Coronavírus e o futuro das cidades
Imagem: Dennis Fraevich/Flickr.

Coronavírus e o futuro das cidades

Se, por um lado, é necessário ter cautela em propor mudanças para a cidade baseado na atual pandemia, por outro é impossível imaginar que as cidades continuarão iguais.

8 de junho de 2020

Em 2020, pelo menos a metade do mundo entrou em quarentena por conta da pandemia causada pelo coronavírus. Esse vírus é responsável pela COVID-19, doença infeciosa e que ataca o sistema respiratório humano, podendo causar pneumonias graves e levar ao óbito. Por ser um vírus novo, as pessoas não possuem anticorpos para lidar com a doença. Por se transmitir pelo ar e por gotículas, se torna um risco em ambientes urbanos adensados. E como vivemos em um período urbano — em que mais de 50% da população mundial habita as cidades —, surgiu a necessidade de se debater medidas urbanas para mitigar a contaminação e mortalidade da nova doença.

É importante analisar como as cidades lidaram com o problema em pandemias passadas. Além disso, é necessário conhecer as peculiaridades da pandemia do coronavírus e do tempo em que vivemos.

Outras pandemias na história das cidades

As doenças acompanham a humanidade desde que surgimos enquanto espécie. Com o início do assentamento humano em regiões específicas, as pandemias se tornaram um problema e um grande desafio à vida urbana, visto que a interação entre um grande número de pessoas aumenta a chance de contágio de doenças causadas por vírus e bactérias.

Desse modo, as pragas eram um problema constante nas cidades da antiguidade, Idade Média e Idade Moderna. Há relatos de diversas cidades e civilizações que sofreram com doenças. A Bíblia destaca pelo menos duas pestes: o carbúnculo ou antraz (que causa úlcera) e a lepra. Essa última é presente em diversos momentos do livro sagrado para o cristianismo. Naquele momento — e até o século XX —, a hanseníase era responsável pela morte social dos enfermos, que eram condenados a viver isolados e, muitas vezes, carregando o fardo da “doença dos pecadores”.

Durante a Idade Média, a Peste Negra  — também chamada de Peste Bubônica — dizimou até 200 milhões de pessoas na Eurásia e entre 30% e 60% da população da Europa. A doença era transmitida por meio da bactéria Yersinia pestis, mas se acreditava que os ratos a transportavam por pulgas. Há outros estudos que indicam que a doença foi transmitida por meio de piolhos e pulgas humanas — o que é plausível, visto as péssimas condições sanitárias das cidades medievais. O fato é que cidades mais conectadas com outros centros foram as que mais sofreram com a peste, como Marselha e Gênova.

Pintura de Marselha durante a Grande Praga em 1720, por Michel Serre. (Imagem: Wikipedia)

Nas Américas, a população nativa foi dizimada pelos povos europeus e pela chegada de novas doenças virais, como a gripe. Após o crescimento do comércio, desde o declínio da Idade Média, a população urbana cresceu de forma exponencial. Nesse contexto, a cólera e a varíola se tornaram as principais ameaças à saúde pública nas cidades da Europa e do Novo Mundo. 

Reformas urbanas: século XIX e século XX

No século XIX e no século XX, as cidades passaram por diversas reformas e remodelamentos, com o intuito de se adaptarem aos novos tempos mas, principalmente, aos novos conceitos urbanos que surgiam na academia e na sociedade civil organizada. Barcelona de Cerdá e Paris de Hausmann são os maiores exemplos e, esta última, inspirou diversas intervenções em todo o planeta. No Brasil, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Santos receberam intervenções baseadas na inspiração francesa.

De caráter sanitarista, essas intervenções tinham como objetivo sanar alguns problemas das cidades relacionados à saúde pública. Todavia, outras questões também eram levadas em consideração para a confecção dos remodelamentos urbanos, como a “higienização” da cidade — muitas vezes aproveitando essa narrativa para expulsar pessoas mais pobres das áreas centrais e separar bairros residenciais da classe alta da região das indústrias e comércio, um prelúdio às desigualdades territoriais percebidas até hoje nas cidades brasileiras.

No mesmo período, na Grã-Bretanha, surgiam correntes urbanas que defendiam a criação das “cidades-jardins”, separando as atividades da cidade por funções, em diversos núcleos urbanos menores com generosos espaços verdes entre as edificações. Essas ideias também foram incorporadas na teoria e na prática urbana ao redor do mundo.

