O processo de filtragem na acessibilidade à moradia
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O processo de filtragem na acessibilidade à moradia

Como as unidades habitacionais novas e caras de hoje se tornam as moradias acessíveis de amanhã.

22 de dezembro de 2025

Imagine que as moradias se desvalorizassem 100% durante um período de ocupação, se tornando inutilizáveis e precisando ser demolidas assim que os moradores saíssem. Nesse cenário, pessoas de baixa renda estariam em uma situação muito pior, pois teriam que alugar ou comprar uma casa nova, sem a possibilidade de recorrer a moradias usadas ou mais antigas. Seria como ter que comprar sempre um carro zero, sem opções de carros usados.

Felizmente, moradias não se depreciam tão rápido, e construções mais antigas permanecem no mercado como uma alternativa. Isso é positivo para famílias de menor renda, porque habitações novas, com materiais e técnicas atuais, tendem a ser mais caras, enquanto casas mais antigas, com algum desgaste acumulado, costumam ser mais acessíveis.

O processo pelo qual uma habitação nova e cara de hoje se torna uma unidade acessível no futuro é conhecido como filtragem. Mais especificamente, filtragem é como uma moradia se move ao longo da distribuição de renda conforme ela envelhece e se deteriora. Dizemos que uma casa “filtra para baixo” quando seu próximo morador tem renda menor que a do primeiro ocupante. Quando o próximo morador é mais rico, a casa “filtra para cima”.

A taxa de filtragem é um indicador do mercado habitacional como um todo, ao lado dos preços, coabitação e situação de rua. Quando a oferta de moradias é adequada, o crescimento de preços é baixo e as casas tendem a “filtrar para baixo”. Quando a oferta é restrita, pessoas mais ricas passam a ocupar imóveis de menor qualidade e as moradias “filtram para cima”. Por isso, devemos interpretar a taxa de filtragem como uma escolha determinada pela política habitacional.

A filtragem está intimamente ligada às cadeias de vacância. A depreciação produz o estoque de moradias antigas e acessíveis que ficam disponíveis nas últimas etapas de uma cadeia de vacância. Mas enquanto esse desgaste pode levar décadas para tornar uma moradia nova acessível, cadeias de vacância liberam rapidamente unidades antigas já depreciadas — dentro de um ano. Vale notar que a filtragem acompanha uma moradia específica ao longo do tempo, enquanto cadeias de vacância acompanham as “vagas livres” que se deslocam pelo estoque habitacional.

Se queremos saber quantas moradias acessíveis existirão em 20 anos, precisamos entender se — e com que velocidade — habitações novas e caras envelhecem até terem preços baixos.

Taxas de filtragem são úteis para projeções de longo prazo. Se queremos saber quantas moradias acessíveis existirão em 20 anos, precisamos entender se — e com que velocidade — habitações novas e caras envelhecem até terem preços baixos.

Renda e aluguel diminuem conforme o prédio envelhece

Podemos observar como a filtragem funciona analisando as correlações entre idade das edificações e renda dos moradores ou valores de aluguel. Myers e Park (2020) utilizam dados do censo dos EUA para mostrar a proporção de domicílios com renda abaixo da mediana vivendo em edifícios alugados, separados por ano de construção (vintage) — na figura abaixo. Como esperado, quando comparamos diferentes idades, os edifícios mais antigos concentram mais moradores de renda mais baixa. Além disso, dentro de cada período a participação de moradores de baixa renda cresce com o tempo (e com a idade do prédio) até 2011, e depois começa a cair. Isso mostra que a filtragem depende do mercado habitacional mais amplo. Quando a oferta de moradias é adequada, as unidades “filtram para baixo”. Quando há escassez, elas “filtram para cima”. A filtragem é um resultado direto da relação entre oferta e demanda por habitação.

Proporção de domicílios com renda abaixo da mediana vivendo em edifícios alugados, separados por ano de construção (vintage). Gráfico: Myers e Park (2020)

Um relatório da CMHC (agência nacional de habitação do Canadá) sobre apartamentos de aluguel estima quanto os aluguéis caem, dependendo da idade do edifício, em relação a um prédio novo (ver figura abaixo). Como é de se esperar, apartamentos mais antigos apresentam aluguéis mais baixos do que apartamentos novos, com esse efeito se consolidando totalmente ao longo de 20 anos. Vale notar que esse efeito relativo aparece mesmo quando os aluguéis estão subindo no geral, porque as pessoas têm disposição a pagar mais por edifícios novos. Seria útil ver esse gráfico segmentado por área metropolitana. Em cidades onde a oferta é mais restrita, como Vancouver e Toronto, é provável que o declive seja menor, já que a alta demanda pressiona o valor dos imóveis antigos.

