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Às 9h, Rafaela Aires começa seu dia de trabalho em Fortaleza (CE), por ruas que serpenteiam ao longo da orla e sob passarelas de concreto. Antes, as garrafas e caixas de papelão que ela recolhia formavam pilhas em um carrinho que ela transportava apenas com a força do corpo. Agora, os resíduos fazem barulho no compartimento de coleta de seu triciclo elétrico, enquanto ela passa rapidamente pelas ciclovias.
“Me sinto uma guerreira quando estou pedalando”, diz Rafaela, rindo. “Estou muito feliz.”
Nem sempre foi assim. Como catadora há muito tempo em Fortaleza (CE), Aires lembra de ter sido desprezada e insultada por seu trabalho no passado. De acordo com Musamara Pereira, outra catadora, quem realizava a atividade era muitas vezes chamado de “urubu” ou “rasga-lixo”. “As pessoas não nos viam como profissionais”, conta.
Mas o trabalho de Rafaela e Musamara é essencial.
Como muitas outras cidades brasileiras, a Prefeitura de Fortaleza não conta com um programa abrangente de coleta seletiva. A gestão de resíduos recicláveis se apoia no trabalho de cerca de 8 mil catadores – que não são formalmente empregados pela cidade –, os quais realizam a maior parte dos serviços de coleta e vendem os recicláveis coletados para terceiros para ganhar a vida.
Embora tenha havido esforços governamentais no Brasil para formalizar a profissão nas últimas décadas, a maioria dos catadores enfrenta condições de trabalho perigosas. Muitos puxam até 240 quilos de resíduos ao longo de uma jornada de trabalho de 18 horas, usando carroças de mão. Os salários variam com base na quantidade que cada pessoa coleta e no que conseguem vender, sendo que o catador médio em Fortaleza ganha cerca de R$ 300 por mês.
Enquanto isso, o lixo se acumula. Em 2023, apenas 6% dos recicláveis de Fortaleza chegaram a instalações de processamento, deixando as calçadas cheias de sacos de lixo e caixas de papelão. “Às vezes, Fortaleza não é uma cidade limpa”, admite a dona de um restaurante local Manu Duvale. “Convivemos com o lixo como se não fosse nada.”
Mas, nos últimos quatro anos, o problema da reciclagem em Fortaleza — e o trabalho dos catadores — tem melhorado gradualmente. Isso se deve em grande parte a um projeto inovador chamado Re-ciclo, liderado pelo Laboratório de Inovação da Prefeitura de Fortaleza. E trabalhadores e trabalhadoras em triciclos elétricos como Rafaela Aires estão impulsionando essa mudança.
Reimaginando a gestão de resíduos em Fortaleza
Fortaleza está longe de ser a única cidade no Brasil com lacunas na infraestrutura de reciclagem; mais de 90% dos resíduos do país acabam em aterros ou lixões. Isso tem um impacto significativo no clima. Em Fortaleza, os resíduos não reciclados respondem por um terço das emissões de gases de efeito estufa da cidade.
O Re-ciclo trabalhou para apoiar os catadores de Fortaleza e expandir a infraestrutura de reciclagem, redefinindo como a cidade lida com os resíduos. Elemento central nesse movimento, uma frota de triciclos elétricos implantada pelo programa permitiu o primeiro serviço de coleta de recicláveis porta a porta da cidade, ao mesmo tempo em que fortaleceu a rede cicloviária como um todo.
O Re-ciclo reimaginou o que um catador pode fazer.
Por meio do programa, os catadores agora coletam recicláveis ao longo de rotas específicas pelos bairros da cidade, parando em casas e apartamentos onde os moradores solicitaram a coleta de resíduos. Os recicláveis são depositados em um dos vários “EcoPontos” — uma rede de centros de coleta — onde são separados e limpos pelos catadores e, em seguida, vendidos para intermediários de reciclagem. O Re-ciclo reformulou essa infraestrutura de coleta, que antes era ineficaz, para apoiar o programa.
Mas o Re-ciclo não é apenas um programa de coleta de resíduos. Ele também melhorou significativamente as condições de trabalho dos catadores.
Na maioria dos casos, uma melhor reciclagem se traduziu em um trabalho mais eficiente e uma remuneração mais estável para os trabalhadores do Re-ciclo. Raquel Silva, presidente da Associação de Catadores Moura Brasil, explicou que agora pode visitar de 10 a 16 pontos de coleta por viagem antes de retornar aos EcoPontos, no mesmo tempo que antes levava para visitar 3 ou 4 locais.
O programa também coleta dados ao longo das rotas, permitindo que os catadores acompanhem o volume de recicláveis coletados e negociem melhor sua remuneração. O Re-ciclo incentiva catadores não afiliados a se unirem às associações para aumentar o poder de negociação coletiva.
Graças a uma renda mais estável e à coleta monitorada de maneira confiável, a maioria dos trabalhadores agora recebe salários significativamente mais altos — até 500% acima dos níveis anteriores. “Hoje, o catador que faz parte do Re-ciclo ganha seu salário diário pelas metas alcançadas”, diz Pereira. “[O catador] tem vale-transporte, tem vale-refeição e agora é valorizado.”
Como os catadores ajudaram a projetar um sistema de reciclagem melhor
O Re-ciclo começou de forma significativa durante a pandemia de Covid-19, quando o governo de Fortaleza buscou maneiras de apoiar os catadores, que subitamente ficaram sem poder trabalhar. O Laboratório de Inovação de Fortaleza (Labifor) tinha como objetivo desenvolver uma solução que pudesse atender às necessidades dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, enfrentar os problemas de resíduos da cidade. Os próprios catadores foram fundamentais nesse processo.