Vale destacar que, na época, as cidades europeias e brasileiras viviam com surtos de varíola e cólera, que influenciaram a adoção de medidas sanitárias. Em 1854, em Londres, o médico e epidemiologista John Snow deu origem a uma metodologia inovadora para estudo de pestes, com o mapeamento dos casos de varíola que ocorriam na cidade. A análise intuitiva de Snow o fez relacionar a disseminação da cólera de acordo com a localização das bombas de água na cidade — em seguida, com o desligamento das bombas problemáticas, a disseminação da doença reduziu drasticamente. Dessa maneira, além das intervenções urbanas, novos estudos de fenômenos geográficos evoluíam, o que facilitou o combate a epidemias. O saneamento básico e a água potável se tornaram elementos fundamentais para cidades saudáveis.

Contudo, a limitação de conhecimento técnico, aliada a outros interesses que não a saúde pública, fez com que as reformas também tivessem efeitos danosos para as cidades modernas. No Brasil, a remoção dos cortiços e as propostas para incentivar o espraiamento urbano foram as piores soluções da época. A força do Estado em fazer cumprir essa visão urbana gerou diversas revoltas, como a Revolta da Vacina, e contribuiu para criar uma desigualdade socioespacial nas cidades que perdura até os dias atuais.

Avenida Central, na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX, umas obras de revitalização urbana que removeu os cortiços do centro da então capital brasileira. (Imagem: Arquivo Nacional/Flickr)

No início do século XX, o mundo atravessou por outra grande pandemia: a gripe espanhola, que chegou a matar mais de cem milhões de pessoas. Naquele contexto, diversas cidades adotaram medidas para enfrentar a pandemia, como uso de máscaras em locais públicos e proibição de aglomerações. Estudo recente mostra que, na época, aquelas que adotaram medidas mais rígidas sofreram menos efeitos econômicos por conta da pandemia.

Quarentena reforçou a divisão das cidades

As cidades são organismos vivos, que necessitam de movimento para existir. Além disso, o ser humano é um animal social e político. Dessa maneira, as quarentenas impostas pelos governos em diversos locais do mundo trouxeram um grande desafio para os países, embora seja a melhor alternativa identificada para conter a propagação do vírus. Em geral, os países mais desenvolvidos conseguiram impor uma quarentena mais rígida, aliando fiscalização a grande auxílio financeiro para que os cidadãos conseguissem ficar em casa por meses.

Em países mais pobres, tais medidas se tornam mais frágeis e a própria quarentena, isolamento social ou até mesmo o chamado “lockdown”, de restrição absoluta aos deslocamentos, se tornam mais instáveis. Evidente que há exemplos que fogem à regra, como a Suécia, que preferiu não adotar o lockdown (talvez por terem um sistema de saúde capaz de suportar um surto do vírus) e a Índia, que, apesar de ser um país em desenvolvimento, tentou implementar um dos lockdowns mais rígidos, com resultados ainda a ser avaliados.

Além da divisão entre as cidades desenvolvidas e em desenvolvimento, tivemos uma divisão em nossas próprias cidades em relação às políticas de isolamento social. Embora o lobby contrário ao isolamento social parta das classes mais abastadas, as medidas para restringir aglomerações se mostraram mais eficientes na cidade formal, enquanto na cidade informal, como nas conhecidas favelas, tais medidas, em muitas oportunidades, não foram respeitadas. O aspecto econômico é importante para justificar a menor adesão desses espaços ao isolamento — afinal, quem tem menos recursos poupados precisa trabalhar de forma constante —, mas boa parte do resultado se explica pois, tecnicamente, áreas informais tendem a receber menos fiscalização e benesses do planejamento urbano formal.

Nada indica que o problema da pandemia do coronavírus esteja próximo de ser solucionado. Tampouco que soluções urbanas podem, de uma hora para a outra, resolver um problema de um vírus tão peculiar e perigoso. Mas, como tudo, podemos tirar lições desse acontecimento para transformar nossas cidades mais resilientes e mais preparadas para os próximos anos.

Em um primeiro momento, urge que problemas crônicos de higiene (saneamento básico e água potável) sejam resolvidos, principalmente em assentamentos irregulares. Afinal, essa é uma demanda do século XIX! Em um país em que mais de 31 milhões não têm acesso à água encanada, fica difícil atender a uma das principais recomendações da OMS para mitigar a propagação do vírus, que é lavar as mãos. A falta de saneamento básico e coleta de lixo influencia na propagação de outras doenças, como a dengue — que teve um surto neste ano.


