Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Descubra iniciativas inovadoras para transformar espaços públicos urbanos em áreas seguras, inclusivas e vivas. Conheça práticas globais e resultados científicos que destacam a importância de reativar áreas subutilizadas para o bem-estar coletivo.
2 de outubro de 2023O espaço público urbano é, e deve continuar sendo, um ambiente para manifestação social, cultural e política. Estudos como o da ONU-Habitat reconhecem que espaços públicos acessíveis, seguros e inclusivos são meios reais para a abreviação da desigualdade urbana.
Além disso, idealizando estes espaços como uma “sala de estar”, é esperado que eles sejam funcionais e adaptados a todos, para que os usuários se sintam “convidados” a permanecer, utilizar e cuidar. Ao longo das últimas duas décadas, espaços públicos abertos (ruas, cruzamentos, largos, praças, parques etc.) têm sido alvo de ativações e experiências estratégicas e táticas.
Várias medidas estão sendo aplicadas em diversos lugares do mundo. Embora tenham nomes distintos, essas iniciativas buscam o mesmo resultado: maximizar o potencial do espaço subutilizado e equilibrar o uso das vias em favor da mobilidade ativa (a pé, de bicicleta, patinete e outros dispositivos). A princípio, não se busca realizar grandes obras que demandem custo, tempo e burocracia, e sim experimentar, testar e reorganizar o layout da rua.
Nesse artigo, vamos falar sobre quatro dessas iniciativas: Reparação de Cruzamentos (Intersection Repair), De Pavimentos para Praças (Pavement to Plazas), Ruas de Brincar (Play Streets) e Ruas abertas (Open Streets). Além de explicar como funcionam, vamos trazer resultados científicos que atestam seus benefícios. Essas medidas podem ser aplicadas em diversas escalas de ambiente urbano (rua, quarteirão, bairro), e em diversos períodos (permanentes, sazonais, aos fins de semana, ou durante eventos).
Essas quatro medidas são encontradas, em maior ou menor grau, em conceitos que tem sido muito discutidos nos últimos anos, como o Urbanismo Tático (Tactical Urbanism), os Experimentos de Rua (Street Experiments), a Cidade de 15 minutos (15-Minute City) e o Fazer lugar/Criação de lugares (Placemaking). Para uma explicação mais detalhada dos conceitos, e para a referência dos estudos citados aqui, o leitor pode consultar minha dissertação, disponível no repositório online da Universidade do Porto.
A Reparação de Cruzamentos busca requalificar os cruzamentos nas ruas de uma vizinhança, transformando-os em espaços comunitários. Como o nome indica, essa iniciativa costuma ser aplicada na escala da rua e do quarteirão, e seu foco é melhorar a sinalização e delimitação do espaço nos cruzamentos. A ação visa oferecer um espaço seguro para pedestres e ciclistas, e reduzir ao menos uma parte dos acidentes de trânsito. No Brasil, esses acidentes provocam quase 40 mil óbitos por ano, 20% deles de pedestres.
As ações geralmente usam materiais de baixo custo e aplicação rápida, como pinturas coloridas que identificam a quem pertence cada área. O alargamento do passeio público, a melhora do raio de giro e a pintura de ciclofaixas são exemplos de ações possíveis e recorrentes nessa iniciativa. Os impactos positivos são sentidos quase que instantaneamente. Como as ações interferem na sinalização do trânsito e na pintura do espaço público, é necessário entrar em contato com as autoridades. Na verdade, ações como essas devem estar na agenda de políticas urbanas dos municípios.
Além de implementar, é necessário monitorar e avaliar tais ações, para melhorar, corrigir, conhecer e divulgar os impactos das iniciativas. Após uma Reparação de Cruzamento realizada em Portland, EUA, 32% dos pedestres interagiram com outras pessoas e/ou com o lugar que recebeu a ação, contra 7% nas zonas urbanas que não receberam a iniciativa. Os resultados ainda apontam que 30% dos entrevistados perceberam um aumento nas interações sociais.
Quanto ao bem-estar, 65% dos entrevistados avaliaram o quarteirão como excelente e 53% como melhor do que antes, com 13% atestando um aumento do sentido de lugar. Entre as tensões, 7% dos entrevistados mencionaram preocupações com aspectos estéticos dos experimentos, e 4% sobre negociação/concordância com outros participantes.
Esta iniciativa foi criada e nomeada em virtude do projeto realizado na Times Square, em Nova York, que serviu como referência para a criação do conceito Urbanismo Tático, por meio da expressão “intervenções táticas”. Esse caso mostrou a importância da participação e dos recursos dos departamentos e instituições de planejamento urbano local. O De Pavimentos para Praças reivindica o uso de espaços subutilizados, geralmente exclusivos de veículos automotores.
