Como as guerras moldaram nossas cidades
Imagem: Alev Takil/Unsplash.

Como as guerras moldaram nossas cidades

As guerras e a evolução tecnológica impuseram às cidades enormes desafios para garantir sua segurança contra ataques e invasões inimigas ao longo do tempo. Exigindo mudanças e adaptações que moldaram nossas cidades.

27 de janeiro de 2020

Quando ainda éramos nômades, travávamos nossas primeiras batalhas com paus e pedras. As causas podem ser diversas quando se trata de agredir membros da mesma espécie, desde a obtenção de recursos, território, vingança ou mesmo poder. As batalhas entre tribos distintas acompanharam o ser humano em sua evolução na terra. Desde a criação das cidades, a guerra e os equipamentos de combate utilizados em cada período foram importantes instrumentos a serem considerados durante o planejamento do centro urbano. 

A muralha como instrumento de defesa

Quando nos tornamos sedentários, precisamos nos preocupar em armazenar o excedente de alimentos, especialmente grãos — como o trigo — para os tempos difíceis. Junto a esta necessidade, nós, humanos, precisamos criar mecanismos de defesa para proteger a colheita armazenada. Afinal, para fazer a colheita do trigo, estima-se um tempo de 120 dias. Para roubá-la, uma noite. Por conta desta facilidade, a quantidade de tribos saqueadoras ao longo da história, como os vikings, sempre foi relevante.

Embora seja controverso, segundo muitos historiadores, a primeira cidade conhecida é Jericó, localizada a 27 km da atual cidade de Jerusalém. Em Jericó, as muralhas eram feitas de pedras, material muito vasto na região e que até hoje utilizado nas construções locais, sendo a relação da muralha com o papel defensivo até mesmo descrito em passagens da Bíblia.

Como se repetiu em diversas outras cidades até a Idade Moderna, as muralhas eram não apenas o principal instrumento de defesa do assentamento urbano, responsável por separar a cidade do mundo externo e de invasores, mas também a principal obra de infraestrutura de uma cidade. Elas poderiam ser feitas de diversos materiais (madeira, pedra, barro batido), variando com a disponibilidade destes para a cidade. Levavam anos para serem construídas e, quando prontas, limitariam o tamanho do espaço urbano até a sua próxima expansão, sendo a evolução dos muros de Paris desde o século IV exemplo disso.

Em Jericó, as muralhas eram feitas de pedras, material muito vasto na região e que até hoje é utilizado nas construções locais. (Imagem: WBChan/Flickr)

A maioria das cidades surgiu à beira de rios, necessários para realizar o transporte de mercadorias de forma mais econômica, além de servir para abastecer as necessidades da população local e plantações. Isso se tornou um problema para a defesa de muitas cidades, como a Babilônia, que foi invadida pelo Rio Eufrates durante um feriado do Império. Essa fragilidade levou a construção e elaboração de estratégias de cerco, sendo o Império Romano o mais bem-sucedido império da antiguidade nessa arte, vencendo por muitas vezes as muralhas de cidades inimigas.

Os cercos romanos

Embora o Império Romano apresentasse uma clara pré-disposição à conquista, a maioria de seus inimigos resistiram bravamente. Para acelerar o avanço a novos territórios e populações, Roma aperfeiçoou o seu exército e as estratégias militares — incluindo o cerco. Para isso, utilizou armas como aríetes, catapultas e torres de cerco.

Catapulta romana, em exposição no Castelo Sant’Angelo, Roma. (Imagem: Gary Todd/Flickr)

A capacidade da engenharia militar romana se destacava. Eram capazes de isolar uma cidade cercando-a, impedindo fugas e furo do bloqueio. Os nativos do centro urbano a ser dominados não tinham como ter contato com o mundo exterior para pedir ajuda ou mesmo buscar mantimentos para civis e para o exército. Com o tempo, a cidade ficava enfraquecida, sem alimento e água. Seus habitantes eram então forçados a se render (como no caso de Alesia e Numância) ou sofriam o ataque final (como no caso de Jerusalém).

Talvez uma exceção, o exemplo que se destaca na Europa é o caso da Inglaterra que, por estar isolada em ilhas tinha um território unificado e relativamente pacífico após o período medieval, teve poucas muralhas construídas a partir do século XIII. Apesar da evolução das tecnologias militares, as muralhas ainda foram utilizadas como principal instrumento de defesa por pelo menos mil anos após a queda do Império Romano do Ocidente, quando um acontecimento histórico colocou em cheque a utilização das muralhas: a queda de Constantinopla.

