Controle ecológico e a cidade jardim: utopia para quem?
Imagem: Michel Jolyot.

Controle ecológico e a cidade jardim: utopia para quem?

O movimento da Cidade Jardim foi influente no início do século XX, mas sua adoção em algumas cidades levou à segregação e à exclusão.

28 de julho de 2022

Na virada do século XIX, uma editora britânica lançaria um livro escrito por um urbanista inglês — um livro com um título otimista. O título deste livro era To-morrow: A Peaceful Path to Real Reform, mais tarde reimpresso como Garden Cities of To-morrow. O urbanista inglês em questão era Ebenezer Howard — e este livro lançaria as bases para o que mais tarde ficaria conhecido como o Movimento Cidade Jardim. Esse movimento continuaria produzindo subúrbios verdes enaltecidos por seus objetivos nobres, mas também produziria comunidades satélites que atenderiam apenas alguns privilegiados.

O conceito propagado por Ebenezer Howard era bem simples. Na sua forma mais básica, uma cidade jardim combinaria harmoniosamente o campo com a cidade, onde a fuga rural e a superlotação urbana seriam abordadas simultaneamente. Espacialmente, Howard visualizou cidades jardim a serem planejadas em um padrão concêntrico com espaços verdes e parques públicos, intersectados por seis avenidas radiais que partem do centro.

Diagrama da Cidade-jardim
Diagrama da Cidade Jardim de Ebenezer Howard, 1898. (Imagem: Ebenezer Howard)

Apesar do ar utópico das visões de Howard, uma cidade jardim foi construída no Reino Unido pouco tempo após a publicação de seu livro. Letchworth, no sul da Inglaterra, serviria como modelo para futuras cidades jardim — sendo influente nas proximidades de Welwyn e Hampstead Garden Suburb.

conceito original de cidade jardim, no entanto, foi moldado pelas realidades de um sistema econômico capitalista. Howard havia concebido Letchworth com um esquema de propriedade cooperativa sem proprietários. Porém, como o projeto foi apoiado por investidores ricos, isso foi descartado. Essa formatação do conceito de cidade jardim acabaria saindo do Reino Unido, encontrando seu caminho em territórios coloniais no continente africano, onde os elementos de uma cidade jardim seriam transplantados para excluir, segregar e delimitar status social.

Vista aérea de Letchworth
Vista aérea de Letchworth. (Imagem: RIBA Competitions)

Uma reprodução muito antiga do modelo de cidade jardim internacional aconteceu na África do Sul, que em 1919 viu o surgimento de Pinelands nos subúrbios ao sul da Cidade do Cabo. Modelado de perto em Letchworth Garden City, foi a primeira tentativa de um plano profissional de cidade na África do Sul — que atuou como precursor do planejamento espacial preferido por sucessivos governos do apartheid. As estradas e caminhos que cortam Pinelands foram cuidadosamente elaborados para permitir vistas voltadas para aglomerados de árvores ou para a Table Mountain. As lojas foram projetadas para serem de fácil acesso sem serem intrusivas, e as casas foram projetadas em um estilo vernacular inglês adaptado — buscando combinar uma aparência agradável com conforto e acessibilidade.

Com tudo isso, no entanto, Pinelands foi explicitamente concebido como um subúrbio habitacional segregado de baixa densidade e somente para brancos. Se a visão de Ebenezer Howard de uma cidade jardim era aquela que defendia a reforma social, o projeto da cidade jardim de Pinelands era puramente técnico, representado apenas no layout das estradas e na distribuição de espaços abertos. O arquiteto inglês Albert John Thompson — que projetou o assentamento — justificou sua posição contra o desenvolvimento de uma seção não europeia em Pinelands citando a falta de fundos.

Plano de Cidades Jardim de Pinelands
Plano de Cidades Jardim de Pinelands, 1948. (Imagem: University of Cape Town Libraries, South Africa)

O desenvolvimento de Pinelands de fato abriu o caminho para o planejamento como meio de controle social na África do Sul. Contribuiu em parte para a aprovação de estatutos que obrigavam o uso segregado da terra — como a portaria de 1927 que formalizou a criação de municípios.

Algumas décadas depois, a Lei de Áreas de Agrupamento foi promulgada na África do Sul, com grupos raciais sendo atribuídos a diferentes áreas residenciais e comerciais à medida que o apartheid urbano era codificado. O Cape Flats foi resultado desse ato, uma área composta por bairros racialmente segregados. Os cinturões verdes estabelecidos no manual original da cidade jardim tornaram-se uma ferramenta de exclusão, atuando como zonas de amortecimento entre comunidades negras, mestiças e brancas. As estradas suburbanas circundam umas às outras, outra forma de controle urbano.

