Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Sua obra se tornou uma espécie de símbolo de urbanismo, uma referência usada por muitos de uma cidade organizada mas que, ao mesmo tempo, não perdeu seu romantismo.
25 de março de 2014Estamos na metade do século XIX: o Barão de Haussmann, planejador urbano apontado pelo imperador Napoleão II, desenha seus planos para uma nova Paris. A obra de Haussmann, uma das maiores intervenções para redesenvolvimento urbano na história da humanidade, transformaria a cidade para sempre, gerando um resultado muito próximo ao que se vê hoje.
A Paris do passado ainda pode ser vivenciada ao caminhar pela região do Marais, uma das que sofreu menos interferências com o ambicioso projeto do Barão, ou através das lentes de Charles Marville, exposição da qual selecionamos algumas imagens para ilustrar esta postagem.A abertura das grandes avenidas atravessando as antes ruelas tortuosas, um dos maiores marcos do projeto de Haussmann, tiveram uma série de prerrogativas, sendo a primeira o combate da “miasma”, teoria há décadas ultrapassada que defendia que o “ar ruim” produzido pelas aglomerações urbanas e ruas estreitas eram a causa da proliferação de doenças.
O projeto também tinha um caráter desenvolvimentista e transformador, a intenção de diferenciar Paris de qualquer outra cidade e torná-la uma referência mundial para outras cidades. Outra, defendida por alguns historiadores mas mais controversa, diz que a intenção era a facilidade da movimentação e coordenação das tropas do exército contra insurreições populares, como as ilustradas recentemente na última versão do filme “Os Miseráveis”, que também tenta retratar a Paris antiga.
Seja qual for a causa, a obra de Haussmann se tornou uma espécie de símbolo de urbanismo, uma referência usada por muitos de uma cidade organizada mas que, ao mesmo tempo, não perdeu seu romantismo. No entanto, hoje dificilmente alguém teria coragem de defender os meios que possibilitaram que isso acontecesse. Paris foi resultado de um plano quase ditatorial envolvendo a expropriação de cerca de 350 mil pessoas pelo “bem comum” da cidade — principalmente moradores pobres que “estavam no caminho” das grandes obras públicas.
Ainda, o governo escoou uma enorme quantidade de recursos públicos para a capital, se endividando em níveis absurdos para conseguir executar a obra. Quanto à estética, foi neste momento que as fachadas e as edificações privadas tornaram-se controladas e uniformes, uma regulação que perdura até os dias de hoje.
Quanto ao resultado da obra, é frequente ouvir o lado positivo, como o resultado que isso trouxe para o turismo atual e a atualização da infraestrutura de esgoto. No entanto, nem tudo são flores em Paris. Não só houve milhares de desapropriações, mas após a renovação houve um grande aumento no preço dos aluguéis, expulsando os moradores pobres do centro da cidade.
Estes antes coabitavam a mesma edificação com moradores mais ricos, embora em andares mais altos – lembrando que não existiam elevadores na época. Foi o início da exclusão dos pobres aos banlieus, as periferias francesas, muitas delas regiões perigosas e de tensão social, com episódios como os incêndios de ônibus em 2005.
Ainda, o projeto de Haussmann deixou a cidade endividada, problema que foi potencializado após a depressão econômica que veio logo em seguida. As restrições estéticas atraíram turismo, mas ao mesmo tempo impediram o desenvolvimento da cidade propriamente dita.
Nas regiões centrais, grande parte da cidade foi gradualmente perdendo sua característica “funcional” como cidade, desenvolvendo ao longo dos anos um caráter quase exclusivamente contemplativo — um ambiente que gira apenas em torno do turismo. Alguns chamam essa característica de “museu à céu aberto”, outros de “parque temático” da humanidade.
Isso limitou ainda mais a oferta de imóveis, aumentando os preços, elitizando as regiões centrais e restringindo renovações em edifícios que não estão de acordo com os padrões atuais de conforto e segurança. Nenhuma das edificações antigas, por exemplo, passaria por qualquer critério técnico de segurança contra incêndio ou acessibilidade universal. Ainda, muitas habitações seriam consideradas “desumanas” para os padrões regulatórios brasileiros, frequentemente com menos de 15 m² para poderem ter um preço acessível.
Ao observar um resultado visualmente agradável é difícil entender as consequências não-intencionais do planejamento, muito menos a indignação parisiense da época. Assim, deixo a palavra para Jules Ferry, político francês da época e autor de um texto que se tornou uma crítica célebre à Haussmann, mas raramente divulgado em português. Fizemos o trabalho de traduzi-lo, acompanhado de algumas das fotos de Marville. Divirtam-se.
“Aos Membros da Comissão do corpo Legislativo encarregados em examinar o novo empréstimo à Cidade de Paris.
