Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Até pouco tempo a Islândia era um nome que todos já ouviram falar, mas ninguém sabia onde ficava. Mas a coisa mudou muito nos últimos dez anos.
11 de setembro de 2019A Islândia até pouco tempo era um nome que todos já ouviram falar, mas ninguém sabia onde ficava ou o que havia por lá. Típico cenário de Globo Repórter. A coisa mudou nos últimos dez anos.
Primeiro, a crise de 2008 destruiu o sistema bancário e o PIB caiu mais de 40% em dois anos, o maior colapso no mundo (proporcionalmente). A resposta do governo, deixando os bancos quebrarem e implementando outras medidas, ganhou as manchetes dos jornais. E, então, quem diria, um drama natural mudou tudo.
Em 2010, o vulcão Grímsvötn e sua fumaça cancelaram voos por toda Europa. Opa, a Islândia existe mesmo, perceberam. De lá para cá, o turismo, antes secundário, bate recordes como quem brinda o ano novo. Em 2017, mais de 2,2 milhões de pessoas visitaram a ilha, um crescimento de mais de 400% em sete anos.
A maior atração é a beleza natural do lugar, e atrás dela também embarquei para lá neste agosto. Me encantei pelas montanhas e os gêiseres e as cachoeiras, mas vi muito mais. Esse “paizéco”, com pouco mais de 320.000 habitantes, surpreendentemente também dá aulas para qualquer entusiasta por cidades.
Evidentemente, há comparações extraordinárias e quase injustas quando falamos dos países no norte europeu — Dinamarca, Finlândia, Suécia, Noruega, além da Islândia. O sistema de bem-estar social dá inveja a muitos, com saúde e educação públicas excelentes.
A segurança impressiona mais ainda: em toda a Islândia, foram assassinadas apenas 37 pessoas nos últimos vinte anos. Uma proporção inferior a uma morte por cem mil habitantes, mais de trinta vezes menor que o Brasil. É claro que o modelo de sociedade e a altíssima renda ajudam. Por isso, são as coisas “mais simples e copiáveis”, digamos, o foco deste artigo nada exaustivo. Densidade, sustentabilidade, a relação com carros, e design, para ser objetivo.
Um dos países menos povoado do mundo, intuitivamente, seria o oposto de denso. Considerando a ilha como um todo, verdade, há muita terra para pouca gente. Mas quando falamos de suas cidades, é necessário trazer perspectiva. A urbanização é enorme: 94% dos habitantes vivem em cidades, uma das maiores taxas do mundo e 20 pontos percentuais acima da média europeia. E suas cidades, sim, são densas dado o tamanho populacional.
A capital Reykjavik (lê-se Reiquiavique) tem só 130 mil habitantes, “comprimidos” em cerca de 270 quilômetros quadrados. Lá não se vê arranha-céus como em Nova York, Hong Kong ou, vá lá, São Paulo. Mas em certas áreas da cidade há mais de 3.000 moradores por km2, um índice superior ao Plano Piloto de Brasília, por exemplo. Comparando com cidades menores, então, é um baile: apenas 0,1% das cidades brasileiras de até 150 mil habitantes têm densidade superior à capital islandesa.
Por que densidade é importante? Bom, há dezenas de artigos aqui no Caos Planejado explicando e, como Edward Glaeser resumiu em sua ode ao tópico, ela ajuda a nos fazer mais ricos, inteligentes, saudáveis e felizes.
Tudo isso é verdade para a Islândia, e a densidade de suas cidades é facilmente constatável com um passeio pelo centro de Reykjavik. Há, em geral, pequenos prédios de quatro ou cinco andares colados uns nos outros, sem recuos frontais ou laterais, economizando área para muitas praças e um calçadão central.
Ainda mais interessante é a expectativa para os próximos anos. Com tanta terra disponível nas redondezas, o usual seria expandir os subúrbios (como fizeram no século passado). Mas o “plano diretor” atual da cidade propõe o contrário, maior densidade, usos mistos, mais espaços públicos e compartilhados.
Segundo a proposta, o aeroporto doméstico, não utilizado para voos comerciais, será desativado e construirão dezenas de prédios comerciais, residenciais e com serviços e parques, unindo moradia, trabalho e lazer. Aliás, tal uso misto é um ótimo exemplo para o Campo de Marte paulistano (e, claro, para o bairro dos Jardins).
Morar mais perto de seus vizinhos também preserva a natureza e garante maior sustentabilidade, temas caros aos islandeses, não de hoje. A emissão de CO₂ na Islândia é bastante baixa quando comparada aos países mais ricos (que consomem mais, portanto), cerca de um terço dos Estados Unidos (per capita), por exemplo.