Para que se abra espaço para constituir uma nova praça, as faixas de rodagem são desafiadas, podendo ser fechadas/bloqueadas parcial ou totalmente durante a ocorrência da atividade. Assim como na Reparação de Cruzamentos, é essencial a aprovação, submissão de formulários e licenças, a depender das regulamentações do contexto, para que o experimento seja viável.
Além de recuperar espaço para que as pessoas transitem e permaneçam, o encerramento de uma via de automóveis, se bem gerenciado, pode auxiliar a gestão de tráfego, reorganizando e reduzindo o fluxo motorizado, como ocorreu em parte da Broadway, em Nova York.
Uma praça não precisa ser um espaço grandioso como a Praça do Comércio em Lisboa ou a Praça de São Pedro no Vaticano. Desde que haja uma separação adequada, segurança e um mobiliário para sentar-se, ler e permanecer, o objetivo é atingido.
Um estudo realizado na Times Square apresentou resultados interessantes. Em 2015, com a dedicação total de uma das vias à mobilidade ativa, houve um aumento de 11% no tráfego de pedestres e registrou-se mais pessoas pedalando.
No transporte público, houve ganhos de velocidade dos ônibus e crescimento do número de passageiros. As medidas não prejudicaram o fluxo de tráfego de automóveis particulares, e passageiros e motoristas relataram maior sensação de segurança (63%) comparado ao mesmo lugar antes das melhorias. Ainda no quesito segurança, houve 35% menos pedestres feridos em acidentes.
Os comerciantes relataram um aumento nas vendas de varejo, maior ocupação de pontos comerciais, e que a maioria dos clientes chega às lojas a pé. As tensões e desafios giram em torno da melhor gestão entre os utilizadores do espaço, comerciantes e governo local.
Essa iniciativa reconhece o papel crucial da atividade física na saúde mental, emocional e física das pessoas. E da falta dela, associada à obesidade e doenças crônicas. A pandemia deixou claro como faltam praças, parques, espaços abertos adaptados e convidativos para se exercitar e brincar em nossas cidades. Em tempos em que as pessoas estão morando cada vez mais em centros urbanos, em apartamentos menores, e debatendo sobre proximidade, acessibilidade e cidades de 15 minutos, parece ser ideal que as cidades proporcionem mais parques, jardins e praças.
Os instrumentos urbanísticos são cruciais, mas é preciso reconhecer que o setor público tem diversas limitações, principalmente quando grande parte dos espaços urbanos (lotes) são de propriedade privada. Além disso, a gestão de espaços públicos custa caro e demanda um bom gerenciamento pessoal, técnico e financeiro. É por isso que as Ruas de Brincar, assim como o De Pavimentos para Praças, surgem como opções viáveis, flexíveis, experimentais e financeiramente interessantes.
Documentos como o Tactical Urbanism: Volume 2 declaram que a medida tem como objetivo “criar espaços seguros para as pessoas de todas as idades poderem socializar e serem ativas”. De fato, as ruas, especialmente as faixas de rodagem, já foram muito mais pacíficas, com menos fluxo de veículos automotores, e utilizadas para fins recreativos e de lazer.
Fechando a rua aos veículos motorizados, esta iniciativa busca oferecer uma área segura, acessível e apropriada, principalmente para a realização de atividades físicas e de lazer. Em resumo, ser um “jardim comunitário”. Desde 1998, a cidade de Ghent, na Bélgica, utiliza desse conceito para o fechamento de determinadas ruas no período de férias escolares, em uma parceria entre o setor público e a comunidade local.
Há responsáveis e voluntários encarregados da organização, enquanto o município responsabiliza-se pelo mobiliário e permissões legais. Em julho de 2018, a cidade de Bristol, Inglaterra, registrou mais de 660 ruas fazendo uso legal dessa medida.
Um estudo com foco na atividade física comparou a iniciativa Ruas de Brincar com outra área de controle semelhante em San Francisco, EUA. O estudo relatou que 35% das pessoas fizeram atividades físicas consideradas “vigorosas”, ou de alta intensidade durante a iniciativa, contra 11,5% na rua de controle. Em Ghent, a atividade considerada “moderada-vigorosa” aumentou de 27 para 36 minutos por dia durante a iniciativa. Já na Inglaterra, 43% dos pais entrevistados atestaram que as crianças ficariam dentro de casa sem o experimento.
