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A partir da década de 1950, o Brasil vivenciou uma urbanização acelerada a partir do intenso êxodo rural. À época, a população urbana do Brasil representava apenas 36% do total, hoje ela atinge a incrível marca de 85%. Este enorme fluxo de migrantes impôs desafios sem precedentes para a administração pública, a gestão das cidades se tornou mais complexa em razão das novas demandas e dinâmicas sociais.
Os planejadores urbanos, influenciados pelo pensamento modernista, buscaram ordenar o crescimento das cidades através da imposição de regulamentações restritivas ao setor imobiliário e da definição de zonas específicas para cada tipo de atividade. A atuação estatal focava em impedir a proliferação desordenada de imóveis, superlotação dos centros urbanos e uma suposta incongruência entre atividades laborais e habitação.
Todavia, esta abordagem centralizadora se demonstrou extremamente prejudicial, impulsionando a degradação e abandono dos centros urbanos. Os princípios norteadores do modernismo demonstraram ser incompatíveis com a dinâmica presente nas cidades, pois tratavam de forma extremamente rígida um objeto fluido e espontâneo. Jane Jacobs, jornalista, ativista comunitária e autora de Vida e Morte das Grandes Cidades, dedicou sua vida a atacar esses princípios e rechaçar o planejamento “top down”.
No contexto brasileiro, por óbvio, a regulamentação criada não foi capaz de evitar o crescimento desordenado e disfuncional das cidades, pelo contrário, ela contribuiu para este fenômeno. As restrições impostas às edificações impactaram negativamente na oferta de moradia, resultando na explosão da informalidade. Houve um incremento substancial no custo para construir imóveis regulares, dificultando o desenvolvimento de empreendimentos para pessoas com menor renda. O aumento considerável da demanda pressionava os preços de imóveis e, consequentemente, restringiram o acesso à cidade formal.
Os parâmetros urbanísticos diminuíram a possibilidade de adensamento em áreas servidas de infraestrutura, basta observar que bairros mais antigos, como Copacabana, no Rio, e a República, em São Paulo, apresentaram densidade muito superior à Barra da Tijuca e Pinheiros, por exemplo. Neste contexto, a provisão de serviços à população se tornou ainda mais difícil pois os custos de levar infraestrutura e equipamentos públicos para uma cidade espraiada são elevados. Em assentamentos informais, o provimento dos serviços essenciais só é possível de forma precária e com inúmeras irregularidades.
O grande volume de normas também resultou em ônus significativos para empreendedores e a dinâmica interna da administração pública. A separação de usos fez com que várias atividades tivessem de se instalar em regiões que não forneciam condições para a viabilidade do negócio, os incorporadores passaram a arcar com novos custos relacionados a litígios, burocracia e técnicos. Arquitetos perderam espaço para criação, uma vez que a lei passou a estabelecer boa parte dos parâmetros do projeto. As questões pontuadas afetam menos, ou até beneficiam grandes empresas, estas têm maior capacidade de absorver custos e podem se aproveitar de um ambiente menos competitivo.
Do ponto de vista da burocracia, as incontáveis normas estabelecidas passaram a exigir recursos técnicos e institucionais elevados. Em decorrência disso, os processos de licenciamento urbanístico se tornaram mais complexos e morosos, o número de litígios cresceu e se perdeu de vista a principal função administrativa do estado, a zeladoria e qualificação dos espaços públicos.
Não se questiona o fato de que parte dos regulamentos possam ter sido estabelecidos para atender a interesses privados e que a falta de subsídios técnicos na administração resultou em regulamentações mal elaboradas. Essas justificativas são utilizadas, em grande medida, para argumentar que não são as normas restritivas as responsáveis por causar as externalidades negativas apontadas.
Certamente, não é possível culpar exclusivamente o ideário modernista e adjacentes pelo contexto atual. Todavia, é inegável que estes fatores negativos foram impulsionados pelo modelo de regulação urbanística adotado, pois, a partir do aumento da intervenção do estado no território, a margem para a edição de benéficas a grupos de interesse privado, também cresceu. O constante acréscimo de mais complexidade na legislação tornou a execução da política urbana ainda mais conturbada.
Por outro lado, a desregulamentação urbanística não implica necessariamente em desordem ou maior suscetibilidade a corrupção. Existem técnicas sofisticadas capazes de avaliar impactos, mitigar a ocorrência de ilegalidades e garantir participação, que incluem análises de risco, consultas públicas, monitoramento contínuo e sistemas de gestão transparentes. As decisões estatais, se fundamentadas tecnicamente, conferem previsibilidade aos agentes e, consequentemente, incentivos para o desenvolvimento da localidade.
Análises realizadas em solo brasileiro e internacional apresentaram fortes indícios acerca das teses defendidas neste artigo. Anagol, Ferreira e Rexler argumentam que a reforma ocorrida no zoneamento de São Paulo em 2014, mesmo que tímida, foi responsável por amenizar o aumento dos preços dos imóveis na cidade. Aponta-se a diminuição de restrições urbanísticas em lotes próximos a grandes vias e infraestrutura de transporte de massa como a principal causa. Em Goiânia, apesar dos vários questionamentos estéticos feitos acerca das edificações, a legislação apresenta menos restrições do que em outras capitais e, tudo indica que isso resultou em uma maior acessibilidade à moradia formal.
Em Tokyo, a maior região metropolitana do mundo, o desenvolvimento imobiliário tem um campo fertil para atuação, o zoneamento é menos rígido do que o observado no Brasil, Estados Unidos e Europa, e as restrições de altura podem ser flexibilizadas à medida que os bairros se densificam. Este cenário promoveu uma explosão na construção de habitações. Nos últimos 50 anos, o número de moradias adicionadas à cidade é superior ao total de moradias existentes em Nova Iorque hoje. Tudo indica que este é o fator chave para que o custo relativo da habitação seja significativamente menor do que em São Paulo e da maioria das metrópoles globais. Além disso, mesmo quando a vacância dos imóveis tenha aumentado, novas moradias seguiram sendo construídas.
Houston, por sua vez, realizou duas reformas importantes que diminuíram o tamanho mínimo para um lote e, recentemente, pesquisadores reconheceram um impacto positivo significativo no aumento da construção de residências – com efeitos na acessibilidade da habitação. Existe forte correlação entre o maior número de novas moradias construídas e a diminuição dos custos de habitação nos Estados Unidos como um todo. De forma geral, as políticas denominadas YIMBY vem ganhando tração em todo território norte americano, inclusive na Califórnia, estado reconhecido por políticas extremamente hostis ao desenvolvimento imobiliário.
Os exemplos acima expostos contribuem para a inferência de que menos restrições urbanísticas viabilizam aumento de oferta de habitação, competitividade do mercado imobiliário, acessibilidade e redução da população em situação de rua. Este paradigma deve ser adotado juntamente a modernização de procedimentos burocráticos e da edição de legislação mais clara, que, por sua vez, serão responsáveis por oferecer mais segurança jurídica, produtividade e investimentos na região.
A superação do atual paradigma requer uma ampla reforma da legislação urbanística. O ordenamento jurídico deve ser pensado a partir do dinamismo presente nas cidades, e focado em oferecer as condições para uma atuação responsiva da administração pública. O modelo atual sufoca o desenvolvimento dos centros urbanos e priva os cidadãos brasileiros de incontáveis oportunidades.
* Pedro Portes é consultor jurídico, especialista em Direito Público, trabalha com planejamento urbano no Instituto Cidades Responsivas.
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