escaladas para nível nacional. Cidades Startup são politicamente neutras. Elas podem abarcar inovações como tribunais independentes, sistemas legais diferentes, transparência radical, novos serviços sociais ou, até mesmo, ter uma polícia municipal própria. Ainda, elas podem ser focadas em uma área específica, como reforma educacional.
As Cidades Startup levam à política a dinâmica competitiva e ágil que funciona bem no campo tecnológico. Cidades competem umas com as outras para descobrir políticas públicas que melhoram as vidas dos cidadãos. Os cidadãos são empoderados já que podem “votar com seus pés”, isto é, podem se mover de forma mais fácil e segura entre cidades do que poderiam se fossem cruzar fronteiras entre países. A competição entre essas zonas gera um feedback preciso para os governos sobre a eficácia de suas reformas. A competição também cria fortes incentivos para a inovação e a experimentação.
Para atrair investimentos, cidadãos e ideias para uma cidade ao invés de outra, cidades devem ser responsável e trabalhar para satisfazer as necessidades dos cidadãos através de constantes melhorias nas políticas públicas.
O Startup Cities Institute tornou-se o líder mundial nesse tipo de abordagem à reforma. Nós estamos trabalhando para encontrar respostas às difíceis questões com as quais os reformadores se deparam quando tentam executar essa ideia: para a infraestrutura e design, como você pode construir “uma comunidade minimamente viável” que atrai cidadãos sem desperdiçar investimentos? Quais tipos de leis são mais eficientes na criação de governos municipais adaptáveis? Como você pode construir uma força policial que é responsável em todos os seus níveis? Somos um think tank com membros espalhados ao redor do mundo — todo mundo é convidado a participar.
A única forma de resolver essas questões é tratar a lei e governança como a tecnologia que são.
Alguns anos atrás, eu estava estudando para ser um economista e realizei uma pesquisa de campo no Quênia. Viajei ao redor do país com grupos de comerciantes de rua e aprendi sobre os problemas enfrentados por empreendedores verdadeiramente populares. Essa experiência destruiu a certeza que eu tinha sobre economia e reforma, me levou a uma crise, mas me ajudou a entender o tamanho da complexidade dos problemas da violência e da pobreza. Não existem soluções mágicas.
Antes da viagem eu já exercia atividades empreendedoras e comecei a ver paralelos entre a complexidade das reformas e dos estágios iniciais de startups, onde você realmente não sabe qual será o próximo passo. Então, li um livro que mudou minha vida, The Nature of Technology (tradução livre, a Natureza da Tecnologia), escrito pelo tecnólogo do Vale do Silício, Brian Arthur. Ele me fez pensar se os sistemas políticos — lei e governança — poderiam ser vistos como uma tecnologia. Se pudermos tratar a lei e governança como tecnologias conseguiremos, talvez, inová-la.
Quase um ano depois eu estava coberto por moscas de lixo no topo de um morro sobre o aterro sanitário central da Cidade de Guatemala. Centenas de pessoas, incluindo muitas crianças, vagam por esse terreno desolado revirando o lixo em busca de qualquer coisa de valor. Pessoas são assassinadas semanalmente por gangues que rondam o local.
Eu conheci uma catadora de lixo chamada Miriam, que tirava o seu sustento e o da filha vendendo restos de plástico por 1 ou 2 dólares ao dia. Ela estava me contando sua história: a pobreza opressiva, a ameaça constante de extorsão e os assassinatos pelo crime organizado, o tiro que matou seu marido, os abusos sexuais contra sua filha. No meio dessa história de partir o coração, seu celular toca e ela puxa do seu bolso um smartphone legal, envia algumas mensagens, e volta a falar comigo como se nada tivesse acontecido. Miriam encara esses antigos problemas humanos como a violência e a pobreza e, ainda assim, tem um smartphone de alta tecnologia. Isso me assombrou por meses.
O maior paradoxo do mundo atual é que temos um progresso rápido e contínuo nas tecnologias físicas como celulares e computadores mas bilhões de pessoas não tem acesso algum a lei e governança de boa qualidade, ou o que você poderia chamar de “tecnologias sociais”.
Mesmo alguém tão pobre como Miriam pode conseguir um smartphone. Mas ela só pode sonhar com um bom acesso ao Estado de Direito, à infraestrutura, segurança e à possibilidade de começar um negócio formal ou de obter educação e saúde de qualidade. A única solução é tratar a lei e governança como a tecnologia que são. Como? Aplicando à lei e governança o mesmo empreendedorismo startup que têm funcionado tão bem na geração de inovações constantes nos celulares e nas câmeras. Nós promovemos as Cidades Startup como uma forma de emular o processo de tentativa e erro e bottom up do empreendedorismo startup na lei, governança e no projeto da comunidade.