“Para nós, foi fundamental que as associações de catadores fizessem parte do desenho do programa desde o início”, explica Luiz Alberto Sabóia, presidente do Citinova, departamento da Fundação de Ciência, Tecnologia e Inovação de Fortaleza, que abriga o Labifor. O grupo conduziu sessões de foco com as 16 associações de catadores da cidade. Segundo Nirlania Diógenes, gerente do Re-ciclo, essas discussões iniciais ajudaram a cidade a decidir pela criação dos EcoPontos e pela entrega dos triciclos elétricos aos catadores.
O Laboratório de Inovação continuou a trabalhar em estreita colaboração com as associações de catadores durante as fases de prototipagem do projeto, buscando feedback e identificando áreas para melhoria. Várias rodadas de testes permitiram à equipe criar triciclos elétricos mais leves, fáceis de manobrar e adequados às necessidades dos catadores. Os novos triciclos elétricos podem transportar até 150 quilos de recicláveis, cobrindo distâncias maiores com o dobro da velocidade das tradicionais carroças.
Em uma profissão marcada por alto risco de lesões e perigos à saúde, o Re-ciclo forneceu aos catadores equipamentos de proteção individual e uniformes de cores vivas para aumentar sua visibilidade. O Labifor realizou workshops de treinamento para familiarizar os trabalhadores com as novas rotinas de coleta, apoiar a transição para os triciclos elétricos e treiná-los para interagir com os clientes.
A implementação do programa exigiu um alcance em toda a cidade. Pelo site do projeto, a populção pode solicitar o agendamento da coleta residencial ao longo das rotas do Re-ciclo. Enquanto isso, aqueles que moram fora das rotas de serviço poderiam deixar seus resíduos diretamente nos EcoPontos. Isso expandiu o acesso à reciclagem e ajudou a aumentar a facilidade e a conveniência da coleta, fornecendo uma solução facilmente escalável. A cidade também conduziu campanhas educacionais para moradores e proprietários de empresas durante toda a fase de desenvolvimento.
“Acho que qualquer um que tome conhecimento e entenda [o Re-ciclo] não pode deixar de apreciá-lo”, diz Manu Duvale, a gerente do restaurante. “Quando [o lixo] é bem cuidado, é uma fonte de renda; é matéria-prima.”
Orgulho renovado pela reciclagem está inspirando uma cidade mais verde
Fortaleza começou a notar os resultados. Os triciclos elétricos do Re-ciclo transportaram 380 toneladas de recicláveis durante o primeiro ano completo de operações e ajudaram a reciclar 980 toneladas de resíduos desde 2022. Graças a esse projeto e a outros incentivos do governo municipal, Fortaleza viu um crescimento de 541% no programa de reciclagem.
“É um divisor de águas em Fortaleza em termos de coleta seletiva de resíduos”, afirma Sabóia.
Hannah Mendes, moradora de Fortaleza, lembra do lixo gerado durante o período do Carnaval da cidade e ficou surpresa ao ver praias limpas na manhã seguinte à festividade. “Tudo já foi coletado e está tudo limpo. É muito gratificante ver.”
Entre os catadores, o projeto criou um sentimento de orgulho. Muitos citaram os uniformes e os triciclos elétricos como fontes de maior reconhecimento da comunidade. Os moradores entraram em contato com os catadores para saber mais sobre o projeto ou para se inscrever. Alguns até pedem para tirar selfies com os trabalhadores da Re-ciclo. E o trabalho nos galpões de reciclagem não gera mais o julgamento que costumava ocorrer. “Você vai a um galpão ou a uma associação e vê muitos jovens trabalhando… e não há mais preconceito”, explica Borges, um catador de lixo de longa data.
Do piloto à prática
À medida que continua a se expandir, o Re-ciclo está desempenhando um papel crescente na sustentabilidade de longo prazo de Fortaleza. O projeto agora faz parte do Mais Fortaleza, um programa da cidade que abrange várias iniciativas de economia circular e está agora incluindo a disposição de resíduos eletrônicos nos EcoPontos. O governo municipal tem como meta reciclar 50% de todos os resíduos nos próximos oito anos.
O Labifor planeja aumentar a frota de 20 para 150 triciclos elétricos até dezembro de 2024, empregando mais de 200 catadores e atendendo os 12 distritos da cidade. O trabalho contínuo com a Iniciativa TUMI, que financiou o projeto piloto inicial, visa otimizar as rotas por meio de mapeamento de dados e análise espacial. A equipe também espera equipar futuros triciclos elétricos com painéis solares para carregá-los durante as coletas.
O Re-ciclo pode, eventualmente, servir como um modelo para futuras iniciativas de reciclagem em todo o país. O Plano Nacional de Resíduos Sólidos do Brasil, de 2022, estabelece como meta que 48% de todos os resíduos sejam reciclados até 2040, embora enfrente desafios consideráveis para alcançar esse objetivo.
Mudar atitudes não acontecerá da noite para o dia, disse Élcio Batista, vice-prefeito de Fortaleza — embora os moradores estejam começando a “perceber o quanto podem contribuir”. Conectar as pessoas ao descarte de reciclagem é um primeiro passo importante. Segundo Sabóia, o programa já inspirou cidades vizinhas, como Sobral, a seguir o exemplo.
Para os catadores, o Re-ciclo é um lembrete diário de sua importância.
“Estamos reciclando, e eu posso ajudar muitas pessoas sem oportunidades de emprego”, reflete Raquel Silva. “Estou salvando o meio ambiente — é uma mistura de muitas coisas. Para mim, é uma alegria fazer parte do Re-ciclo e ser uma catadora.”
Artigo originalmente publicado em WRI Brasil, em setembro de 2024.
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