Estimativa de quanto os aluguéis caem, dependendo da idade do edifício, em relação a um prédio novo. Gráfico: relatório da CMHC

Estimativas da taxa de filtragem

Embora estudos teóricos sobre filtragem remontem pelo menos a Sweeney (1974), o primeiro artigo a estimar diretamente taxas de filtragem foi Rosenthal (2014), utilizando dados da American Housing Survey (AHS) entre 1985 e 2011. Ele usa um modelo de “renda repetida”, comparando as rendas de ocupantes sucessivos da mesma unidade habitacional. A filtragem é medida como a variação da renda dos ocupantes no momento em que ocorre a troca. Esse é um indicador direto de filtragem, pois antes as estimativas eram indiretas, baseadas em regressões hedônicas relacionando aluguel e idade do edifício. Esse método pressupõe que as características físicas da casa (exceto a depreciação) não mudam entre um ocupante e outro.

O principal resultado de Rosenthal é que a habitação “filtrou para baixo” a uma taxa de 1,9% ao ano ao longo do período analisado. Isso implica que um novo ocupante de uma moradia de 50 anos de idade terá renda 60% menor que a renda de um ocupante de uma casa nova. Apartamentos alugados filtram mais rápido do que casas ocupadas pelos proprietários, e casas próprias frequentemente migram para o mercado de aluguel conforme envelhecem, o que amplifica a taxa geral de filtragem.

Leia mais: Entendendo a acessibilidade habitacional: o efeito cascata

A figura abaixo foi extraída de seu estudo, que mostra a renda relativa ajustada pela inflação em função da idade do imóvel para unidades de aluguel. O eixo vertical representa a diferença percentual entre a renda dos ocupantes de uma casa de determinada idade e a renda dos ocupantes de uma casa nova. Aqui, a taxa de filtragem corresponde à inclinação da curva. Para esse período, os aluguéis claramente “filtraram para baixo”, com novos moradores apresentando renda menor que a dos moradores iniciais. A curva se eleva após os 50 anos, provavelmente por viés de sobrevivência, já que unidades de maior qualidade têm mais chances de evitar a demolição e permanecer no banco de dados.

Renda relativa ajustada pela inflação em função da idade do imóvel para unidades de aluguel. Gráfico: Rosenthal (2014)

Rosenthal também utiliza simulações para testar heterogeneidades de filtragem entre regiões censitárias, mostrando que as taxas são menores onde o crescimento dos preços é maior. No geral, podemos afirmar que, entre 1985 e 2011, a oferta habitacional não estava excessivamente restrita, então ela pôde acompanhar a demanda, e as moradias foram gradualmente ocupadas por famílias de menor renda conforme envelheciam.

Mas a pesquisa “Geographic and temporal variation in housing filtering rates” (2022) mostra que essa conclusão não se sustenta após 2011. Eles estudam casas ocupadas pelos proprietários com hipotecas ao longo do período 1993–2018, estendendo a pesquisa de Rosenthal (2014) ao testar heterogeneidades geográficas e temporais das taxas de filtragem. Eles estimam uma taxa próxima de zero entre 2012 e 2018, sugerindo que, nesse período, restrições de oferta começaram a pesar mais, elevando preços e levando compradores de imóveis novos a competir pelo estoque de casas mais antigas. Quando o mercado habitacional mudou, o indicador mudou junto.

O estudo também constatou que as taxas variam amplamente entre regiões metropolitanas, com “filtragem para cima” em Los Angeles e Washington D.C., e “filtragem para baixo” em Detroit e Chicago (figura abaixo). Como a taxa de filtragem funciona como indicador do mercado habitacional, isso reflete o desempenho distinto de cada região. O zoneamento restritivo em Los Angeles impede que a oferta acompanhe a demanda, de modo que os novos moradores tendem a ser mais ricos que os atuais ocupantes.

Diferentes cidades dos EUA apresentando “filtragem para cima” ou “filtragem para baixo”. Gráfico: “Geographic and temporal variation in housing filtering rates” (2022)

Por fim, eles investigam a heterogeneidade dentro da área metropolitana nas taxas de filtragem (figura abaixo). Washington D.C., por exemplo, apresenta bairros com forte filtragem para baixo e bairros com forte filtragem para cima. Isso ilustra como mercados habitacionais podem variar significativamente dentro de uma mesma cidade.

Heterogeneidade nas taxas de filtragem dentro da área metropolitana de Washington D.C. Mapa: “Geographic and temporal variation in housing filtering rates” (2022)

O artigo “Has Housing Filtering Stalled?”, de 2025, também estende Rosenthal (2014) usando a mesma base de dados da AHS, mas por um período maior (1985–2013 e a nova amostra de 2015–2021). De forma semelhante, ele constata uma “filtragem para baixo” entre 1985 e 2013 e “filtragem para cima” entre 2015 e 2021. Novamente, isso é consistente com o agravamento da escassez habitacional após a Grande Recessão.

Outro artigo, de 2024, estuda a filtragem na Suécia usando dados de registro de todos os residentes entre 1990 e 2017. Eles não utilizam o modelo de “renda repetida”, mas analisam como a renda média de um edifício (em relação à média nacional) varia com a idade da construção. Eles descobriram que, em média, a renda relativa em um edifício cai 14% ao longo de 50 anos. Essa queda é muito menor do que os 60% identificados por Rosenthal (2014), o que se explica em parte pela menor desigualdade na Suécia.