Há muitos motivos para isso, históricos e recentes. Mais de mil anos atrás, lá nos idos do século nove (D.C.), as casas eram, além de juntinhas, cobertas de grama e vegetação, conservando calor e consumindo menos lenha para esquentá-las. Importante para uma região onde o verão dificilmente passa dos 15oC.
Além disso, desde meados do século passado, valendo-se das riquezas naturais, a energia geotérmica se tornou a principal fonte do país, com a maior produção per capita do mundo. Produzida com base na atividade vulcânica, ela é limpa e renovável, com muito menos impacto ambiental, mesmo comparada à energia hidráulica brasileira.
Com uma oferta quasi infinita, é comum ver carros elétricos rodando pela capital, amenizando a poluição do ar e sonora. Eles representam quase 15% das vendas de novos automóveis, uma enormidade, mesmo comparando com a Europa, onde o mercado é mais desenvolvido, com média de apenas 1,4%. A maioria dos postos de gasolina tem infraestrutura para recarregá-los, assim como os apartamentos, facilitando a adoção.
Por falar em carros, a relação dos islandeses com eles é interessantíssima. Com cidades tão pequenas e em um clima tão inóspito, automóveis são naturalmente a primeira opção de mobilidade. Mas há muito esforço para mudar esse cenário. O próprio plano diretor da capital citado prevê, com maior densidade, um uso mais intenso de ônibus (único transporte público de massa no país). O sistema passa por uma reformulação completa para atender mais e melhor, incluindo diversas linhas exclusivas.
Além disso, pensando no meio ambiente, foram estabelecidos impostos mais altos para os movidos a gasolina e diesel, além do combustível ser caríssimo (quase R$ 8 o litro). Em Reykjavik o estacionamento público também é caro (R$ 13 por hora), e há preços diferentes para cada área da cidade. Quanto mais perto do centro — e quanto mais tempo estacionado — mais caro fica.
Por fim, a velocidade máxima é bastante limitada, de até 30 km/h nas vias com mais pedestres, nunca passando dos 60 km/h (nas vias expressas). Com carros mais lentos, mais segurança para quem caminha. Há, inclusive, multa para o motorista que não der preferência ao pedestre em cruzamentos — com sinalização indicativa.
Nesse sentido, quem caminha é muito bem-vindo, e pode aproveitar a beleza e o charme em passos lentos, desfrutando do design a cada esquina. Muito além das dezenas de lojas interessantes no centrinho de Reykjavik, há uma intenção de criar espaços públicos bonitos, atraentes e convidativos. Da iluminação aos bancos, passando pelos aconchegantes pontos de ônibus que abrigam do frio, há um evidente cuidado em esquentar a cidade com beleza, convidando o olhar.
Muitas ruas são fechadas para uso exclusivo de pedestres em certos horários e, também, coloridas com pinturas no asfalto — um custo praticamente nulo que rende muitos likes (literal e metaforicamente). Mesmo em vilarejos com nem mil habitantes, esculturas estão por toda parte, promovendo a arte e cultura locais. Assim, caminhar fica ainda mais agradável.
Há muitos motivos para visitar a Islândia: sua natureza magnífica é certamente um deles, mas suas cidades, em especial a capital, também. Elas oferecem ideias para pequenas vilas no interior ou mesmo para as metrópoles gigantes. Da densidade ao design, da sustentabilidade à relação com carros, sem contar o modelo de bem-estar social nórdico como um todo, saem boas inspirações. Seja in loco ou dando uma volta pelo Google Street View, não deixe de visitar.
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COMENTÁRIOS
Leio com bastante frequência seus artigos onde há, digamos assim, uma não tão velada preferência para o bem privado ao bem público e, por isto, o enaltecimento da forma de governo e organização islandesas me surpreendeu. Algo como “é bom fora do Brasil, mas para nós não serve”.
Os islandeses, conscientes que são da grandeza de suas cidadanias, ocuparam um estádio de futebol, “rasgaram sua constituição”, deram um pontapé nos traseiros dos bancos e emergiram fortes e protagonistas dos seus destinos por ocasião da crise de 2008.
Como um cidadão brasileiro e americano, vivendo no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa, estou cansado de ver comportamentos que refletem nossa(brasileira) ignorância, tais como comportarem-se no trânsito quando fora do Brasil e voltarem ao “normal” assim que pega o carro no aeroporto, acharem tudo lindo, maravilhoso e quão seguro deve ser os locais por onde passam, mas retornarem ao pensamento pequeno e egoísta do “eu estou bem de vida e esta é a única coisa que realmente importa”.
A palavra “social” no Brasil é palavrão e, enquanto assim o for, qualquer exemplo digno de enaltecimento vindo de fora “morre” no aeroporto de embarque do retorno ao Brasil.