Equalização e potencialização do uso do solo urbano | Guia de Gestão Urbana
Imagem: Francisco Anzola/Flickr.

Equalização e potencialização do uso do solo urbano | Guia de Gestão Urbana

As restrições dos limites de área construída e densidade é uma das principais causas do déficit de moradia e preços pouco acessíveis para imóveis.

1 de setembro de 2017

O Índice de Aproveitamento (IA) ou Coeficiente de Aproveitamento (CA) determina a área máxima que pode ser construída em um determinado terreno em proporção à sua área total. Ou seja, se o IA/CA for 2, e se estivermos tratando de um terreno de 1000 m², a área que um proprietário poderá construir é de 2000 m².

Muitos municípios estabelecem um limite “básico” para o IA de um terreno, e um segundo limite “máximo”, que pode aumentar o potencial construtivo de um terreno mediante pagamento ao município. Ou seja, é possível, em muitos casos, pagar uma taxa estabelecida pelo município para aumentar a área construída em um determinado terreno até certo limite.

A regulamentação que orienta o IA de uso do solo na maioria das cidades funciona como uma colcha de retalhos, em que a restrição de capacidade construtiva encontra pouca relação tanto com a infraestrutura existente quanto com a demanda para morar em cada região.

Em muitas cidades brasileiras, tais diferenças surgiram pela pressão de grupos de incorporadores e proprietários de terrenos para aumentar o potencial em algumas regiões. Medidas assim aumentam o valor da terra ao permitir um maior número de possibilidades de empreendimentos sobre ela. Essas ocorrências geram maiores ganhos imobiliários quando o valor é criado simplesmente pela flexibilização de uma restrição legal. É frequente, também, a ocorrência de um descolamento entre a infraestrutura disponível em um bairro e a quantidade de pessoas que podem ser absorvidas por ele, principalmente em questões de distribuição de energia e de esgotamento sanitário.

Existe ainda a pressão contrária de grupos organizados de moradores, normalmente de regiões nobres, que se mobilizam para preservar as características dos seus bairros, mantendo baixos IA. Tal situação pode gerar um ganho imediato a tais moradores, que usufruem dos ganhos de escala da cidade ao seu redor enquanto mantêm características menos urbanas em seus bairros. No entanto, é importante ressaltar que a ação de tais grupos de pressão locais impedem o atendimento da demanda por moradia e serviços em regiões bem-localizadas da cidade como um todo, frequentemente resultando no aumento dos preços imobiliários e na ineficiência das redes de mobilidade urbana, que encontram bolsões de baixa densidade demográfica (e, portanto, baixa demanda para viabilizar um transporte de massa) em regiões centrais.

O impedimento do atendimento às demandas por uso do solo pelos limites de área construída e densidade é uma das principais causas do déficit de moradia e de preços pouco acessíveis para imóveis nas regiões centrais de grandes cidades. Tal efeito foi demonstrado em uma série de estudos recentes, como “The Impact of Zoning on Housing Affordability”, do economista Edward Glaeser, e em artigo de Sanford Ikeda e Emily Washington, colaboradores do site Caos Planejado, citado em relatório da Casa Branca durante a gestão Obama sobre acesso à moradia.

Assim, tendo como referência uma medida recentemente implementada no novo Plano Diretor de São Paulo, entendemos que é interessante atribuir o IA básico 1 (potencial construtivo igual a área do terreno) para toda a área do município. Empreendimentos que ultrapassem tal índice básico deverão pagar pelo potencial construtivo adicional. Conforme esse modelo, não é necessário estabelecer um limite máximo de área que pode ser construído em cada terreno, dado que o pagamento pelo potencial construtivo considera o uso aumentado de infraestrutura e potenciais externalidades negativas à cidade. Os recursos captados pelo município por meio desse pagamento devem ser utilizados para melhorar e atualizar a infraestrutura na região de tal empreendimento, de forma a capacitá-la para absorver adequadamente o adensamento imobiliário.

Nesse modelo, cada incorporador pode definir o tamanho do empreendimento de acordo com as características e demandas para cada área, possibilitando uma resposta imobiliária em regiões de alta demanda, garantindo, em contrapartida, recursos municipais adequados para absorver tais empreendimentos.

O potencial construtivo deve ser precificado através da criação de um mercado ou bolsa municipal, semelhante ao conceito utilizado em mercado de créditos de carbono. Assim, o poder público municipal não determina o preço a ser pago pelo potencial construtivo, mas a quantidade de potencial construtivo total da cidade que será disponibilizada ao mercado. Essa métrica única sobre o potencial construtivo da cidade alinha os incentivos do poder público com a cidade como um todo, evitando pressões de grupos organizados de regiões específicas da cidade. Além disso, ao precificar o potencial construtivo através de uma bolsa, o custo de oportunidade da restrição do direito de construir fica evidente para a municipalidade, que é incentivada a tomar decisões economicamente responsáveis sobre o uso do seu território.

O espaço construído de uma cidade deve responder às demandas surgidas ao longo do tempo, visando, principalmente, favorecer a inclusão e a acessibilidade de novos moradores.

Dado que o valor do potencial construtivo seria igual para qualquer terreno da cidade, o empreendedor teria um incentivo implícito — mas não restrito — para utilizar o potencial em regiões mais valorizadas da cidade. Tal situação é positiva dado que os preços altos são indicadores de alta demanda, e muito frequentemente são as regiões mais valorizadas as que dispõem de infraestrutura mais adequada para o adensamento imobiliário.

