Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
O impacto dos mais bem-sucedidos programas de melhoria nas favelas aplicados em alguns países latino-americanos.
28 de setembro de 2023Há algumas semanas, o Instituto Real de Arquitetos Britânicos (RIBA) anunciou a estudante ganhadora do subsídio de viagem RIBA Norman Foster 2023. Trata-se da peruana Martha Pomasonco que obteve a bolsa em reconhecimento ao seu projeto intitulado “Barrios Mejorados”. A pesquisa que conquistou o júri investigará o impacto dos mais bem-sucedidos programas de melhoria nos assentamentos informais (favelas) aplicados em alguns países latino-americanos a fim de encontrar lições de projeto relacionadas à sustentabilidade social e ambiental. Sua investigação parte da ideia de que 80% da população da América Latina vive em cidades, o que a torna a região mais urbanizada do planeta.
Dessa porcentagem, entretanto, estima-se que 15% viva em assentamentos informais caracterizados principalmente pela infraestrutura inadequada e baixa qualidade de vida. Por este motivo, nos últimos 30 anos, diferentes programas de melhoria foram aplicados tendo como fator chave para seu sucesso a participação dos cidadãos em todas a etapas de projeto.
Enquanto o momento no qual Pomasonco compartilhará os resultados dessa pesquisa tão valiosa não chega, convidamos os nossos leitores a conhecer um pouco mais sobre alguns dos programas de melhoria que serão investigados no seu projeto.
Como fruto desse programa tem-se um dos projetos de melhoria de assentamentos informais mais conhecidos do âmbito arquitetônico e urbanístico. Trata-se do “metrocable” de Medellín, o sistema de mobilidade por teleféricos que conectou literalmente bairros informais à outras áreas da cidade, vencendo a enorme barreira física, mas também psicológica, que dividia as duas faces da cidade.
A criação do PUI, em 2004, é resultado de estudos os quais demonstraram que a intervenção estatal baseada em ações isoladas e descontinuadas acarretava mais desconfiança das comunidades diante das ações governamentais. Sendo assim, a iniciativa parte dessa percepção e propõe atuar de maneira integrada com diferentes secretarias municipais focando em um objetivo concreto.
Conhecido como uma política de urbanismo social, o programa está baseado em três eixos: o físico, que inclui a construção e melhoria de espaços públicos e habitacionais, adequação e construção de prédios públicos e recuperação do meio ambiente; o social, com a comunidade que participa ativamente de todas as etapas do processo, desde a identificação de problemas e oportunidades através de saídas de campo, até a formulação e aprovação de projetos com o uso de práticas de design participativo; e o interinstitucional, ou seja, a coordenação integral das ações em uma determinada área. Além disso, vale destacar que o PUI conta também com intervenções culturais de propósitos pedagógicos que auxiliam na ressignificação de locais associados a problemas e tragédias.
De 2003 a 2007, por meio do programa PUI Nororiental de Medellín, aconteceram 113 oficinas com a comunidade e 166 reuniões com os comitês de bairro, as quais levaram a projetos que incrementaram 2,3% de espaço público por habitante, aumentando essas áreas de 97 a 220 mil metros quadrados, ademais, foram criados 17 parques comunitários sendo que 9 bairros e 16 setores desfrutam pela primeira vez um parque.
O programa Favela-Bairro foi uma iniciativa da prefeitura do Rio de Janeiro que teve início em 1994 e seu objetivo era melhorar a qualidade de vida dos moradores de favelas, promovendo sua integração com o restante da cidade por meio de intervenções urbanas. O programa Favela-Bairro focava em assentamentos já existentes e na melhoria da infraestrutura básica, como saneamento, água, esgoto, iluminação e pavimentação. Além disso, foram construídos postos de saúde, creches, escolas e outros equipamentos públicos nos assentamentos informais. O programa foi um dos primeiros a romper com a lógica de remover favelas e transferir os moradores para lugares cada vez mais afastados.
Em 1994, o IAB/RJ organizou um Concurso Público para a Seleção de Propostas Metodológicas e Físico-Espaciais Relativas à Urbanização de Favelas no Município do Rio de Janeiro, para que fossem elaborados projetos de intervenção. Com o Favela-Bairro, os espaços de interesse social passaram a ser, majoritariamente, concebidos por escritórios de arquitetos atuantes no mercado com diferentes linhas projetuais e experiência.
Essa mudança no perfil do profissional imprimiu maior dinamismo e variação nos espaços das favelas beneficiadas pelo programa. Para a primeira etapa foram selecionadas 15 equipes multidisciplinares coordenadas por arquitetos para atuarem em 15 favelas de pequeno e médio porte escolhidas pela. Os investimentos eram provenientes tanto do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e de recursos da própria prefeitura, somando um total de 300 milhões de dólares.
O Favela-Bairro continua sendo um dos programas mais ambiciosos para melhoria de bairros informais nas cidades em desenvolvimento. Sua escala de intervenção, 70 favelas na primeira fase (até os anos 2000) e 88 na segunda (de 2000 a 2008) deveria ter permitido uma diferença real e duradoura nas comunidades-alvo e se tornar um modelo para futuras melhorias no Brasil e em outros lugares.
Entretanto, em 2020, o BID publicou um relatório sobre o impacto das intervenções realizadas nas duas primeiras fases do programa o qual aponta que, apesar da melhora na qualidade de vida da população logo após o término das obras, com acesso a esgoto, iluminação e água, o relatório também indica que a infraestrutura construída se degradou rapidamente, em alguns casos a situação da favela voltou a ser como era antes da intervenção. Entre os problemas, o relatório indica a ação do crime organizado, que muitas vezes destruía o asfalto e a iluminação pública para dificultar o acesso às comunidades.
O programa Barrio Mío foi implementado durante a gestão pública de 2012 e 2014 em Lima e teve como principais referências o PUI de Medelliín e o Favela-Bairro do Rio de Janeiro. Assim como suas inspirações, o objetivo do programa era coordenar as políticas de regeneração urbana dos bairros informais localizados nas áreas mais vulneráveis das encostas de Lima. Barrio Mío também enfatizava uma forma de produzir a cidade baseada na participação da comunidade e numa visão integral onde os moradores desempenham um papel nos processos de planeamento e construção dos novos espaços para que se sintam parte do programa e para que os projetos sejam posteriormente autogeridos por eles.
Na prática, Barrio Mío foi dividido em duas etapas principais sendo a primeira focada em compensar a desconfiança das comunidades em relação às autoridades e ao governo em geral, alcançando a participação cidadã por meio de oficinas e debates. A segunda fase consistiu nos projetos urbanos em si que abrangeram reconfigurações substanciais baseadas em cinco estratégias principais: conectividade, centralidade, habitabilidade, fronteiras e risco. Seu principal eixo de intervenção focava em mitigar os riscos por desastres naturais em zonas acidentadas com habitação urbana.
Para se ter uma ideia quantitativa do alcance do programa, entre julho de 2012 e setembro de 2013, Barrio Mío atingiu aproximadamente 3 milhões de pessoas com um portfólio que incluiu cerca de 1000 “paisagens-escadas” e mais de 700 muros de contenção, além de espaços de estar, arborização urbana e lugares de convivência para a comunidade. Antes da execução das obras, os municípios beneficiários foram capacitados em gestão de riscos, a fim de organizar as ações da população, somados a atividades complementares de trabalho comunitário para melhoria do bairro em uma microescala. Ao todo, nove projetos foram desenvolvidos em diferentes áreas vulneráveis da cidade antes do programa ser descontinuado em 2014.
Publicado originalmente em ArchDaily em setembro de 2023.
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