O que o Parque Ibirapuera em São Paulo tem a ver com o Nobel de Economia?
Na perspectiva do desenvolvimento econômico, vemos que alguns aspectos da configuração urbana de São Paulo são excludentes.
Confira a entrevista exclusiva de Victor Carvalho Pinto para o Geocracia.
23 de maio de 2022Para o advogado especialista em Direito Urbanístico e consultor legislativo do Senado Federal Victor Carvalho Pinto, mais importante que financiar obras municipais seria apoiar a modernização das administrações das cidades e estados, o chamado “desenvolvimento institucional”. Em entrevista exclusiva ao Geocracia, Carvalho Pinto, que é Coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, não se diz preocupado com o fim do Ministério das Cidades, já que o orçamento federal, a Caixa Econômica Federal e o BNDES destinam recursos a fundo perdido para muitas obras municipais.
Mas, no seu entender, apenas obras devidamente projetadas e planejadas deveriam receber recursos. “Uma obra em região metropolitana, por exemplo, jamais deveria ser beneficiada sem que a estrutura de governança interfederativa estivesse funcionando e o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI), que é obrigatório, estivesse aprovado […] Sistemas de tecnologia da informação para o planejamento e a gestão urbana, incluindo cartografia e cadastro imobiliário, por exemplo, têm que existir antes que se possa falar em obras específicas”, defende o advogado, que lista diversos projetos em tramitação no Legislativo sobre cidades inteligentes que devem ser acompanhados pela sociedade.
Leia a seguir a entrevista na íntegra.
Carlos: Vieira: Com o fim do Ministério das Cidades, podemos afirmar que existem instrumentos federais para fomentar o desenvolvimento urbano? Se sim, quais seriam eles?
Victor Carvalho Pinto: O antigo Ministério das Cidades foi incorporado ao atual Ministério do Desenvolvimento Regional. Não tenho conhecimento de nenhum prejuízo advindo dessa medida.
A União não faz política urbana diretamente, mas tem uma influência indireta muito grande.
Do ponto de vista legislativo, as “normas gerais”, que definem o sistema de planejamento e seus instrumentos, são federais. Hoje, o quadro é fragmentado, com o Estatuto da Cidade como lei principal e leis específicas sobre parcelamento do solo, regiões metropolitanas, regularização fundiária e desapropriações, além de outras sobre políticas setoriais com importante rebatimento urbano, como tributação, saneamento básico, distribuição de energia elétrica, meio ambiente, defesa civil, mobilidade, logística e telecomunicações. Há muitos conflitos e lacunas entre essas leis que precisariam ser corrigidos.
Do ponto de vista administrativo, o orçamento federal destina recursos a fundo perdido para muitas obras municipais, a Caixa Econômica Federal administra o FGTS e o BNDES apoia a estruturação de concessões e PPPs. Seria muito importante que, por meio de condicionalidades, somente obras devidamente projetadas e planejadas recebessem recursos. Uma obra em região metropolitana, por exemplo, jamais deveria ser beneficiada sem que a estrutura de governança interfederativa estivesse funcionando e o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI), que é obrigatório, estivesse aprovado.
Mais importante que financiar obras seria financiar a modernização das administrações municipais e estaduais, o que em geral se chama de “desenvolvimento institucional”. Sistemas de tecnologia da informação para o planejamento e a gestão urbana, incluindo cartografia e cadastro imobiliário, por exemplo, têm que existir antes que se possa falar em obras específicas.
Carlos Vieira: Quais os principais projetos de lei que a população deve observar sobre o desenvolvimento das cidades e a gestão de seus dados, para que tenhamos de fato “cidades inteligentes”?
Victor Carvalho Pinto: Há projetos importantes sobre o sistema de planejamento urbano, a intervenção em áreas degradadas, o parcelamento do solo, o tratamento de assentamentos informais e as cidades inteligentes.
O PL 5.680/2019 tipifica os planos urbanísticos, organizando todo o sistema de planejamento em torno de quatro planos: o plano de desenvolvimento urbano integrado, o plano diretor, o plano de urbanização e o plano de pormenor. Cada plano seria regulamentado pelo Poder Executivo quanto ao seu conteúdo material e forma de apresentação. O modelo é inspirado no direito português.
O PL 5.621/2020 disciplina o princípio da justa distribuição de benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização. Entre outras medidas, permite que as prefeituras recebam lotes para habitação social como ônus urbanísticos em novos loteamentos.
O PL 5.831/2019 fortalece o poder dos municípios no combate aos loteamentos clandestinos. Exige que a distribuição de água e energia somente ocorra se houver interesse do município na regularização. Havendo esse interesse, autoriza a requisição do imóvel e a execução das obras pelo município, com ressarcimento das despesas pela responsável.
O PL 6.905/2017 cria um regime jurídico específico de desapropriação para reparcelamento do solo, ou seja, para projetos que façam uma reconfiguração dos lotes e logradouros existentes. Para incentivar desapropriações amigáveis, permite que se ofereça um preço superior ao valor venal do imóvel e que este seja substituído por outro, a ser produzido no empreendimento, ou por participação do capital de SPE criada para executar a operação.
