Carros autônomos são novo desafio no Brasil | Entrevista com Anthony Ling
Foto: Abhishek Navlakha/Pexels

Carros autônomos são novo desafio no Brasil | Entrevista com Anthony Ling

"O Brasil ainda não se deu conta do tamanho do impacto dos carros autônomos".

29 de setembro de 2025

Carros autônomos já são uma realidade em cidades como São Francisco, na Califórnia (EUA), onde a Waymo opera com uma frota de táxis autônomos, com presença crescente na mobilidade local – em 15 meses, passaram de 0 a 22% de participação entre os meios de transporte. Hoje, a empresa realiza mais de 150 corridas semanais. É uma perspectiva que deve ganhar projeção rápida em outros países, a questão é: será que o Brasil está preparado para mais essa revolução? Na opinião de Anthony Ling, não. “O Brasil nunca fez essa reflexão sobre o papel do carro na mobilidade de uma forma madura”, argumenta. Em entrevista ao Better Future, podcast do Jornal do Comércio, Ling fala sobre o impacto dessa nova modalidade e como ela torna ainda mais desafiadora a realidade dos sistemas coletivos de transporte nas cidades.

Mercado Digital – Depois de tantos anos, chegou, finalmente, o momento dos carros autônomos?

Anthony Ling – Por incrível que pareça, sim. Muitos de nós crescemos com essa visão do futuro, de carros dirigindo sozinhos. Lá por 2016, 2017 era um assunto que estava muito quente. E como demorou alguns anos para acontecer, parece que saiu um pouco da mídia, mas hoje é um dos assuntos mais transformadores para o mundo dos transportes. E espero que não nos pegue de surpresa aqui no Brasil. A Waymo (empresa da Alphabet que opera carros autônomos) já tem cerca de um terço de todas as corridas de aplicativos na região de São Francisco sem motorista. A gente vê o quanto isso já é parte do dia a dia e da realidade de centenas de milhares de pessoas. E essas empresas estão fazendo lançamentos muito agressivos nos Estados Unidos, agora que a tecnologia já está mais testada.

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Mercado Digital – O Brasil está preparado para os carros autônomos?

Anthony Ling O Brasil ainda não se deu conta do tamanho do impacto. Existe uma teoria de que, a cada grande revolução do transporte, a mancha urbana (dimensão da ocupação urbana de uma cidade) tem um aumento significativo de extensão. Imagina que, inicialmente, as pessoas andavam a pé ou a cavalo. Depois começaram a ter bondes que expandiram as manchas urbanas, depois carros que expandiram ainda mais. Se a gente tem uma viagem ultrabarata, como as que são feitas por um carro elétrico sem motorista, é possível que as nossas cidades passem a ter um crescimento urbano muito mais espalhado no território, o que é ineficiente do ponto de vista de provisão de infraestrutura e também afeta os sistemas de transporte coletivo.

Mercado Digital – O que deveríamos estar fazendo como sociedade em relação ao impacto dessa tecnologia nas nossas cidades?

Anthony Ling Primeiro, precisamos aumentar o nível de consciência, porque se isso já está operando com centenas de milhares de pessoas, não vai levar mais de alguns anos para chegar no Brasil. Até porque, por mais que seja necessário fazer testes, essas empresas têm tecnologias com as quais conseguem acelerar o processo de lançamento em novas cidades. Temos que entender qual é o papel do automóvel nas nossas cidades, porque, infelizmente, o Brasil nunca fez essa reflexão de uma forma madura. Um tema que a gente discute muito no Caos Planejado é que as nossas cidades foram planejadas para quem anda de carro, sendo que o carro é um veículo individual, particular, exclusivo, normalmente voltado para a população de renda mais alta. Ao longo dos anos, foram feitos muitos investimentos em infraestrutura para aumentar a capacidade viária e, assim, colocarmos mais carros na rua. Isso destruiu o tecido urbano das nossas cidades. E deixamos de incentivar todas as outras formas de transporte.

Quando a gente tem uma mega avenida para carros, certamente quem anda de ônibus, a pé ou de bicicleta sabe que é o ambiente mais hostil de todos para usar qualquer outra forma de transporte que não seja o carro. Se a gente tiver uma entrada de carros autônomos, é possível que no momento que a gente veja os carros andando totalmente vazios, a gente perceba o quão idiota é a gente fazer essa infraestrutura em benefício de um privado.

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Mercado Digital – Muitas vezes, atribuímos a solução para as cidades ao uso da tecnologia. Mas, na maioria das vezes, a resposta está em fazer bem o que deve ser feito.

Anthony Ling Sem dúvida. Essa narrativa das smart cities (cidades inteligentes) vem crescendo. Acho que até talvez já tenha passado o boom disso. Muitos gestores públicos ficam seduzidos por essas ideias e investem recursos altos na adoção dessas tecnologias. Mas, para mudar a nossa cidade, a gente não precisa de nada tecnológico. Basta olhar quais são os maiores problemas, como o fato de termos uma parcela grande da população vivendo em habitações precárias, sem saneamento. Calçadas esburacadas, planos cicloviários parados. Aliás, a implantação de ciclovias para incentivar o transporte ativo e a arborização, por exemplo, são coisas bem básicas em termos tecnológicos. É muito mais uma questão de conscientização, priorização e de governança.

Mercado Digital – O que te levou a criar o Caos Planejado?

Anthony Ling O Caos Planejado foi a evolução de um blog pessoal que eu tinha lá na época da faculdade. Eu me formei em arquitetura e urbanismo em 2011 e, por volta de 2009, comecei a me interessar muito por urbanismo. Comecei a escrever como uma forma de estudar. Em 2014, decidi que era o momento de chamar outras pessoas para escrever ao meu lado, com uma linha editorial mais clara e com uma linguagem acessível.

Artigo publicado originalmente em Jornal do Comércio, em setembro de 2025.

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