Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Rios canalizados, má urbanização, solo impermeabilizado, chuvas mais intensas... Por que as cidades brasileiras sofrem tanto com as enchentes e como resolver este problema sem restringir seu desenvolvimento?
17 de fevereiro de 2020Nos últimos dias uma série de matérias e artigos diagnosticou corretamente o motivo das enchentes recentes nas capitais Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre, assim como em cidades menores como Iconha, no Espírito Santo. O principal motivo para estes desastres foi a urbanização das nossas cidades — tanto planejada quanto não planejada —, que reforçou os potenciais danos causados.
Em primeiro lugar, rios que naturalmente recebem águas pluviais foram canalizados e, em muitos casos, cobertos com vias de tráfego de veículos. As políticas rodoviaristas e desenvolvimentistas do passado — e que ainda perduram em muitas cidades brasileiras — ignoraram o impacto do desenvolvimento urbano na natureza e vice-versa. Assim, no momento em que estas canaletas transbordaram, muitas vias colapsaram e voltaram a ser rios, levando tudo o que encontraram em seu caminho.
Há ainda agravantes desse problema. O solo impermeabilizado, tanto dos espaços públicos como dos terrenos privados, diminui a absorção do solo urbano, aumentando a retenção de água na superfície e acelerando a velocidade do fluxo da água em direção às áreas alagadiças.
Áreas em beiras de rios ou naturalmente alagadiças foram ocupadas irregularmente por favelas e também loteamentos urbanos formais que foram aprovados sem a devida cautela. Estes espaços não apenas se tornam mais vulneráveis como também contribuem para o processo, prejudicando a eficiência das áreas de absorção e de canalização.
A falta de serviços adequados de coleta de lixo e de limpeza urbana ainda entope bocas de lobo e os sistemas de esgotamento pluvial, prejudicando a já parca infraestrutura de escoamento de águas implementada pelas cidades.
Aliado aos problemas da própria urbanização, a intensificação das chuvas é possivelmente um processo sem volta — um cenário novo para o qual cidades terão que se adaptar.
Para mitigar os desastres, uma série de soluções tem sido propostas, mas às vezes tratando a própria cidade como um problema a ser superado, buscando a limitação do seu crescimento sob vários formatos. O Movimento Defenda São Paulo intercede, por exemplo, em favor da manutenção das restrições ao adensamento construtivo e populacional nas regiões centrais da cidade, assim como a limitação da altura das edificações, confundindo o processo de urbanização que seguimos com a urbanidade em si.
A densidade construtiva e habitacional, que também pode ser restrita pelos limites de altura de edificações, tem o poder de diminuir custos de infraestrutura, aumentar a acessibilidade à moradia e, ao aglomerar pessoas em um menor espaço, reduzir o impacto sobre áreas verdes de risco. Edifícios apenas replicam a superfície dos terrenos na sua cobertura e, quanto maior seu tamanho, maiores os ganhos de escala para eventualmente implementar suas próprias bacias de contenção. Ou seja, ao contrário do que é defendido, a mudança de zoneamento para permitir a verticalização e o adensamento no miolo dos bairros pode melhorar nossa condição urbana, não piorá-la.
O urbanista Nabil Bonduki, em artigo para a Folha, também defende entre as medidas a serem implementadas a “contenção rigorosa da expansão horizontal da área urbanizada, fortalecendo a zona rural”. A posição, apesar de ser em direção contrária ao Defenda São Paulo, dado que se contermos a cidade horizontalmente ela só poderá crescer para cima ou preenchendo seus vazios existentes, também tenta direcionar a mitigação do fenômeno urbano em si, e também pode ter consequências negativas para a cidade.
Ao conter o crescimento vertical ou em regiões centrais como sugerido pelo Defenda, a população que lá estaria não desaparece, mas se espraia nas periferias em um efeito em cascata de distanciamento das regiões mais demandadas. Este espalhamento horizontal gera enormes custos de infraestrutura e uma pressão para ocupar áreas verdes que deveriam ser respeitadas. Ao mesmo tempo, a tentativa de contenção horizontal também pode ter consequências negativas e, às vezes, ficar mesmo na mera tentativa. Solly Angel, em seu livro “Planet of Cities“, mostra as evidências de como as estratégias de contenção urbana aumentam significativamente os preços de terra e de moradia. Ainda, em maioria dos casos, elas não atingem seu objetivo dada a quase impossibilidade de restringir a ocupação urbana que ocorre de forma espontânea. Angel mostra que é comum em cidades que tentam implementar esta estratégia a existência de áreas preservadas em suas periferias apenas para ter a mancha urbana continuando além destas áreas reservadas, em regiões ainda mais distantes. Solly mostra como a cidade não é um ambiente que podemos simplesmente fechar a porta para decidir quem entra e sai, tendo um comportamento extremamente dinâmico. Assim, as soluções para mitigarmos o efeito das enchentes não devem tentar inviabilizar a própria cidade, mas apoiá-la em um desenvolvimento sustentável.