A proposta de viabilizar um maior adensamento construtivo em regiões de alta demanda tem características semelhantes ao modelo de Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (Dots), que sugere a promoção do adensamento construtivo ao longo de corredores de transporte de massa. Por outro lado, o Dots normalmente mantém restrições rígidas ao adensamento construtivo no interior dos bairros, restringindo o aumento de densidades demográficas e da altura das edificações. Esse foi o modelo utilizado por Curitiba ao longo das últimas décadas e o implementado no novo Plano Diretor de São Paulo.

A prática que propomos neste guia difere do Dots por entender que as restrições por ele impostas impedem o atendimento da demanda imobiliária em regiões centrais, dificultando e encarecendo o acesso a moradia e serviços. Ao restringir o potencial construtivo de um bairro repleto de infraestrutura e em uma região central, o município está impedindo que se cumpra a função social de propriedades urbanas bem-localizadas.


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  • É realmente complicado implantar Dots nas cidades brasileiras devido aos eixos de transporte de massa serem muito escassos. Me agrada o modelo utilizado em cidades japonesas e coreanas, uma flexibilização do Dots com outros critérios de adensamento, como por exemplo permitir a verticalização em eixos viários mais largos independentemente de possuir ou não transporte de massa, além de verticalizar o interior dos bairros de maneira lenta e gradual conforme a demanda.

  • Primeiramente, parabéns pela qualidade dos artigos publicados pelo Caos Planejado.
    Numa cidade onde não existe o IA básico e nem a outorga onerosa do direito de construir, a implantação desse modelo proposto não seria uma expropriação aos proprietários de terrenos? O poder público, com a sua falta de transparência e desvirtuamento das políticas públicas teria capacidade para estabelecer o potencial construtivo máximo de uma cidade? Esse modelo já funciona de forma harmônica e com resultados satisfatórios em alguma cidade?

    • Marcelo,

      Obrigado pela leitura e pelo seu comentário. No meu entendimento há sim um descompasso entre um eventual adensamento de uma determinada área da cidade e os recursos públicos para atender esta área com a infraestrutura adequada. No entanto, o que ocorre hoje é que tal restrição ao adensamento é tão grande que ela não impede que o adensamento ocorra: o problema é que o adensamento acaba ocorrendo em áreas periféricas, ora menos reguladas ora invadidas, com custos de infraestrutura ainda maiores. Ou seja, no caso ideal o potencial de adensamento não teria limite e o preço da outorga seria acessível, de modo a permitir tal adensamento nas regiões centrais e, ao mesmo tempo, captar recursos públicos para investir em infraestrutura para atender tais empreendimentos.

      Espero que tenha esclarecido o material do texto, e fico a disposição para outras dúvidas.

      Anthony

    • Oi Marcelo! A sua pergunta é muito pertinente. Tento responder iniciando pela segunda pergunta: na prática, não achamos que existe um coeficiente de aproveitamento “ideal”, e por isso sugerimos não haver limite para tal índice desde que o incorporador pague pelo seu potencial construtivo. Isso responde parcialmente a sua primeira pergunta: o potencial base 1 não é baixo se levarmos em consideração que não colocamos limite no potencial mediante compra de índice. O motivo de criarmos estabelecermos o potencial base em 1 tem origens diferentes: sim, é um padrão arbitrário, mas é uma medida simples que já foi implementada em larga escala na cidade de São Paulo, o que ajuda na sua compreensão como referência. Também achamos necessário existir um potencial base que permita aos proprietários individuais que constroem suas casas em região pouco densas não precisarem passar pelo processo burocrático de compra de índice. Além disso, o índice base 1 é baixo o suficiente na medida em que, fora projetos de loteamento e condomínios horizontais, são poucos incorporadores que se interessam por esse tipo de desenvolvimento imobiliário de baixa escala. Enfim, a escolha é resultado de um conjunto de fatores e entra, evidentemente, como uma sugestão, sem querer afirmar que não há nenhuma forma de alternativa ou modificação plausível para ela. Abs!

      • Obrigado pela resposta, Anthony. aproveito pra fazer mais uma pergunta: “Assim, o poder público municipal não determina o preço a ser pago pelo potencial construtivo, mas a quantidade de potencial construtivo total da cidade que será disponibilizada ao mercado. ” como é determinado o potencial construtivo total disponivel? tem algum metodo que costuma ser utilizado?

        • Oi Marcelo,

          Deve ser levado em consideração uma série de fatores, mencionados nas métricas ao final do Guia, como:

          – Identificação da disponibilidade de moradia por grupos de renda e o consumo de moradia por cada grupo.

          – Número de habitantes morando em comunidades informais.

          – Taxa de vacância em imóveis públicos e privados.

          – Preços dos terrenos, de moradia e de renda por habitação.

          – Oferta de terra e de moradia: quantos hectares de terra são desenvolvidos a cada ano, quantos edifícios novos recebem licenças para serem construídos.

          – Taxa de crescimento populacional vegetativo e saldo migratório.

          E, é claro, as preferências locais da população por mais ou menos construção na cidade, além da capacidade de infraestrutura na cidade para permitir mais desenvolvimento. A partir dessas métricas o poder público terá uma ideia melhor de quanto potencial construtivo deve ser liberado na cidade.