A queda de Constantinopla

Constantinopla foi uma das mais magnéticas cidades da história. Era uma cidade genuinamente romana no que diz respeito às suas edificações e representava a ligação entre Oriente e Ocidente, e, por vezes, a mistura entre ambos. A riqueza proporcionada pelo comércio, potencializado pela localização privilegiada da cidade, postada estrategicamente entre o “mundo ocidental” e o “mundo oriental”. Era, portanto, o local onde os Europeus buscavam as mercadorias e especiarias do oriente. A cidade preservou a cultura romana durante toda a Idade Média e ostentou até a sua queda a riqueza e imponência do maior império da antiguidade, perdida no obscurantismo da Idade Média na Europa ocidental.

Istambul, antiga Constantinopla, é a única cidade no mundo localizada em dois continentes diferentes, europeu e asiático. (Imagem: Anna/Unsplash)

Se você tivesse uma máquina do tempo e viajasse para os anos 1400, se impressionaria com a grandiosidade da segunda Roma. Era uma grande e próspera metrópole quando Paris ainda era um amontoado de construções malfeitas, sem sistema de esgoto, repleta de ratos e pedintes, como Victor Hugo a descreve em “Corcunda de Notre-Dame”. Para preservar a integridade da cidade e do império, tendo em vista que a cidade era muito visada por estar localizada em uma zona de transição, o centro urbano foi cercado por suntuosas muralhas, que preservaram a vida romana no oriente por quase mil anos após a queda de Roma — até a tomada da cidade pelo exército turco-otomano, em 1453.

O certo é que a descoberta da pólvora e a utilização dos canhões mostrou aos engenheiros militares que as muralhas não eram mais um instrumento tão importante do que foram ao longo de toda a história. Agora elas podiam ser facilmente vencidas pelos canhões de guerra. Mas o que foi um problema resolveu outra questão que as cidades enfrentavam desde que foram inventadas: elas agora podiam crescer para além das muralhas. Antes, elas delimitavam geograficamente o tamanho da cidade. Se era preciso crescer, uma nova muralha precisaria ser construída. Agora que as muralhas não eram mais tão eficientes, não fazia mais sentido limitar o crescimento urbano em um perímetro previamente estabelecido.

Cidade Alta e Cidade Baixa no Brasil colonial

As nossas cidades coloniais também foram feitas para evitar invasões, comuns na época do descobrimento do cobiçado novo mundo. A distinção entre Cidade Alta e Cidade Baixa era uma herança lusitana. Ao alto, ficavam os fortes e edificações mais importantes, como a casa de câmara e cadeia. Abaixo, os comércios e portos, que aproveitavam a proximidade dos portos para escoar produtos para à metrópole e receber os do interior do país, assim como de outras cidades do litoral.

As ruas estreitas das cidades, além de representar uma herança cultural do urbanismo lusitano, criava verdadeiras armadilhas para os invasores. Nos pontos elevados, tínhamos os fortes, com ampla visão para o oceano e a chegada de possíveis invasores. Entre as cidades coloniais brasileiras que utilizavam destes mecanismos de defesa, podemos citar São Luís, cujas características ainda podem ser muito bem observados por qualquer um que a visite. Outras cidades também foram divididas entre cidade alta e baixa, como Olinda e Salvador, seguindo as diretrizes urbanas dos conquistadores. 

A Paris de Haussmann

Além de proteger a cidade, seus habitantes e — principalmente — suas elites de invasores estrangeiros, muitos elementos e estratégias de planejamento urbano foram utilizadas para controle militar da sua própria população. O exemplo mais marcante é a remodelação da cidade de Paris, de Haussmann.

Representação de Paris no século XIX, pintado por Camille Pissarro, 1898. (Imagem: Wikipedia)

No século XIX, Paris ainda era uma cidade de desenho medieval, com suas ruas estreitas, tortas e as construções desajeitadas fazendo limite a estas ruas. No barril de pólvora que a França se tornou desde a Revolução Francesa, as ruas estreitas se tornaram perfeitas para as barricadas, estilo de guerrilha muito adotada por radicais francesas desde o século XVIII.
Para resolver o problema, Napoleão III contratou Georges-Eugène Haussmann, político e administrador francês, para elaborar um plano de remodelação da cidade de Paris. Evidentemente, outras causas foram apontadas como a causa para o projeto, como levar à cidade maior racionalidade, salubridade, higienização, circulação e elegância.

