Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Como as cidades podem evoluir sem deslocar completamente seus moradores da classe média e trabalhadora? Abraçando o oposto da gentrificação: a filtragem.
2 de maio de 2022Diferentemente da filtragem, a gentrificação é o processo onde os imóveis se tornam mais desejados e, portanto, mais caros. Os preços crescentes afastam os moradores mais antigos, substituindo-os por de renda mais alta. Isso não deve ser confundido com a remoção forçada de cidadãos por meio de desapropriações ou remoções forçadas. Expulsar moradores por decreto oficial é um problema diferente.
Um exemplo clássico de gentrificação é o de Greenwich Village, em Nova York. Nas suas origens, o bairro era ocupado por moradores abastados. Mais tarde, tornou-se o centro de prostituição da cidade, provocando um êxodo da classe média alta.
Na sequência, os preços baixos e a boa localização atraíram a indústria têxtil — essa foi a primeira onda de gentrificação da região —, mas um grande incêndio em uma de suas fábricas levou à mudança de legislação referente ao combate a incêndios, levando à saída das empresas e, mais uma vez, ao abandono do bairro.
O fracasso, no entanto, daria lugar a um sucesso inesperado: artistas e galerias começaram a ocupar os galpões disponíveis. Esses antigos espaços industriais logo se tornaram o lar de um dos movimentos mais importantes da arte moderna.
Em Greenwich Village, diferentes populações iam e vinham. E, no processo, cada uma delas fazia contribuições duradouras para a herança econômica e cultural de Nova York. E isso só foi possível porque a mudança foi permitida.
Mas ela nem sempre é fácil.
À medida que um bairro se torna mais desejado, também se torna mais caro. As tensões aumentam quando os moradores de longa data não conseguem pagar os aluguéis crescentes. Alguns começam a exigir controles de aluguel ou outras medidas para evitar a rotatividade demográfica.
Mas o controle de aluguel é, na melhor das hipóteses, uma solução temporária; no longo prazo, seus efeitos são negativos. Ao reduzir a oferta, a medida tende a elevar o custo da habitação. E, diante dos controles de preços, os proprietários podem tentar sair totalmente do mercado de aluguel, exacerbando ainda mais qualquer escassez de moradia.
O que isso significa então para o desenvolvimento urbano? Como as cidades podem evoluir sem deslocar completamente seus moradores da classe média e trabalhadora? Abraçando o oposto da gentrificação: a filtragem.
Edifícios são caros quando novos, mas se depreciam com o tempo. Estilos arquitetônicos mudam. A infraestrutura se deteriora e se torna mais difícil de se adequar às novas comodidades. E é aqui onde encontramos a filtragem: unidades antigas, originalmente construídas para os ricos, tornam-se mais acessíveis ao longo do tempo.
O que é difícil de ver é que a filtragem ocorre simultaneamente com a gentrificação. Todo “gentrificador” libera sua antiga unidade para alguém com menos recursos. Que, por sua vez, também vaga uma unidade — e assim por diante.
O processo é semelhante a uma dança das cadeiras. Mas, para que o jogo funcione para todos, as cadeiras devem ser adicionadas, não retiradas. As cidades devem permitir a construção de unidades adicionais para que a oferta se expanda ao longo do tempo.
Pesquisas sugerem que essa é uma condição necessária para que a filtragem ocorra. É o que demonstra Evan Mast, pesquisador do Upjohn Institute, em um paper recente chamado “O efeito da construção de habitação a preço de mercado no mercado habitacional de baixa renda” (tradução livre).
Analisando o histórico da movimentação imobiliária de 52 mil residentes de edifícios multifamiliares em grandes cidades dos EUA, ele identifica que novas unidades afrouxam o mercado imobiliário, gerando efeitos positivos significativos para a população de rendas baixa e média, mesmo no curto prazo.
Em outro estudo, os pesquisadores finlandeses Bratu, Harjunen e Saarimaa analisam o mercado habitacional de Helsinki e encontram resultados que reforçam o paper de Mast, com a diferença de que as novas unidades beneficiam as camadas de baixa renda ainda mais rápido, possivelmente pela menor disparidade social comparado às grandes cidades americanas.
Na ausência de novas unidades, moradores de baixa renda têm menos opções disponível quando ocorre a substituição de moradores de baixa renda por de renda mais alta em uma cidade. Esse é basicamente o fenômeno que ocorre atualmente na região central de Paris e de Barcelona: por terem altíssima demanda com estruturas urbanas estáticas, sendo algumas das grandes cidades que menos constroem novas unidades habitacionais, toda área central é gentrificada, sem sobrar alternativas para moradores de rendas mais baixas.
Embora a filtragem não cure todos os males da habitação, é uma parte importante de como os mercados imobiliários funcionam, contribuindo para a oferta de moradia em todos os níveis de renda. Quanto mais uma cidade impedir o processo, ao restringir o crescimento, mais suas áreas mais pobres se gentrificarão sem a criação compensatória de moradias mais baratas.
Artigo publicado originalmente em Market Urbanism em janeiro de 2015. Traduzido por Gabriel Lohmann e reeditado por Anthony Ling.
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