Em Santiago, Chile, o trânsito e o medo de estranhos eram fatores vitais para os pais evitarem que seus filhos brincassem ao ar livre. A presença de outras crianças foi o principal motivo para os pais permitirem que as crianças brincassem ao ar livre.
Em um bairro da cidade de Northampton, na Inglaterra, 61% dos entrevistados afirmaram que as Ruas de Brincar, através do projeto “The Hantown Street Play”, foram uma oportunidade para fazer novos amigos, 56% para se sentir parte da comunidade, e 28% para os vizinhos se conhecerem melhor. Reclamações quanto ao ruído e a necessidade de desvios por parte de motoristas representam as tensões, desafios e barreiras mais comuns dessa iniciativa.
A última medida selecionada é a que requer mais área da cidade. Além disso, é a mais complexa em termos legais, e impacta os canais de trânsito habituais em virtude da escala da implementação. Evidentemente, as Ruas Abertas variam de cidade para cidade conforme o tecido urbano, mas os objetivos principais são “providenciar temporariamente espaços seguros para andar a pé, de bicicleta, de skate e desenvolver atividades sociais; promover o desenvolvimento da economia local; aumentar a atenção sobre os efeitos negativos do automóvel na vida urbana”.
Como o próprio nome diz, o alvo novamente são as ruas, neste caso, abertas e livres para pedestres e usuários de mobilidade ativa. Neste caso, a extensão e a área são fatores importantes para a dinâmica proposta. É aconselhável a abertura de diversas ruas, mas também é comum a ocorrência em avenidas.
As ruas devem ser selecionadas com atenção para que haja uma rede, conexões e um bom fluxo. Geralmente, esses eventos ocorrem em fins de semana, onde o número de veículos e tráfego é menos intenso. As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, na Avenida Paulista e na Avenida Atlântica, são exemplos do que a iniciativa se propõe a fazer.
Em Bogotá, na Colômbia, essa iniciativa foi implementada pela primeira vez em 1974, sendo integrada mais tarde às políticas locais. A “Ciclovía”, como é conhecida, oferece 128 quilômetros de extensão aos participantes e o evento acontece em domingos e feriados, das 7 horas da manhã até às 2 horas da tarde.
Em Los Angeles, “CicLAvia”, foi iniciada em 2010, utiliza vias centrais da cidade e tem uma extensão de aproximadamente 10 quilômetros. O evento conta com food trucks, apresentações e exposições culturais. San Diego iniciou suas atividades em 2013, com o lançamento do evento “CicloSDias”.
A iniciativa dispôs de uma rota de oito quilômetros, que cruzou quatro bairros diferentes em termos de composição étnica e racial e status socioeconômico.Estudos atestam os benefícios da iniciativa em diferentes âmbitos.
Em Los Angeles, EUA, 45% dos entrevistados contam que estariam sedentários se a medida não ocorresse, e 81% dos participantes relataram que foram de bicicleta até a Rua Aberta. Em Bogotá, Colômbia, aproximadamente 60% dos participantes cumpriram a recomendação de tempo básica em termos de exercícios físicos e de lazer.
Em San Diego, EUA, 144 minutos foi a média do tempo da atividade física feita pelos participantes, 97% cumpriram a recomendação de 30 minutos por dia, e 39%, atenderam a meta de pelo menos 150 minutos por semana.
Em Chicago, EUA, 15% dos participantes disseram que o principal benefício do evento foi o contato com outras comunidades, enquanto em San Francisco, foi se divertir com a família e amigos. Em San Diego, comparado a um típico domingo sem a ocorrência do evento, 50% dos comerciantes adjacentes ao trajeto relataram impactos neutros ou positivos, enquanto 50% consideraram negativo.
Sob outra perspectiva, 80% dos participantes entrevistados afirmaram terem comprado comida ou bebida durante o evento. A disseminação, publicidade e financiamento do evento, assim como a falta de apoio do governo local e melhor coordenação são desafios relatados em diversas Ruas Abertas dos EUA.
Apresentamos quatro iniciativas de ativação do espaço público relativamente viáveis de serem implementadas, seguidas de resultados científicos que comprovam os benefícios da aplicação, bem como tensões e desafios. Embora essas iniciativas partam da comunidade, é preciso estar atento às normas legais e aos recursos do governo local.
A integração, a participação e a definição de responsabilidades entre os interessados são cruciais para que a iniciativa saia do papel e dê certo. Os moradores são experts na identificação dos problemas e ao mesmo tempo das oportunidades em determinados contextos. Essa colaboração já demonstrou que um “simples” experimento pode resultar em programas nacionais, e na melhora da qualidade de vida dos cidadãos.
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