Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Precisamos aproveitar esta oportunidade única para repensar nossas ruas e assegurar um deslocamento seguro para todos e não apenas aos usuários de automóvel.
27 de julho de 2020As cidades estão na linha de frente no enfrentamento da Covid-19. Esta pandemia manifesta-se como uma crise global, e as decisões tomadas neste delicado momento pelos governantes, formuladores de políticas, tomadores de decisão e a população têm sérias consequências futuras. Inúmeros contextos já estão sofrendo alterações que modificam — mesmo que momentaneamente — o comportamento da humanidade. Medidas de distanciamento social, lockdown, cuidados sanitários e a contenção da mobilidade urbana — abrindo espaço para a micromobilidade — apresentam-se como elementos consideráveis na transformação dos novos cenários urbanos.
A mobilidade urbana está afetada pelas múltiplas ordens e medidas que variam dentre regimes mais rígidos e/ou mais flexíveis em diferentes contextos. Um exemplo recente dos problemas que a pandemia está ampliando pode ser observado pelo déficit divulgado de US $16 bilhões do Metrô de Nova York para os próximos 4 anos. Uma cidade onde o transporte público é uma opção habitual, o prejuízo é significativo. Apesar do metrô estar com problemas que afetam o nível de serviço, a força de trabalho e a melhora na infraestrutura, o distrito de Manhattan e boa parte do Brooklyn, assim como o Queens, dispõem de densidade populacional e diversidade. Indicadores, que quando combinados de uma maneira acertada, são fatores essenciais para convivência, qualidade do espaço urbano e implementação de estratégias de mobilidade urbana sustentável.
A maneira como as pessoas deslocam-se mudou rapidamente e alternativas como o home office, antes adotado com certo cuidado e planejamento, agora manifestam-se como soluções imediatas. Em relação às atividades essenciais e domésticas, a escolha e a utilização de modos ativos, assim como o automóvel, figuram como as novas preferências pessoais, visto que a opção pelo transporte público não é uma medida adequada para o atual momento.
A micromobilidade atualmente está em evidência e é empregue com frequência na área do planejamento urbano, transportes e tecnologia. Este termo é ambíguo e refere-se a uma variedade de veículos leves, que registram uma presença cada vez maior nas ruas ao redor do mundo.
Horace Dediu — um dos responsáveis pela popularização da micromobilidade —, propõe que o termo “micro” refere-se aos veículos utilizados em deslocamentos de curtas distâncias de um maneira conveniente e barata. O Institute for Transportation & Development Policy descreve como a crescente família de dispositivos pequenos e leves que operam em velocidades tipicamente abaixo de 25 km/h, ideais para deslocamentos abaixo de 10 km. Assim, veículos que dispõem de motores de combustão com velocidades máximas acima de 45km/h não são reconhecidos como veículos de micromobilidade.
A variedade de serviços de compartilhamento à disposição e sua cobertura geográfica demonstram-se pertinentes para expansão e integração da micromobilidade aos sistemas de transportes usuais. A micromobilidade compartilhada proporciona opções de transporte que, além de atender a demanda, têm a capacidade de diminuir o congestionamento e as emissões, assim como melhorar a saúde pública nas áreas urbanas¹.
A Comissão das Comunidades Europeias², afirma que as escolhas que fazemos referentes a forma de viajar afetarão não somente o crescimento urbano futuro, mas também o bem-estar econômico dos cidadãos e das empresas. O espaço urbano é fundamental para a mobilidade, e é possível perceber que as cidades atualmente enfrentam dificuldades para circulação e armazenamento de automóveis individuais, vide o tempo despendido nos congestionamentos em horários de pico.
As cidades que não oferecem a opção de mobilidade através de modos sustentáveis precisam urgentemente repensar o conceito de mobilidade urbana e adaptarem-se às novas necessidades da população.
Os grandes desafios do distanciamento social estão associados ao deslocamento. Assim, alterações nas calçadas, restrições de tráfego, criação ou expansão de infraestrutura para transportes mais sustentáveis podem impedir novas ondas de infecção, além de melhorar a qualidade do ar e a saúde pública.