Paris foi então quase que completamente remodelada. Vias foram abertas e alargadas e deram espaços aos famosos bulevares. Cortiços foram demolidos. E quase toda a Paris medieval foi apagada, com exceção de poucas construções, como é o caso da grande catedral gótica de Notre-Dame. A remodelação da cidade de Paris serviu de modelo para intervenções urbanas em várias cidades do mundo e no Brasil — com destaque para a até então Capital Federal, Rio de Janeiro.

Cidades à prova de bombas e o caso de Israel

Após Constantinopla, as muralhas deixaram gradativamente de serem utilizadas para defesa. As cidades cresceram para além delas, aproveitando o crescimento econômico e populacional que se seguiu durante a Idade Moderna e Idade Contemporânea, que foi possível graças às descobertas científicas e maior interação entre os povos. Mas as guerras continuaram e as cidades ainda precisavam se defender. Apesar das muralhas não serem mais tão eficientes, fortificações, bunkers e artilharias passaram a ser utilizadas como instrumentos de defesa.

Durante as guerras do século XX, os bunkers subterrâneos foram os mais utilizados, embora eles sejam escassos. Os metrôs, como em Londres, por estarem localizados abaixo do solo, eram os locais mais seguros, e acabaram funcionando como bunkers. Ainda assim, a cidade, acima, sofria grandes danos. Durante a Guerra Fria, cidades, alimentadas pelo medo de uma guerra nuclear, construíram abrigos antinucleares para proteger pessoas da radiação e dos impactos dessas armas. Pyongyang, capital da Coreia do Norte, possui um metrô com 110 metros de profundidade, que poderia ser utilizado como abrigo nuclear em caso de ataques.

Israel é um minúsculo país localizado no Oriente Médio. Criado em 1948, o país contava com uma minoria judia em uma área majoritariamente árabe. Ao longo de diversos conflitos e guerras, as cidades do novo país se moldaram conforme os conflitos se arrastaram, seja com a construção de bunkers, ou com a segregação entre palestinos e israelenses inclusive através de políticas urbanas.

O terrorismo e a violência contemporânea

Embora as guerras ainda existam, elas estão cada vez menos numerosas. Permanecem com alguma relevância na África e no Oriente Médio, mas, ainda assim, em uma escala abaixo do que ocorreu nos séculos passados. Contudo, a ameaça crescente que impacta nas nossas cidades é a do terrorismo.

Em 2001, o mundo entrou em choque com a queda das torres gêmeas (World Trade Center). Como o nome da edificação — que consistia em duas torres — sugere, o complexo tinha como objetivo concentrar escritórios financeiros globais. A construção dos prédios marcou o renascimento de Nova York nos anos 1970. Todavia, na manhã de 11 de setembro, tudo ruiu quando dois aviões comerciais sequestrados colocaram tudo abaixo. Para prevenir novos ataques, torres construídas após o atentado apresentam tecnologia para resistir a grandes impactos.

Ao centro, One World Trade Center, edifício construído após a queda das torres gêmeas. (Imagem: Sabrina B/Pixabay)
Memorial do 11 de Setembro, homenagem às vítimas do atentado de 2001, inaugurado em 11 de setembro de 2011. (Imagem: Foundry Co/Pixabay)

Nos últimos anos, ocorreram ainda ataques que utilizaram automóveis para invadir calçadas, atropelando dezenas de pessoas. Cidades turísticas, como Paris, anunciam medidas para prevenir atentados terroristas em seus pontos mais visados, como cercando a Torre Eiffel que, até recentemente, deslumbrava o mundo com um dos espaços públicos mais impressionantes ao redor da sua base. Paris, assim como outras cidades europeias, também removeram grande parte das latas de lixo das ruas a partir dos anos 1990, ou as substituíram por sacolas transparentes para poder ver eventuais objetos escondidos. Este também foi um dos motivos para a eliminação de quase todas as latas de lixo em espaços públicos em cidades japonesas, efeito que se seguiu após ataques com gás sarin no metrô de Tóquio em 1995.

As guerras impuseram aos construtores enormes desafios, preparando edificações e cidades para se proteger de ataques e invasões inimigas. Atualmente, o terrorismo é o principal receio de grandes cidades globais. No Brasil, a ameaça do terrorismo se manifesta de forma diferente de outros países, com nossa arquitetura e urbanismo sofrendo influências da violência urbana, como na multiplicação dos condomínios murados ou fortificados. Mas não sem efeitos colaterais, pois estes enclaves, voltados para si também geram inúmeros problemas urbanos.

O principal desafio de nossos planejadores urbanos e arquitetos é pensar soluções que sejam funcionais, humanas e seguras ao mesmo tempo, integrando a cidade e protegendo o interesse dos usuários de determinado espaço.

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