Browns Farms - Cape Flats, Philippi, Cidade do Cabo
Browns Farms – Cape Flats, Philippi, Cidade do Cabo. (Imagem: Johnny Miller)

Esse modelo explorador de cidade jardim foi aplicado pelo governo sul-africano do apartheid em municípios como Langa e Ndabeni, e foi uma representação apta da cidade jardim tanto como uma forma de controle dos não-brancos quanto como meio pelo qual a comunidade branca da África do Sul seria “isolada” dos não-brancos.

A cidade jardim como um projeto de engenharia social também foi esculpida de maneira semelhante na África Ocidental, com a capital do Senegal, Dakar, sem dúvida, carregando esse legado de maneira mais vívida. No epicentro do domínio colonial francês na África Ocidental, os administradores coloniais recorreram ao modelo de cidade jardim para criar o que chamaram de cité-jardin em Dakar — com o objetivo evidente de criar uma estratificação de classe visível.

Os bairros de Dakar nos anos 50. (Imagem: Original drawing by Tamar Soffer)

No início do século XX, o governo colonial impôs esquemas habitacionais segregacionistas na cidade. Os habitantes indígenas de Dakar foram forçados a se reassentarem no recém-formado bairro de Médina, com sua grade deliberadamente disposta para vigilância colonial sobre a área. Em meados dos anos 1900, o Plateau foi estabelecido, com várias rotatórias elaboradamente dispostas em cruzamentos de avenidas largas, em forma de estrela. O último era o cité-jardin de Dakar. Não era uma cidade jardim no sentido pleno, mas sim um povoado composto por vilas com jardins e varandas, largas avenidas arborizadas e uma abundante vegetação decorativa.

O bairro Plateau de Dakar foi projetado para criar uma comunidade de prestígio para a burguesia colonial — áreas atrativas para oficiais coloniais em um cenário de segregação urbana. O fácil acesso à natureza — um princípio fundamental da proposta original da cidade jardim de Ebenezer Howard, era limitado aos expatriados coloniais.

O modelo de habitação comum no Reino Unido de um complexo de bangalôs com um jardim cultivado foi transplantado para Dakar, tomando a forma de espaçosas vilas com jardins privados. A prática da natureza como objeto de consumo, adotada pelas elites urbanas europeias, encontrou seu caminho até a Dakar colonial, onde os espaços verdes serviriam como espaços de lazer e prazer.

O projeto cite-jardin foi, na verdade, uma tentativa de controlar o caráter urbano e ecológico de Dakar, servindo ao objetivo colonial de atrair a família expatriada ideal para emigrar. As amplas casas no cite-jardin de Dakar, abrigando grandes hortas e servidas por empregados domésticos, eram uma manifestação física da autoridade colonial, pois os moradores indígenas de Dakar eram obrigados a se adaptar ao assentamento mal planejado de Médina.

A área do Plateau de Dakar com estradas arborizadas, do filme de Ousmane Sembène “Black Girl”. (Imagem: de Janus Films)

Mesmo o modelo inicial de cidade jardim de Howard não pode ser dito inerentemente libertador. Foi um produto, de certa forma, de representações condescendentes de pessoas e assentamentos da classe trabalhadora, propagados pelas classes média e alta. É natural, então, que esse modelo produza os Plateaus e Pinelands do mundo — comunidades utópicas para um segmento seleto da sociedade.

A cidade jardim pode ser romantizada em alguns círculos contemporâneos e aclamada como uma avenida para tornar as cidades mais habitáveis, mas é um conceito impossível de desvincular de suas origens — e que pode facilmente levar a comunidades segregadas que o mundo pode prescindir.

Artigo publicado originalmente em ArchDaily em julho de 2022. Traduzido por Diogo Simões.

Sua ajuda é importante para nossas cidades.
Seja um apoiador do Caos Planejado.

Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.

Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.

Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.

Quero apoiar

LEIA TAMBÉM

Desafios e soluções na concessão de parques

Parques públicos são fundamentais para as cidades e o meio ambiente, mas sua manutenção disputa espaço no orçamento com outras áreas prioritárias, como saúde e educação. Para reduzir despesas, o Poder Público tem realizado parcerias com a iniciativa privada. No entanto, as consequências desse modelo ainda precisam ser melhor avaliadas.

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.