A reforma política é extremamente delicada. É normal acharmos que uma reforma “fracassou” quando uma nova lei ou programa não é aprovado pelo Congresso. No entanto, a reforma, assim como o empreendedorismo, é repleta de fracassos. Às vezes uma reforma é capturada por interesses especiais e se torna um Frankenstein — algo horrível, fora de qualquer plano dos seus inventores. Ou algum comitê, em determinado ponto da discussão, a destrói. Pior ainda, muitas vezes os reformadores estão simplesmente enganados e acabam “fazendo mal ao tentar fazer o bem”. Os sistemas políticos são complexos, então é fácil diagnosticar incorretamente um problema — assim como é fácil desenvolver um produto singular que ninguém deseja comprar.
Você torna aumenta todos esses riscos ao reformar em nível nacional. Imagine que você têm milhões, talvez centenas de milhões de pessoas nesse sistema social incrivelmente complicado chamado de economia. Você contrata os melhores especialistas e os isola em um escritório distante do seu cliente: os cidadãos.
Então aquelas pessoas tentam conceber alguma solução. Você não “testa” nada. Você não “valida” suas ideias. Nas palavras do guru das empresas startups, Steve Blank, você nunca “sai do prédio”. Você simplesmente impõe um grande plano a milhões de pessoas.
As Cidades Startup invertem essa lógica. Comunidades concorrentes têm autonomia suficiente para testar novas e diversas abordagens ao mesmo problema. Esse é o espírito empreendedor da humildade por meio da experimentação. Quaisquer fracassos são pequenos e locais, em vez de afetar toda uma nação. Normalmente, experimentos locais são mais baratos e de análise mais fácil. As cidades são mais ágeis do que nações e podem se adaptar a fracassos mais rapidamente.
Estamos surpresos pela boa receptividade que a ideia tem recebido ao redor do mundo. Poucos anos depois que começamos, duas nações, Honduras e a República da Geórgia, têm feito avanços significativos em direção ao uso de cidades autônomas para reformas. Embora cada nação tenha uma abordagem particular, ambos os projetos têm o espírito das Cidades Startup. Falamos com outras nações que estão avaliando esses projetos de perto e, se funcionarem, implementarão nos anos seguintes.
Mas na verdade muitos países já estão se movendo nessa direção. Milhares de zonas especiais de negócios já existem — simplesmente não têm a autonomia e a escala para se tornarem grandes cidades. Sem a autonomia necessária elas também não podem competir de forma eficiente umas com as outras.
Todas as peças para a formação das Cidades Startup já estão lá. As zonas especiais econômicas (ZEEs) da China há muito competem ferozmente por empreendedores. No inicio dos anos 2000, Dubai foi pioneira na criação de pequenas zonas com sistemas jurídicos independentes. A Suíça e Liechtenstein têm governança local extremamente efetiva e Cingapura permanece uma cidade-estado próspera. Até mesmo os Estados Unidos incorpora novos municípios anualmente.
O mundo em desenvolvimento está cheio de projetos de “novas cidades” como Songdo na Coréia do Sul ou Masdar em Abu Dhabi. Infelizmente, os governos tendem a cometer os mesmos erros cometidos com tradicionais hubs de startups. Eles focam na construção de grandes edifícios e de amplas rodovias em vez de tornar a vida social atrativa e fácil para os empreendedores: tribunais confiáveis, baixa criminalidade, vida noturna divertida e uma polícia que não vai te extorquir. Quanto a nós, estamos no centro da ação aqui na Universidad Francisco Marroquín, localizada na Cidade da Guatemala. Somos capazes de alavancar essa posição no mundo em desenvolvimento, alcançando prefeitos, reformadores, tecnólogos e ativistas de Moçambique a Detroit e em muitos outros lugares no caminho.
Todos os problemas são oportunidades para os empreendedores. A melhor forma de resolver algo é conectar o problema a um negócio lucrativo.
Provou-se muito mais difícil do que as pessoas pensavam criar vibrantes centros de negócios ao redor do mundo. Os países tendem a cometer o mesmo erro: sobrestimar “concreto e salas de aula”. As comunidades de startups são formadas por suas pessoas. Ao invés de investir em instalações luxuosas ou na expansão das Universidades, as nações deveriam analisar como poderiam tornar a vida mais fácil e mais atrativa aos pequenos empresários.