O artigo sueco também apresenta outros achados importantes. Primeiro, que o ajuste para reformas leva a uma função de filtragem muito mais acentuada, com a renda relativa caindo em 24% ao longo de 50 anos. Segundo, que são necessários cerca de 30 anos para que os edifícios atinjam uma distribuição de renda representativa, com participação igual de moradores entre as faixas de renda. Terceiro, que a renda cai mais rapidamente em apartamentos de aluguel do que em unidades ocupadas pelos proprietários, e cai mais rapidamente em apartamentos do que em casas unifamiliares.

Hansen e Rambaldi (2025) estudam a filtragem usando dados do censo de transações imobiliárias na região de Victoria, na Austrália, entre 2011 e 2016. Eles também utilizam um método diferente do modelo de “renda repetida”, porque dispõem de dados de renda de compradores e vendedores na mesma transação. Isso permite medir a renda relativa contemporânea como a razão entre a renda do comprador e a do vendedor. Eles definem a taxa marginal de filtragem como a variação dessa renda relativa em função da idade do imóvel e encontram uma “filtragem para cima” no período, sugerindo que restrições de oferta estavam de fato pressionando o mercado.

Esse estudo estima diretamente o efeito das restrições de oferta sobre as taxas de filtragem, usando a proporção de projetos de desenvolvimento imobiliário negados pelos conselhos locais e uma mudança de política de 2014 que reduziu parcialmente esse poder discricionário. Eles concluem que taxas mais altas de negação levam a mais “filtragem para cima”, e que uma taxa de negação igual a zero implicaria filtragem negativa, ou seja, “filtragem para baixo”. Como restrições de oferta impulsionam o crescimento de preços, remover essas barreiras reduziria os preços e resultaria em compradores com renda menor que a dos vendedores.

Leia mais: Filtragem: a gentrificação ao contrário

Relevância para políticas públicas

Rosenthal apresenta seu artigo como uma contribuição ao debate sobre vouchers habitacionais e subsídios à construção. Se as casas “filtram para baixo” e chegam a famílias de baixa renda, então seria possível subsidiar moradia oferecendo vouchers que permitam o acesso a essas unidades de menor preço, como ele argumenta, em vez de construir habitação subsidiada diretamente, fora do mercado.

Essa abordagem, porém, é estranha. Não precisamos saber a taxa de filtragem para avaliar se vouchers cobrirão ou não os custos da moradia: basta olhar os aluguéis de mercado atuais. Se os aluguéis forem suficientemente baixos, um programa amplo de vouchers é viável. A taxa de filtragem se torna relevante apenas para prever, no longo prazo, o estoque futuro de moradias acessíveis e avaliar a sustentabilidade do programa ao longo do tempo.

Más interpretações

A existência de “filtragem para cima” não é evidência de que mercados habitacionais “não funcionam”, como alguns defendem. Ela pode simplesmente indicar que o mercado está travado por regulações de zoneamento e que essas restrições precisam ser removidas. Filtragem é apenas mais um indicador do mercado habitacional. Dizer que “filtragem para cima” é uma evidência contra mercados é tão equivocado quanto afirmar que preços altos são evidência contra mercados.

O artigo “Has Housing Filtering Stalled?” cai nesse erro ao afirmar: “Nessas áreas [com filtragem para cima], fornecer moradias acessíveis pode exigir menor dependência de unidades de mercado e maior dependência da produção de novas unidades acessíveis via crédito de financiamento, zoneamento inclusivo e outras estratégias de produção.” Mais uma vez, “filtragem para cima” apenas significa que há escassez de moradia. E a resposta natural para uma escassez é aumentar a oferta, isto é, permitir mais construção de unidades de mercado.

De forma semelhante, também é equivocado presumir que habitações novas automaticamente vão “filtrar para baixo” e se tornarão acessíveis. Se a oferta é restrita, ocorre “filtragem para cima”. O artigo “Has Housing Filtering Stalled?” afirma que “as taxas de filtragem são resultados de equilíbrio e não parâmetros fixos da economia.” É revelador que eles tenham sentido necessidade de explicitar isso.

O título do artigo de Rosenthal, “Os mercados privados e a filtragem são uma fonte viável de habitação para baixa renda?”, apresenta dois problemas. Primeiro, filtragem é um resultado, não um mecanismo, então é equivocado descrevê-la como uma “fonte” de habitação de baixa renda. É como perguntar se os preços são uma fonte de habitação acessível. Preços são o resultado, não o mecanismo. Segundo, o título desconsidera o contexto. Mercados podem, sim, fornecer moradia de baixa renda em certos lugares e períodos, mas não em outros. Um título mais adequado seria: “Os mercados privados foram uma fonte viável de moradia para baixa renda entre 1985 e 2011?”.

Artigo publicado originalmente em Building Abundance, em setembro de 2025.

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