O PL 5.134/2019 disciplina a concessão de obra pública, que é aquela financiada apenas por receitas não tarifárias, como locação ou alienação de imóveis, publicidade e contribuição de melhoria.
O PL 976/2021 institui a Política Nacional de Cidades Inteligentes (PNCI).
Entre os projetos sobre outros temas, mas que impactam o desenvolvimento urbano, eu destacaria dois: O PL 2.159, de 2021, sobre o licenciamento ambiental, que prevê hipóteses de integração com o licenciamento urbanístico, e a PEC 110/2019, da reforma tributária, que suprime a necessidade de aprovação da planta de valores do IPTU pela câmara municipal.
É importante destacar também que a recente Lei das Ferrovias tem um capítulo específico sobre as operações urbanísticas voltado para o aproveitamento do entorno das estações. Ela alterou o Decreto-Lei das Desapropriações para fortalecer a desapropriação urbanística e o Estatuto da Cidade para permitir a constituição de direito de laje ou de superfície sobre as linhas férreas e os pátios de estacionamento.
Carlos Vieira: Existem muitos desafios federativos nas cidades, seja na gestão dos postes federais das distribuidoras de eletricidade, fibras óticas ou mesmo sistemas de saneamento estaduais. Como melhorar o diálogo interfederativo para aprimorar a governança municipal?
Victor Carvalho Pinto: A meu ver, precisamos de um modelo institucional para a gestão integrada dessas redes e equipamentos setoriais, seja no subsolo, seja na superfície. Como a maior parte das redes acompanha o sistema viário, eu o incluiria nesse modelo institucional, principalmente no que diz respeito à conservação das calçadas. Temos que estudar como isso é feito em outros países, mas imagino um sistema em que um único agente econômico seria responsável por construir e gerenciar infraestruturas compartilhadas por diversas concessionárias, como galerias subterrâneas, antenas e postes. Esse agente alugaria essas infraestruturas para as concessionárias, com uma regulação técnica e econômica que evite interferências negativas entre os serviços e impeça abuso de poder econômico. Tendo em vista que há serviços públicos federais (energia e telecomunicações), estaduais (gás canalizado), metropolitanos (água e esgoto) e municipais (drenagem e iluminação pública) envolvidos, entendo que esse modelo institucional deveria ser estabelecido por lei federal.
A Carta Brasileira das Cidades Inteligentes incluiu esse assunto na Recomendação 2.6.1: “Instituir como serviço público independente a gestão do subsolo, do solo, do mobiliário urbano e do espaço aéreo, com vistas à sua ocupação compartilhada pelas empresas e órgãos responsáveis pelos serviços públicos e privados que demandam sua utilização”.
Creio que o Ministério do Desenvolvimento Regional poderia constituir um grupo de trabalho a respeito e pedir o apoio de organismos de cooperação internacional para consultoria e troca de experiências.
Carlos Vieira: O que será a função social da propriedade neste contexto?
Victor Carvalho Pinto: Como país de dimensões continentais, certamente haverá, por muitos anos, uma gama muito diversa de situações no território brasileiro: áreas de fronteira, com expansão urbana horizontal, cidades médias em processo de verticalização e metrópoles com centros históricos degradados, por exemplo.
A função social da propriedade, pela Constituição Federal, é definida pelo plano diretor e difere de terreno para terreno. Não existe uma função social genérica para todos os casos. Há imóveis que não devem ser urbanizados; outros que devem ser urbanizados e edificados; outros que devem ser conservados e retrofitados. Cabe ao plano diretor qualificar o território, identificando cada situação.
Ao mesmo tempo, tenho visto planos diretores, leis de zoneamento e códigos de obras excessivamente detalhistas, impondo regras muito rígidas, seja quanto aos padrões urbanísticos e edilícios das edificações, seja quanto aos usos admitidos. Em um cenário de rápidas mudanças demográficas e tecnológicas, essas normas ficam desatualizadas em poucos anos e acabam por impedir um aproveitamento do imóvel que interesse ao mercado. Creio que isso seja um fator importante para explicar a ociosidade e mesmo o abandono de muitas edificações.
Um exemplo recente são os edifícios de escritórios, que ficaram ociosos durante a pandemia e talvez possam ser melhor aproveitados para o uso residencial. A regulação urbanística tem que ser flexível o suficiente para permitir que isso seja feito sem maiores restrições.
Temos que consolidar e simplificar drasticamente essas regras, de modo a permitir que as edificações possam ser aproveitadas para diversos usos, conforme a necessidade. Na maioria dos municípios, é preciso uma alteração do plano diretor, com todas as exigências de fundamentação e consulta pública, para resolver problemas simples, derivados dessas normas excessivamente detalhistas.
Entrevista publicada originalmente em Geocracia em maio de 2022.
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