O que o Parque Ibirapuera em São Paulo tem a ver com o Nobel de Economia?
Na perspectiva do desenvolvimento econômico, vemos que alguns aspectos da configuração urbana de São Paulo são excludentes.
Ao tentar classificar cidades como "planejadas" ou "não planejadas", deixamos de nos atentar a algumas nuances que revelam como as cidades realmente funcionam.
2 de dezembro de 2024O que é melhor: uma cidade planejada do zero ou uma formada espontaneamente? No imaginário popular, acredita-se que, se uma cidade pôde ser planejada desde o início, isso significa que ela deve ser melhor ou mais organizada que as outras. Na prática, porém, vemos que isso não garante o sucesso de uma cidade.
Cidades como Tamansourt, no Marrocos, Songdo, na Coréia do Sul e a King Abdullah Economic City, na Arábia Saudita, são exemplos negativos de planejamento de um novo local do zero que não conseguiu atrair a quantidade de moradores que pretendia acomodar. São projetos que tiveram muito investimento (operacional e financeiro) no desenho urbano, no espaço e na infraestrutura, mas negligenciaram os motivos econômicos pelos quais as cidades existem.
Como explica o urbanista Alain Bertaud, “cidades são, primordialmente, mercados de trabalho”. Isso significa que os centros urbanos atraem as pessoas não pela infraestrutura ou pela configuração espacial deles em primeiro lugar, mas pelas oportunidades que a aglomeração de pessoas consequentemente gera. Isso explica, por exemplo, porque Brasília conseguiu atrair moradores e teve um resultado diferente das cidades planejadas citadas acima. Em Brasília, assim como em outras capitais planejadas, por conta da mudança da sede do governo, houve um deslocamento obrigatório de muitas oportunidades de emprego para a nova cidade desde o seu início. Isso gerou uma aglomeração de pessoas que consequentemente atraiu novos negócios e novos moradores. Porém, essa alocação de oportunidades é sempre muito difícil de controlar ou planejar, além de ser extremamente custosa, como foi na capital brasileira.
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Uma vez que as cidades existem por motivos econômicos sobre os quais é impossível ter total controle (além de serem formadas por pessoas com necessidades diversas), toda cidade possui certo nível de espontaneidade. Um equívoco comum neste tema é assumir que podemos classificar cidades como totalmente planejadas ou totalmente espontâneas, como se existisse uma clara linha divisória entre as duas categorias. A verdade é que nenhuma cidade é 100% planejada, com uma predefinição de toda sua infraestrutura e os usos de cada lote, e nenhuma é 100% espontânea, totalmente direcionada por laissez-faire. Esse dualismo simplesmente não existe.
Mesmo sem um ambiente totalmente controlado, a urbanização não ocorre de forma totalmente aleatória. Não chamamos São Paulo e Rio de Janeiro de “cidades planejadas”, por exemplo, mas não é difícil notar em algumas partes das duas cidades uma malha viária ortogonal organizada, com um dimensionamento padronizado de vias e quarteirões, que são fruto de algum nível de planejamento prévio.
A imagem a seguir mostra outro exemplo, um condomínio regularizado recentemente em Brasília. A “espontaneidade” nesse caso foi grande o suficiente para criar um loteamento a partir da invasão de uma área pública sem qualquer preocupação com a legislação. Naturalmente, ninguém se referiria ao local como um “bairro planejado” nesse contexto. Entretanto, o que vemos parece ser uma configuração espacial ordenada, com uma hierarquia viária em uma malha ortogonal, espaços verdes bem delimitados e ruas e lotes com tamanhos padronizados. Ou seja, tudo que uma “cidade planejada” teria como vantagem no imaginário popular.
Esses exemplos reforçam as nuances com as quais precisamos nos atentar ao classificar cidades como planejadas ou não planejadas. A ausência de um ambiente extremamente controlado não significa, necessariamente, que o espaço terá uma configuração caótica, sem nenhum ordenamento.
O contrário também é verdade. Mesmo com planejamento e controle, alguns processos nas cidades são espontâneos, inevitavelmente. Todas as cidades que conhecemos como “planejadas” precisaram em algum momento se deparar com questões que não estavam no escopo inicial.