Senhores,
Para um cidadão parisiense, é uma grande liberdade me endereçar a vocês. Se sabe muito bem que parisienses não são capazes de lidar com assuntos que dizem respeito a eles mesmos, e que as pessoas de Cantal ou Lozère são as únicas que sabem o que é melhor para nós. É por esta razão que a maioria, esta que vocês representam, não ousou colocar um único representante de Paris na comissão que tem em suas mãos tanto nosso presente como nosso futuro.
Eu não digo isso, Senhores, para superestimar sua importância, mas é isto mesmo que acontece. Vocês podem, se quiserem, nos salvar de uma catástrofe, àquela que nos conduzimos de cabeça baixa; mas se vocês não quiserem ou não ousarem, iremos diretamente à fossa. O momento é crítico, e o Sr. Prefeito do Sena não conseguirá, desta vez, passar por cima de vocês. Ele é, sem dúvida, um grande personagem. Ele é mais que um grande personagem, ele é uma das grandes instituições do nosso tempo.
Mas, como vocês sabem, como eu disse desde o início, sempre acreditei que ele pode ter, no fundo, tanto medo de vocês quanto vocês tem medo dele. Ajam como homens e vocês verão que isso é verdade. Em todo caso, vocês não podem alegar ignorância. Todos avisaram vocês, e a verdade grita pelos telhados na sua direção.
As humildes reflexões que seguem, e que um jornal que vocês sem dúvida pouco leem — infelizmente — decidiu publicar, agora estão acessíveis a todos. É da escrita do Prefeito da Região do Sena que eu aprendi tudo que sei. Não sou um feiticeiro, como vocês podem ver. Mas diante de todos vocês o véu será removido, assuntos arcanos revelados, e coisas que vocês aprenderão, um pobre jornalista não pode ver. Não há missão mais invejável que a de vocês e é uma honra ajuda-los, mesmo que de forma singela.
Antes de entrar no assunto, permitam-me, Senhores, de definir a situação atual entre o Prefeito do Sena e a população que ele governa, impõe, endivida e tritura há quinze anos sem medida e sem controle. Parisienses não falam que ele não tinha nada a fazer na antiga Paris, no momento que o Senhor Prefeito começou seu cargo destrutivo; eles também não falam que o Senhor Prefeito não fez nada de útil ou de necessário.
Reconhecemos que fizemos da nova Paris o mais belo albergue da Terra e que os parasitas de ambos mundos não encontram nada comparável. Nos damos conta do trabalho indispensável que exige uma grande cidade, que é o encontro de todas as estradas de ferro.
Tomamos o cuidado para não falar que tudo estava absolutamente errado com os inúmeros caminhos que, desmembrando obliquamente em todos os sentidos da velha capital, dão à nova um aspecto desagradável de um quebra-cabeças chinês. Nós achamos feio por conta própria, mas concordamos que o mau gosto do Senhor Prefeito acompanhou o mau gosto dos arquitetos e de uma porção notável do público.
Achamos que é esforço desperdiçado lastimar a antiga Paris, a Paris histórica e pensadora, da qual nos recordamos hoje os últimos suspiros; a Paris filosófica e artística, onde pessoas simples, aplicadas ao trabalho do espírito, podiam sobreviver com 3000 libras por mês; onde haviam grupos, vizinhos, bairros, tradições; onde despejos não destruíam a qualquer instante as relações antigas e as tradições mais antigas; onde o artesão, que um sistema impiedoso expulsa hoje do centro, vivia lado a lado ao banqueiro; onde o espírito era mais valorizado que a riqueza; onde o estrangeiro, brutal e esbanjador, ainda não dava o tom ao teatro e às maneiras.
Esta Paris antiga, a Paris de Voltaire, Diderot e Desmoulins, a Paris de 1830 e 1848, choramos por ela quando vemos os grandiosos e intoleráveis cortiços, a ostentação, a vulgaridade triunfal e o materialismo assustador que será levado à próxima geração. Mas talvez isto seja inevitável. Nossas críticas contra a administração do Prefeito não podiam ser mais positivas e precisas.
O acusamos de sacrificar tantas coisas valiosas para um sistema o qual ele adere obsessivamente; o acusamos de ter destruído o futuro para satisfazer seus caprichos e extravagâncias; o acusamos ele de desperdiçar, em obras de uso passageiro ou duvidoso, o patrimônio de gerações futuras; o acusamos de nos liderar a uma sequência de catástrofes.
Nossos negócios estão indo pelo ralo, e imploramos que vocês os impeçam.
Três membros do Conselho de Estado, aliados do Prefeito, Sr. Genteuur, Sr. Alfred Blance e Sr. Jollibois os informou o que a Prefeitura quer de vocês. A cidade secretamente pegou empresado 398 milhões que não tem condições de devolver; ela quer ganhar tempo e espalhar essa dívida nos próximos 60 anos. É isso.