Em um primeiro momento, urge que problemas crônicos de higiene (saneamento básico e água potável) sejam resolvidos, principalmente em assentamentos irregulares. Afinal, essa é uma demanda do século XIX!


Também é importante trabalhar medidas para mitigar e solucionar a triste separação que ocorre em nossas cidades, que deixa grande parte da população urbana sem acesso a serviços e infraestrutura básica para uma digna na contemporaneidade. Para os próximos anos, esperamos cidades enfrentando pelo menos alguns meses de isolamento social e evitando aglomerações como shows, eventos esportivos e usando o distanciamento para a utilização de espaços públicos. Mas é necessário tomar cuidado e prezar pela prudência ao adotar medidas urbanas duradouras diante um fato novo, ou problemas estruturais podem surgir nas cidades do futuro, assim como as reformas urbanas do século XIX e XX causaram nas cidades dos dias atuais.

Uma ideia, quando semeada no cerne de uma sociedade, tende a perdurar por gerações. Por isso, antes de executar quaisquer ideias sobre o futuro de nossas urbes, é importante atravessar um processo de muita reflexão, avaliando o real impacto das mudanças urbanas na saúde pública e os efeitos que deixará para a posteridade. Outro elemento que precisa ser destacado é o fator tempo, pois um tratamento eficiente ou mesmo uma vacina pode ser criada em alguns anos, o que tornaria as mudanças inadequadas ou ineficientes.

Muito se fala sobre a relação entre o novo coronavírus e centros urbanos adensados, mas alguns pontos são omitidos ou pouco comentados ao abordar sobre essa relação. Grandes cidades foram os primeiros epicentros do novo vírus por motivos simples: assim como em epidemias passadas, são os centros mais conectados e que mais recebem pessoas de outros países, aumentando a chance de receber uma pessoa contaminada.

Também pouco se fala sobre centros urbanos extremamente densos que souberam lidar de forma muito satisfatória com o coronavírus, como Hong Kong, Seul, Taiwan, Singapura e até mesmo outras grandes cidades chinesas que não Wuhan, epicentro do vírus na China. O foco é seletivo a centros urbanos europeus e a cidade de Nova York, mas a diferença pode ser atribuída principalmente a demora em adotar medidas de controle e isolamento social. Taiwan, por exemplo, adotou controle de temperatura corporal e quarentena para suspeitos desde o início do surto do COVID-19. Dessa maneira, é possível que a propagação do vírus ocorra mais por conta de uma gestão ineficiente da pandemia — da omissão de se fazer o que deve ser feito em tempo hábil— do que, necessariamente, o grande adensamento populacional em uma região urbana, sem mencionar o fato das cidades apresentarem a infraestrutura necessária para enfrentar grandes pandemias como esta (hospitais, leitos de UTI, etc.).

Região da Times Square, Nova York, em 15 de maio de 2020. (Imagem: J. Casalino/Flickr)

Assim, os benefícios do adensamento populacional não devem ser colocados de lado diante desse novo desafio que enfrentamos. Ao contrário de pensar em soluções para espraiar as cidades — solução que vem sendo desfeita a duras penas ao longo dos últimos anos —, os planejadores urbanos, aliados a outras esferas governamentais, deveriam melhorar a capacidade de gerenciar pandemias (atuais e futuras). E, mais importante, destacar que medidas e soluções para um caso excepcional não devem virar soluções definitivas.

O home office, muito destacado no período, não substitui as empresas e escritórios fixos, assim como o ensino a distância não substitui as escolas e universidades. Seguidos estudos de economia urbana e da teoria da comunicação destacam a importância da proximidade física para que uma informação seja passada de forma clara e objetiva.

As comunicações entre culturas são sempre complicadas; aspectos importantes são perdidos na tradução. As novas ideias de continentes diferentes poder ser tão distintas do nosso conhecimento atual que nos fazem precisar dar enormes saltos intelectuais, o que invariavelmente significa a necessidade de muita orientação […] As cidades e as interações pessoais que elas engendram, são ferramentas para reduzir a maldição da comunicação complexa” — Edward L. Glaeser, Triunfo das cidades. 

Se por um lado é necessário ter cautela em propor mudanças para a cidade baseado na atual pandemia, por outro é impossível imaginar que as cidades continuarão iguais. Mesmo em situações normais, as cidades estão sempre mudando. O que se deve levar em consideração é que propostas de mudanças radicais podem influenciar muitas gerações e, quando essas mudanças vão de encontro a tudo que conhecemos como cidade, essas influências se tornam extremamente maléficas para a vitalidade urbana.

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