Facilite a vida de imigrantes chegarem e abrirem suas empresas. Torne as ruas seguras, permitindo que as pessoas interajam em cafés e clubes, não em novos edifícios comerciais. O importante são as pessoas e sua criatividade, não grandes escritórios. Existe um problema similar em como as nações estão tratando os projetos de “novas cidades”. Os governos estão investindo milhões ou bilhões em infraestrutura, como se as pessoas estivessem unicamente preocupadas com museus de arte ou amplos calçadões. Você pode ver os resultados desastrosos disso nas diversas “cidades fantasmas” da China, onde cidades magníficas praticamente não possuem residentes.
Todos os problemas são oportunidades para os empreendedores. A melhor forma de resolver um problema é conectá-lo a um negócio lucrativo. O primeiro passo para a criação de uma startup é encontrar um problema na vida do seu cliente. Então você trabalha loucamente para encontrar uma solução escalável e replicável. Muitas pessoas pensam que problemas realmente sérios como a violência, a pobreza global, a malnutrição ou a falta de educação estão além das capacidades dos empreendedores. Isso não é verdade. Os grandes, sérios problemas de governança e comunitários advêm de nosso fracasso em liberar o poder do empreendedorismo na escala certa.
Pense dessa maneira: estabelecemos um sistema político e jurídico de forma que os mercados funcionem e os empreendedores possam resolver toneladas de problemas. É surpreendente — todos esses empreendedores trabalhando paralelamente, tentando coisas diferentes. Mercados são máquinas de resolução de problemas. Milhões de pessoas utilizam o processo de tentativa e erro para algum tipo de solução. Nós aceitamos isso como natural na maioria das áreas de nossas vidas. Mas não na área mais importante: a forma pela qual estruturamos as comunidades. Ao mesmo tempo em que elogiamos a habilidade de resolução de problemas dos empreendedores, reclamamos da corrupção ou da pobreza em nossos sistemas político e jurídico.
Não temos progresso nesses sistemas justamente porque não permitimos soluções efetivamente empreendedoras. Se tratássemos outras tecnologias da mesma forma que tratamos a lei e governança, não iríamos a lugar algum. Pense em como seria o mundo da fotografia caso a Kodak tivesse recebido poder de monopólio sobre o futuro da câmera. Sim, eles realizariam pesquisas em seus laboratórios. Ocasionalmente lançariam algo interessante. Mas nós nunca teríamos a escala de inovação e progresso atual, que requer startups constantemente entrando nos mercados e sendo disruptivas com suas novas ideias. A maioria dos governos é como a Kodak, lutando para sobreviver em mercados altamente dinâmicos como lei e governança.
Qual o grau de aventura que você deseja?
Países como a Estônia, Nova Zelândia, Singapura ou Hong Kong reduziram os requisitos para abrir negócios. Qualquer pessoa pode consultar o relatório “Doing Business” do Banco Mundial e verificar a facilidade (ou a dificuldade) que cada país oferece no que tange aos procedimentos legais. Então, nesse sentido, dirija-se para esses centros de negócios mais fáceis e livres de burocracia.
Por outro lado, se você está buscando os problemas realmente graves e uma aventura inesquecível, outras nações se encaixam melhor. Estabelecer um negócio facilmente não é o que mais importa. Os empreendedores são desesperadamente requeridos em lugares onde é, frequentemente, mais difícil abrir uma empresa. Além disso, ambientes altamente competitivos como, digamos, Singapura, a sua startup enfrentará uma forte concorrência. Em países onde é mais difícil operar uma empresa, como Quênia ou Guatemala, você tem a chance de ser um pioneiro.
As pessoas enfrentam problemas muito mais sérios fora das “mecas” dos negócios como o Vale do Silício ou Nova Iorque. Estes locais deveriam atrair aqueles que realmente querem fazer a diferença. Empreendedores podem preencher as lacunas onde empresas existentes e mesmo governos fracassaram. Pense no serviço privado de ambulância de Shaffi Mather ou das caixas de internet de BRCK. Os países em desenvolvimento precisam de empreendedores que ultrapassem os limites em áreas tradicionais como o acesso ao alimento e agua, educação e telecomunicações, mas também na medicina, no planejamento comunitário e na segurança.
Existem muitas oportunidades se você é corajoso o suficiente para se aventurar nas economias mais desafiadoras. Talvez em breve elas terão uma série de Cidades Startups, que receberão você e sua ideia que mudará o mundo.
Este artigo foi publicado originalmente na Virgin em 28 de julho de 2014 e traduzido por Mateus Pacini.
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