Brasília, mais uma vez, é um exemplo que ilustra essa situação. Com o Plano Piloto projetado para comportar no máximo 500.000 habitantes, a capital lida, até hoje, com muitos desafios para acomodar adequadamente os seus quase 3 milhões de habitantes. A insuficiência do planejamento inicial, somada ao desejo de preservar a configuração espacial de Brasília pelo seu valor histórico, gera um afastamento dos moradores das áreas centrais. Adicionalmente, grande parte dessas pessoas ainda dependem do Plano Piloto no seu cotidiano para acessar oportunidades e serviços, o que resulta em enormes desafios de mobilidade urbana. O projeto da cidade, que foi construída “do zero”, não conseguiu prever isso.
Se toda cidade possui algum nível de planejamento e de espontaneidade, e se planejar uma cidade do zero não é garantia de sucesso, então qual é a função do planejamento urbano? A resposta curta é: concentrar as energias em planejar aquilo cujo resultado final é mais previsível e mais permanente, já que é muito difícil realizar um planejamento de longo prazo sobre condições dinâmicas e imprevisíveis.
As necessidades que se refletem nas edificações dentro dos lotes de uma cidade são um aspecto da gestão urbana que muda constantemente, é difícil de prever. Grandes cidades, como Nova York e Londres, passam atualmente por um desafio que ilustra bem essa questão: o esvaziamento dos prédios comerciais em áreas centrais. São edificações muito bem localizadas, mas que estão deixando de cumprir sua função plenamente após as mudanças nas dinâmicas de trabalho, reforçadas pela pandemia. Enquanto isso, há uma enorme demanda habitacional que essas áreas poderiam suprir, então estão sendo estudadas formas de converter esses espaços em moradia.
Não faz sentido restringir ou tentar planejar exaustivamente o que acontece dentro do lote privado, pois essas edificações refletem necessidades que mudam constantemente. O mercado imobiliário – ou seja, qualquer indivíduo ou empresa que compra, vende, aluga, investe ou desenvolve imóveis – atua exclusivamente dentro desses lotes, que são as áreas privadas da cidade. Isso significa que são as únicas áreas que sofrem constantemente com mudanças, desde o tamanho das famílias ao tipo de atividade comercial que se exerce em um determinado lote.
No Brasil, infelizmente, praticamente todo esforço de planejamento urbano público é gasto tentando planejar espaços privados das cidades, que tendem a ser os mais imprevisíveis e que já possuem responsáveis que pensam e investem no seu resultado, como arquitetos, incorporadores e investidores. Enquanto isso, pouco se regula ou planeja os próprios espaços públicos, que possuem resultados mais previsíveis no longo prazo, justamente porque existem menos agentes atuando neles. No entanto, ao mesmo tempo em que existem longas discussões, planos de zoneamento e processos de aprovação para definir as atividades permitidas dentro de um lote, por exemplo, as calçadas, a arborização urbana ou a expansão da malha viária ficam em segundo plano na gestão municipal.
Leia mais: Os planejadores urbanos regulamentam demais os lotes privados
As histórias de cidades como Nova York, Barcelona, Buenos Aires e até Belo Horizonte mostram que talvez o aspecto mais importante a ser planejado com antecedência seja a malha viária de uma cidade e a sua expansão, assim como a delimitação dos espaços destinados aos parques, praças e equipamentos públicos. Essa atribuição cabe somente ao poder público, e estes espaços projetados tendem a se manter iguais durante toda vida da cidade. Enquanto os edifícios de Manhattan mudaram várias vezes no último século, seja no tamanho da edificação, seja no seu uso (como escritórios que se convertem em moradia e vice-versa), o desenho das vias projetadas há mais de 200 anos permanece praticamente o mesmo. Isso ocorre porque, além de ser muito mais difícil e custoso mudar uma malha viária, a função desse espaço costuma se manter a mesma durante um período muito mais longo, o que também vale para parques e praças.
Portanto, o caminho mais adequado para o planejamento urbano é, primeiro, entender quais aspectos das cidades são mais afetados pela “espontaneidade” e quais possuem mais previsibilidade e invariabilidade, o que geralmente está relacionado às áreas privadas e públicas, respectivamente. Assim, os esforços devem ser concentrados naquilo que se consegue, de fato, planejar com antecedência.
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