O exemplo de Tóquio é interessante por ser uma cidade que cresceu a partir de uma urbanização tanto formal quanto informal, em larga escala e sobre conjuntos de rios. Historicamente o Japão investe intensivamente em sua infraestrutura urbana e segue reconstruindo a sua malha de drenagem, assim como construindo novas imensas galerias subterrâneas de captação de água.
As “lições de Tóquio” do Fórum Global da Água de 2018 não citam a restrição do seu crescimento urbano, mas sim diversas estratégias desde infraestrutura a rotas de evacuação e cuidados médicos em caso de desastres. A capital japonesa segue crescendo, construindo quase cinco vezes mais unidades de moradia que São Paulo e, para permitir tal crescimento, investindo em sua infraestrutura prevendo mais chuvas no futuro.
Alguns podem ignorar o exemplo japonês com a justificativa de que é um país rico. Porém, é preciso lembrar que nem sempre o Japão foi rico e que iniciou os investimentos em infraestrutura muitas décadas atrás, reconstruindo-se após a Segunda Guerra. No Brasil, não apenas muitas cidades enfrentam crises fiscais em parte resultado de um pacto federativo excessivamente centralizador, assim como investimentos fundamentais como saneamento e drenagem urbana são postergados dado que grande parte desse sistema é subterrâneo ou camuflado na paisagem urbana, com poucos incentivos políticos para direcionar recursos para estas áreas. Historicamente, obras visíveis e emblemáticas de rodovias, pontes e até estádios de futebol foram priorizadas, um destino ineficiente e, muitas vezes, como mostram as próprias ruas canalizadas, indevidas e até prejudiciais para nosso desenvolvimento urbano.
Evidentemente, a infraestrutura também não é feita só de grandes obras, mas de melhorias de microdrenagem, como calçadas, asfalto, canteiros e praças que melhoram a absorção da água. No caso brasileiro, também é necessário mapear comunidades que ocuparam irregularmente leitos de rios ou áreas alagadiças. Reassentar ou urbanizar estas áreas com infraestrutura adequada, dependendo do caso, é fundamental.
É por isso que reforçamos, sempre que possível aqui no Caos Planejado, a necessidade de métricas de gestão urbana para acompanhar a efetividade de uso de recursos e facilitar a priorização de investimentos de acordo com seu impacto na cidade. Estes objetivos devem ser analisados em conjunto e tratados de forma coordenada, evitando que, para atingir um objetivo específico, como a melhoria das condições de drenagem, comprometam outros objetivos essenciais como acessibilidade à moradia e investimentos em infraestrutura de mobilidade.
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COMENTÁRIOS
MUITO BOM!
Efetivamente os Arquitetos Urbanistas necessitam resgatar a autoridade como técnicos de cidades.
O inchaço das nossos territórios urbanos é muito consequência das nossas práticas de gestão.
Negar e proibir é o suficiente e, em muitas situações, proibir para se omitir.
Engessamos o plano regulador quando, entendo, o melhor seria induzir e monitorar um projeto de cidade e não de terreno, lote, gleba.
Tiramos valor econômico dos territórios ambientalmente frágeis e, como consequência, condenamos à informalidade e degradação.
MUITO TRISTE!
A construção dos anexos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre é um bom exemplo da ocupação de área lateral em detrimento de verticalidade. Pela limitação de altura permitida em construções na região, teve-se que ocupar uma vasta área que era de solo permeável por prédios e calçadas, diminuindo o fator de infiltração de água de chuva no solo local e aumentando o fluxo desta água em tubulações de água pluvial.
Obrigado pelo artigo! Sou arquiteto em Belo Horizonte. Questiono a percepção generalizada, tanto entre leigos quanto entre técnicos, de que a permeabilidade do solo tenha um impacto relevante no controle das enchentes urbanas. É uma ideia romântica e pouco de acordo com o que de fato ocorre num ciclo hidrológico natural, porque a velocidade de infiltração da água no solo é muito lenta para que a água de uma chuva torrencial possa ser absorvida pela área permeável – linhas de talvegue erodidas em montanhas são uma demonstração clara do que realmente ocorre na natureza, ou seja, a água correndo por cima e levando o que estiver na frente dela. É óbvio que prefiro mil vezes viver em uma cidade com altos coeficientes de áreas permeáveis, pois quanto maior for a área “verde” (coberturas, jardineiras, afastamentos etc.) mais agradável o aspecto urbano tenderá a ser, mas sob o ponto de vista técnico no que se fere ao controle de enchentes, não é algo efetivo, e penso ser um equívoco confiar nessa solução como sendo a panaceia que vem alimentando os debates sobre a questão. Acredito que captação seja a solução técnica adequada (e muito melhor se for captação não para lançamento na rede pública nas horas posteriores, como prevê a legislação, mas para uso) por ser mais efetiva e mais realista para um contexto urbano já consolidado.