Quem planeja? O planejamento descentralizado de Jane Jacobs
Imagem: Phil Stanziola/Wikimedia.

Quem planeja? O planejamento descentralizado de Jane Jacobs

Cidades são lugares fantasticamente dinâmicos, fato que se aplica às regiões bem-sucedidas, oferecendo terreno fértil para os planos de milhares de pessoas.

15 de março de 2016

As cidades são lugares fantasticamente dinâmicos, fato que se aplica às suas regiões bem-sucedidas, as quais oferecem terreno fértil para os planos de milhares de pessoas.

Por grande parte da história desta disciplina, proeminentes teóricos do planejamento urbano tomaram como certo que as cidades requerem um planejamento central detalhado. Com a questão central sendo “planejar ou não planejar”, estudantes e profissionais da área respondem com um enfático “sim”, subsequentemente buscando impor sua ordem particular ideal no que, em geral, se considera, nas palavras de Lewis Mumford, “caos solidificado”. Seja por meio da centralização controlada de Le Corbusier ou da descentralização controlada de Ebenezer Howard e Frank Lloyd Wright, as cidades deveriam ser, pura e simplesmente, “controladas”. Quando, em 1961, Jane Jacobs propôs-se a atacar a tradição ortodoxa do planejamento urbano, foi exatamente contra esse dogma que ela focou sua ofensiva. Com sua simplicidade caracteristicamente enganosa, ela nos convida a questionar: quem planeja?

Enquanto muitos consideram que a contribuição essencial de Jacobs esteja em seus insights sobre desenho urbano, sua subversão começa em nível teórico na introdução de “Morte e Vida das Grandes Cidades”. Apesar de suas distintas preferências estéticas, Corbusier e Howard têm muito em comum. Ambos assumem que o planejamento implica um plano único e a supressão de todos os outros planos individuais. Ambos insistem em impor uma “ordem simulada” sobre a “ordem real”, tratando a cidade como uma máquina em vez de uma manifestação de complexidade organizada. Tal como o “homem do sistema” de Adam Smith, cada pensador estaria “tão enamorado da suposta beleza de seu próprio plano ideal de governo que não consegue suportar o menor desvio de qualquer parte dele”.

A crítica de Jane Jacobs a essa tradição ortodoxa desenrola-se em três passos, acompanhando de perto o argumento de F.A. Hayek em The Use of Knowledge in Society. Primeiro, Jacobs enfatiza a importância do conhecimento local. Onde os planejadores urbanos ortodoxos assumem que a informação essencial no planejamento de decisões pode ser obtida por meio de princípios abstratos e agregados estatísticos, Jacobs argumenta em defesa do conhecimento local, do homem comum. Considere o caso do East Harlem project, um projeto de moradia planejado centralmente com torres a la Corbusier e grandes gramados: funcionários do setor de habitação analisaram o projeto de um ponto de vista estético e estatístico e amaram a ideia. Os moradores locais, todavia, odiaram-no; o projeto os segregava de suas comunidades, os separava dos centros comerciais, restando a eles um gramado grande e sem uso. Ao longo do livro, Jacobs descreve situações similares em que as necessidades e as preferências dos residentes locais confrontaram-se diretamente com as dos planejadores centrais, com a resolução do conflito pendendo frequentemente em favor dos “especialistas”.

Projeto de East Harlem, planejamento centralizado em Nova York. (Imagem: Jim Henderson/Wikimedia)

Segundo, Jacobs sabia que um planejamento descentralizado era a melhor forma de aproveitar ao máximo o conhecimento local. Os residentes locais costumam ter o conhecimento necessário para tomar decisões sábias sobre a forma urbana. Como Jacobs detalha ao longo de sua obra, o melhor curso de ação para o planejamento urbano é tipicamente permitir que os indivíduos se planejem por si próprios. Como Hayek enquadrou o problema do planejamento econômico, a questão não deveria ser planejar ou não planejar, mas sim quem deveria planejar. Colocando de uma forma diferente, nós poderíamos distinguir entre planejamento centralizado e descentralizado. Sob um regime de planejamento central, um grupo individual ou pequeno tomam decisões em nome de todos, não importando qual tipo de conhecimento único ou local possam ter. Nós vemos tal fato
atualmente nas cidades: todos devem respeitar os afastamentos. Todo restaurante deve oferecer estacionamento grátis. Por outro lado, o planejamento descentralizado permite que os indivíduos criem seus próprios planos e tirem proveito de suas preferências e conhecimento local. Onde eu gostaria de viver? Como eu gostaria de interagir com vizinhos e negócios locais?