Num período marcado por restrições ao transporte público coletivo e aglomerações, a população possui duas opções para se deslocar seguramente: os modos ativos e o transporte individual. A opção pelos modos ativos é a mais sustentável e apropriada. Assim, líderes e agentes das cidades possuem uma grande oportunidade para impulsionar mudanças, tanto no ambiente construído quanto na tomada de decisão.
De acordo com o UK Department for Transport, 68% das viagens na Inglaterra têm menos de 8 quilômetros. Em suma, esta distância pode ser concluída pelas pessoas através veículos de micromobilidade ou caminhada.
A criação de vias multimodais e o fornecimento de infraestrutura adequada para pedestres e usuários dos veículos de micromobilidade estão crescendo durante a pandemia. Apesar deste aumento não ser capaz de mudar o patamar em que as cidades encontram-se, é possível dizer que é uma tendência global, visto que diferentes continentes estão adotando.
Segundo Wray, estão sendo abertos 76 quilômetros de ciclovias temporárias em Bogotá. Nova York trabalha para oferecer 120 quilômetros a pedestres e ciclistas. Quanto à infraestrutura fornecida pelo setor público de NYC, o programa Open streets está disponibilizando 64 quilômetros de ruas para possibilitar a prática mais adequada do distanciamento social em razão da pandemia de Covid-19.
Estas “ruas abertas” funcionam diariamente, das 8h às 20h, para pedestres e usuários de microtransporte usufruírem do leito da rua. O tráfego de veículos direto não é permitido e atua com restrições para entregas, emergências e veículos da cidade.
Em outras circunstâncias, mas ainda no âmbito de não propagar o vírus, Porto, em Portugal, e Vilnius, na Lituânia, estão permitindo uma quantidade maior de área de esplanadas para utilização, com o intuito de oferecer maior conforto e segurança para os usuários nas áreas externas.
Uma matéria do The Guardian descreveu que o congestionamento gerado pelo tráfego de automóvel em Milão diminuiu de 30% a 75% durante o lockdown nacional. Com o escopo de não incentivar o uso do veículo privado, o Plano Strade Aperte (Milão), anunciado em abril de 2020, contém ciclovias temporárias de baixo custo, calçadas novas e mais amplas, restrição de velocidade a 30km/h e ruas prioritárias para ciclistas e pedestres. Janette Sadik-Khan, ex-comissária de transportes da cidade de Nova York, observa que este momento é uma oportunidade única para repensar as ruas e assegurar o deslocamento de todos com segurança e não apenas dos usuários de automóvel.
Em virtude da caracterização dos benefícios da micromobilidade e da necessidade de repensar o espaço público para adoção de novas práticas num período de crise, a governança é imprescindível, seja na dimensão vertical, seja na horizontal, onde a criação de novas formas de integração e coerência institucional tornam-se necessárias para haver mudanças fundamentadas.
Neste momento de pandemia, onde o automóvel e os modos ativos são os meios de transportes mais seguros, é de total importância estimular novos comportamentos através de meios de transportes mais sustentáveis, assim como a reconfiguração do espaço dado aos automóveis. A micromobilidade está alterando cada vez mais a mobilidade das cidades e é essencial que tomadores de decisão, planejadores urbanos, assim como os usuários, compreendam que esta prática tem a capacidade de tornar-se um meio de transporte popular, seguro e de baixa emissão de carbono durante e após a pandemia.
Acredito que já passamos da hora de orientar as cidades para um novo rumo, no entanto, esta pandemia nos apresenta uma nova oportunidade. Inúmeros lugares estão adotando novas medidas que com certeza farão diferença na vida dos cidadãos a curto, médio e longo prazo, por isso, a hora é agora, a responsabilidade está na caneta dos líderes e tomadores de decisão para alterar paradigmas que direcionam o planejamento urbano em volta dos carros.
¹ Parkes et al. (2013). Understanding the diffusion of public bikesharing systems: evidence from Europe and North America. J. Transp. Geogr. V31 (2013), 94–103.
² Comissão das Comunidades Europeias (2009). Plano de Ação para a Mobilidade Urbana.
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