Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Será que estas zonas estão atendendo sua intenção? Será que têm surgido edifícios que abriguem diversos usos, tais como comércio, serviços e habitação?
10 de junho de 2019Na última década, na cidade do Rio de Janeiro, temos visto o aparecimento, no Planejamento Urbano, de Zonas de Uso Misto (ZUM), onde são permitidos edificações com diversos usos em um mesmo lote. Isso, em tese, viria ao encontro das questões sobre vitalidade urbana e diversidade de usos, tais como pregados por Jane Jacobs e Jan Gehl. Mas será que estas zonas estão atendendo sua intenção? Será que têm surgido edifícios que abriguem diversos usos, tais como comércio, serviços e habitação? Neste artigo vamos abordar este tema com foco, principalmente, no Projeto Porto Maravilha.
No final do século XIX, tínhamos na região central a população vivendo e trabalhando na mesma área, muitos comerciantes viviam na parte de cima de suas lojas e com a expansão da cidade inicia-se a separação entre trabalho e moradia. Esta separação se refletiu na legislação urbanística até a década de 1990 e tem como um dos maiores exemplos o plano piloto de Lucio Costa, em 1969, para a Baixada de Jacarepaguá, nele os usos são claramente monofuncionais.
Em meados do século XX, o aparecimento de edifícios com lojas no térreo e unidades residenciais nos pavimentos superiores marcou grande parte dos bairros cariocas. Mas isso ocorria onde a legislação previa os conhecidos Centros de Bairros (CBs), ruas em que era permitido comércio e residências num mesmo lote.
O bairro de Copacabana é o grande modelo desta legislação, ali se encontram ruas em CB1, CB2 e CB3, em que são permitidos desde loja mais edifício residencial até uso de comércio e serviços em toda edificação. Mas Copacabana foi além, hoje existem, mesmo ao largo da legislação, edifícios em que convivem unidades residenciais e de serviços num mesmo edifício e com uma entrada única e compartilhada, o que não é permitido nos novos ZUMs propostos na cidade, tais como a Lei 4125/2005, para o Engenhão, que em seu Artigo 12 diz que “será permitido mais de um tipo de uso numa mesma edificação ou lote, caracterizando o uso misto, desde que a parte comercial, de serviços ou industrial disponha de acesso independente da parte residencial e seja voltada para logradouro público”.
Mas o que isto tem com a área do Porto? Acreditamos que no imaginário do planejador, ao adotar o uso misto nas novas legislações ele previa como cenário algo como Copacabana. E por qual motivo só vemos edifícios corporativos? Mesmo com a determinação de uma grande área de uso misto na Lei Complementar 101 de 2009 descrita nos artigos 13 e 17, isso não se refletiu na região, o que temos é o surgimento de edifícios corporativos e hotéis, sem nenhum grande empreendimento com uso misto incluindo habitação.
O que acontece, em linhas gerais, é que com o valor a ser pago por terrenos e CEPACs (Certificados de Potencial Adicional de Construção) que permite a edificação com um adensamento maior do que o índice básico, a engenharia financeira aponta para que se construa uma edificação com o uso mais rentável e com maior Valor Geral de Vendas (VGV) agregado a ele. Até o momento, na região do Porto, o uso residencial não se apresentou como viável sendo um dos motivos para o não surgimento deste.
O mesmo fato, mas de maneira inversa, aconteceu com a área do Recreio, zona oeste, atingidas pelo PEU Vargens, Lei Complementar 104 de 2009, as quadras que não tem testada para a Avenida das Américas foram ocupadas, em grande maioria, por condomínios residenciais, mesmo tendo sua área determinada com o uso misto. Ainda que os condomínios careçam de pequenos comércios próximos isto, não foi uma opção dos empreendedores.
Mas o que pode ser feito para garantir o uso misto na cidade? Bom, aqui trazemos para discussão uma sugestão, acreditamos que o zoneamento feito em grandes manchas não traz diversidade de usos, como visto nos exemplos acima, portanto o uso deve ser monofuncional e por lote, o que deve ser de uso misto não é o lote e sim a quadra — não se excluindo a possibilidade de um dos lotes ter o uso misto tal como o de Copacabana. Com a quadra contendo diversos usos em seus lotes temos o uso misto dado pela diversidade de usos monofuncionais e, com isso, o lote passa a ter um valor compatível com seu uso, permitindo assim a viabilidade da construção de todos os lotes. Este modelo poderia se repetir por quadras também, mas esta proposta não pode ser dissociada de uma Gestão Urbana que acompanhe o andamento da ocupação e possa reavaliar e dar novos caminhos para a ocupação.
Texto publicado originalmente em DCArquitetura em 20 de maio de 2019.
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COMENTÁRIOS
Eu penso que com os usos multifuncionais em uma quadra seria interessante também se projetar uma variedade de gabaritos e diversas taxas debocupacao na mesma quadra , o que daria uma diversidade morfológica interessante
então neste caso teríamos que fazer um “zoneamento” por lote, indicando se no lote poderia ser residencial e no outro comercial? Se for isso, até acredito que os resultados poderiam ser interessantes mas a especulação por parte de proprietários de terrenos e construtoras inviabilizaria tal discussão. Não?