Finalmente, Jacobs explicou como o planejamento descentralizado ajuda a criar e manter as ordens espontâneas que tornam a vida urbana possível. Muitas das belas passagens da obra “Morte e Vida” tratam da ordem natural que emerge do planejamento descentralizado: o balé das calçadas que ajuda a manter as ruas seguras e a socializar as crianças, diversos usos residenciais e comerciais, e comunidades autogovernadas. Essas ordens espontâneas são, nas palavras do filósofo escocês Adam Ferguson, “o resultado da ação humana, mas não a execução de qualquer projeto humano”. Ao permitir aos indivíduos organizarem-se livremente, as ordens urbanas naturais emergem sem qualquer planejamento central. Certamente, não é o caso de que todo o tipo de planejamento descentralizado resulta em tais ordens. Mas como Jacobs destaca: o planejamento urbano centralizado, como existe hoje, prejudica mais que ajuda no sucesso das cidades.

Não obstante, com todo o amor que Jane Jacobs recebeu dos planejadores urbanos e legisladores desde a publicação de seu primeiro livro, sua maior inovação teórica parece ter sido amplamente ignorada. As cidades ao redor do país continuam a centralizar os pormenores do planejamento da vida urbana, de regulamentações obsessivamente detalhadas sobre o uso do solo a planos impossivelmente ambiciosos e abrangentes. Mesmo muitos daqueles que têm abraçado as visões de Jacobs sobre desenho urbano descartaram suas teorias subjacentes, utilizando planos rígidos, de cima para baixo, para criar incômodas e imutáveis imitações de cidades e vizinhanças naturais.


Mesmo muitos daqueles que têm abraçado as visões de Jacobs sobre desenho urbano descartaram suas teorias subjacentes, utilizando planos rígidos, de cima para baixo, para criar incômodas e imutáveis imitações de cidades e vizinhanças naturais.


Nada disso deveria significar que não existe lugar para o planejamento central. Jane Jacobs, assim como F.A. Hayek, parece estar aberta ao planejamento urbano centralizado em algumas situações. No entanto, o foco deveria permanecer na preservação de uma ampla esfera em que os residentes urbanos conservem o direito de se engajar em seu próprio planejamento. Uma transição para um planejamento urbano jacobsiano/hayekiano poderia ocorrer de pelo menos duas formas.

Primeiro, os planejadores urbanos deveriam focar no tipo de falha de mercado exclusivamente importante para a vida urbana: externalidades. Se isso envolve criar uma estrutura por meio da qual vizinhos se engajem em um tipo de negociação coasiana ou na instituição de amplas proibições com respeito a certas atividades prejudiciais depende das condições locais. Está claro que o atual planejamento urbano centralizado vai muito, muito além disso.

Segundo, onde algum nível de planejamento central é necessário, os planos deveriam aumentar ao invés de minar a escolha. Considere a beleza da malha viária de Nova York: planejada com capacidade de previsão em 1811, o grid serviu como um espaço livre para desenvolvimento, com ruas acessíveis e blocos adaptáveis. Onde grandes planos deste tipo são necessários, os planejadores deveriam enfatizar a flexibilidade de modo a apoiar o dinamismo do planejamento descentralizado. Onde não são necessários, deveriam focar na tentativa-e-erro do planejamento descentralizado. Jacobs defende essa posição quando ela argumenta por incorporar unidades de moradia individual subsidiada em vizinhanças já funcionais em vez de derrubar e substituir vizinhanças inteiras. Embora uma construção individual possa falhar, seu fracasso não seria de perto tão catastrófica quanto o fracasso de um grande projeto habitacional. Entretanto, um pequeno sucesso pode ser estudado, replicado e aplicado em escala quando apropriado.

Como Hayek fez no caso da economia, Jacobs resistiu à ortodoxia do planejamento urbano que desfrutava do apoio de legisladores, acadêmicos e todas as “pessoas muito sérias”. Ela celebrou a sabedoria do cidadão comum quando os especialistas relevantes encontravam respostas somente em agregados estatísticos e cálculos econômicos. Hayek e Jacobs defendiam a importância do conhecimento local, ilustraram o poder do planejamento descentralizado, e celebraram as ordens espontâneas sublimes que organizam nossas vidas. Ainda assim, suas inovações teóricas passaram despercebidas mesmo tempos depois de suas respectivas publicações. Aqui os dois pensadores divergem: enquanto as ideias hayekianas amplamente conduziram o planejamento econômico central à lixeira da história, eu suspeito que a revolução urbana jacobsiana tenha apenas começado.


Este artigo foi originalmente publicado no site Market Urbanism em 21 de fevereiro de 2016. Foi traduzido por Matheus Pacini, revisado por Lucas Magalhães e publicado neste site com a autorização do autor.

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