E vocês são orientados a votarem sem fazer comentários. Vocês talvez votem a favor, mas devem fazer algumas perguntas à administração da Cidade de Paris que devem ser respondidas. Como 389 milhões pode ser pego emprestado sem o envolvimento do Legislativo? Isso foi feito dentro da legalidade e da prudência?
A conta que a cidade assinou com o Crédit Foncier é um gasto ou um investimento? Ela é necessária, ou como os aliados do Prefeito alegam, é apenas uma precaução supérflua? A cidade de Paris está realmente acima desse assunto ou estaria ela, por acaso, abaixo?
Isto é importante, e vocês, membros do Conselho do Estado, não parecem estar preocupados. A proposta do Prefeito para vocês é uma obra prima da sua categoria. Ele os trata como verdadeiros idiotas. Por favor examinem a proposta dele e vocês verão de o que ela é feita: dez linhas tiradas dos últimos textos de Voltaire de dez textos tiradas do seu último pronunciamento. Eles absolutamente não são novidade.
Não é preciso um membro do Conselho do Estado para reconhecer um dos mais famosos panfletos escritos pelo grande agitador do século 18. Este é o trecho de Voltaire: “Será fácil demonstrar que podemos transformar Paris na cidade mais maravilhosa do mundo em menos de 10 anos… Uma tarefa que será a glória da nação e uma honra imortal para as pessoas da cidade, melhorando todas suas artes, atraindo gente de toda a Europa e tornando o Estado rico… como resultado todos vão enriquecer de formas diferentes…”
A modéstia dos amigos de Haussmann impediu que eles simplesmente copiassem este trecho. No mesmo documento: “Deus abençoe o homem de zelo que pode abraçar tal projeto, um homem que deve ter uma alma firme, um espírito iluminado e reconhecido de tal forma para que tenha sucesso.” Como podemos ver, o Sr. Haussmann foi designado em uma profecia.
Não podemos culpar o Conselho do Estado por considerar Voltaire um profeta. O Conselho poderia ter feito uma escolha pior. Não nos debatemos sobre o significado da profecia. Voltaire, como qualquer pessoa de bom senso, era modesto em sua utopia, tanto que no seu artigo de 1749 sobre o embelezamento de Paris o ousado filósofo pediu para não mais que “quatro ou cinco mil trabalhadores durante um período de dez anos” para fazer o que era necessário.
Ele ofereceu as seguintes condições: “todo dinheiro deve ser gasto de forma parcimoniosa, todos projetos devem ser escolhidos através de concurso de design; todos custos de construção devem receber descontos”. Vejam como Voltaire se tornou um falso profeta. Desconto, concurso, poupança, estas palavras valiosas não tem significado para o Sr. Prefeito.
O projeto foi designado e alterado tão rapidamente, sem pensamento ou antevisão; cada passo do desenvolvimento tem consequências imprevisíveis. Concessões envolvendo centenas de milhões são passadas por baixo da mesa: o princípio da concorrência aberta de ofertas foi relegado ao passado. A folha de balanço que vamos levantar irá mostrar tudo isso.
Nossa briga é com o Prefeito, não Voltaire. Ninguém quer impedir vocês de melhorar Paris. Vocês certamente não são os primeiros a se colocarem a essa tarefa. Nos últimos 24 anos todos os governos tiveram esforços semelhantes. Mas vocês não melhoram Paris, vocês a destroem. Vocês colocam Paris em dívida, destróem o presente e sacrificam o futuro. Como podemos tolerar tal extravagância por tanto tempo?
A proposta dos Conselheiros consiste de Voltaire de menos e Haussmann demais. Sr. Haussmann literalmente copiou, ele não parafraseou. Sr. Genteur, Sr. Alfred Blanche e Sr. Jollibois não adicionaram uma única palavra, número ou argumento próprio. Que tipo de escrita é este? Achamos que temos Conselheiros do Estado, mas temos apenas escrivães seguindo as ordens da Prefeitura. É assim que o governo opera hoje em dia. Seria melhor simplesmente transferir o poder do corpo legislativo à Prefeitura do Sena. Assim reportaríamos à ele diretamente. É melhor lidar com Deus do que com seus santos, com o ator de verdade do que seus substitutos.”
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COMENTÁRIOS
Parabéns!
Gostaria de vos enviar um livro que escrevi : “Lisboa tem Solução!” Demonstrando como resolvia o problema da falta de habitação para os mais pobres e paralelamente as Cidades voltando a ter os desejados mix socais e funcionais.
Digam para onde poderei enviar.
felicidades
Augusto Vasco Costa
Muito obrigado pelo comentário, Augusto! 🙂
Ficamos muito felizes pelo presente e interessados em conhecer o seu trabalho.
Vou pedir pra você entrar em contato conosco pelo e-mail [email protected] para podermos informar para você os dados.
Abraço!