Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Multa a pedestres e ciclistas já existe no Código de Trânsito Brasileiro desde 1997. Mas em 2019 os municípios deverão enfim iniciar a fiscalização.
19 de fevereiro de 2019Está prestes a ser regulamentada uma lei que pode transformar o ato mais simples da cidade — andar a pé — em algo impraticável.
A multa a pedestres e ciclistas já constava do Código de Trânsito Brasileiro, de 1997. Em 2017, o órgão responsável pela regulamentação das leis do trânsito, o Contran, emitiu uma resolução 706/17, anunciando que isso seria feito em 2019. A partir de agora, os municípios terão que anunciar suas medidas para cumprir a lei. Você pode ser multado se:
• Andar na rua
• Permanecer na rua
• Atravessar fora da faixa
• E outros casos, conforme os artigos 254 e 255 do CTB.
Ou seja, seremos todos multados. Você sai com o carrinho de bebê, mas a calçada está toda esburacada e você desce até a rua para conseguir andar. E é multada. Você sai de um jogo de futebol e segue a multidão que toma as ruas. E é multado. Você atravessa a rua no meio do quarteirão para conseguir ter um mínimo de certeza de que não vai ser atropelado na esquina. E é multado.
Ou seja, não é só andar que está ameaçado. É a própria permanência na rua.
Dá até para entender por que o legislador propôs algo assim. O trânsito brasileiro mata 37 mil pessoas por ano. Só em São Paulo, são quase 900 pessoas por ano, a maior parte de pedestres. Entretanto, uma proposta como essa revela um desconhecimento da realidade das cidades brasileiras e — eu apostaria nisso — uma falta de se colocar no papel do pedestre para tomar decisões.
Há pelo menos três razões para pensar melhor antes de seguir adiante com uma lei dessas.
Não é preciso dar muitas voltas para constatar que as calçadas de São Paulo repelem os pedestres e muitas vezes os empurram para as ruas. Carros estacionados calçada, sacos de lixo, calçadas estreitas, postes, grades e mesas. E há muitos lugares onde simplesmente não há calçadas, principalmente nas ruas da periferia.
Numa cidade ideal, com calçadas largas, lisas, bem cuidadas, com faixas de pedestre em toda parte, motoristas educados, semáforos que funcionam, é possível pensar em exigir um comportamento exemplar das pessoas que andam a pé.
Em algumas cidades americanas e asiáticas, os cidadãos que atravessarem no proibido podem ser multados. Mesmo nessas cidades, porém, a lei não acontece sem controvérsias, mas o importante é que ela se refere apenas a alguns pontos, onde há potencialmente mais perigo.
São Paulo é construída para o fluxo de automóveis e quem anda a pé tem que se adaptar a um sistema inamistoso e perigoso.
Para atravessar a avenida Rebouças, a Francisco Morato ou a Tiradentes, é preciso esperar até 2 minutos e não perder tempo enquanto o homenzinho está verde.
Para cruzar a 23 de maio, é preciso andar até uma das poucas passarelas, muitas vezes distantes 500 m umas das outras. Temos pontes em que só passam carros, enquanto pedestres são obrigados a andar quilômetros para cruzar um rio. Lugares que reúnem pessoas vulneráveis, como escolas e hospitais, têm acesso ruim e perigoso.
Punir o pedestre porque ele não consegue andar na lei dentro de sua própria cidade, construída para quem anda de carro, é um contra-senso inexplicável.
Com a lei, é possível até que o pedestre, de vítima, passe a ser visto como culpado de seu próprio atropelamento, quando, na verdade, as principais razões para as mortes têm a ver com o desenho das ruas, o comportamento de motoristas e a falta de fiscalização.
É preciso mudar a maneira como as ruas são construídas (veja post sobre ruas completas aqui) e também o comportamento dos motoristas. Quem dirige uma máquina possante é quem tem o poder de colocar pedestres em situações de risco. Basta olhar à sua volta para encontrar motoristas que trafegam em altas velocidades, não respeitam faixas de pedestre e não dão preferência quando estão fazendo uma conversão.
Em São Paulo, estima-se que o percentual dos deslocamentos que envolvem o pé seja próximo de 90%. São aqueles que vão a pé para a escola, o trabalho. E também aqueles que usam o pé para chegar até um ponto de ônibus, uma estação de trem. E ainda inclui aqueles que andam pelo menos um minuto para chegar até um aplicativo, um taxi ou para pegar o carro num estacionamento. Em algum momento do dia, quase todo mundo (com a exceção de quem só usa carro e tem estacionamento tanto na residência como no destino) anda um pouco a pé.
Essa massa de pessoas — todos nós — será, do dia para a noite, fiscalizada. São 19,5 milhões de deslocamentos diários, em trajetos distintos, desde a periferia mais desprovida de infraestrutura, até os calçadões do centro. Seremos todos vigiados, fiscalizados em nosso ato mais básico — andar a pé.
Uma questão prática surge: Como identificar um infrator? Pedir CPF, comprovante de endereço? Seremos obrigados a andar com uma placa de identificação?
“Fulano de tal, licença de pedestre número 1234.”
E, diante disso tudo, a pergunta inevitável: quem vai fiscalizar isso? Numa cidade onde faltam fiscais e policiais e onde os sinais de trânsito apagam na primeira chuva, qual é o custo de desviar a atenção de um agente público para o sujeito que atravessou fora da faixa e deixar de fiscalizar o motociclista que não parou no sinal vermelho?
Sim, há pedestres que em algumas circunstâncias adotam postura de risco e atravessam em situações perigosas. Há também os vendedores que se expõem ao risco nas ruas e que talvez devessem ser coibidos. Mas trata-se de casos específicos, em locais específicos. Para coibir atos isolados, não é necessária uma nova lei que abranja todas as cidades do Brasil e todas as situações. Claro está que alguém que se joga deliberadamente sobre um carro não é regra. A maior parte de nós anda sempre preocupado em se proteger dos carros, das motos, dos ônibus e até dos patinetes.
Precisamos apenas de travessias seguras, calçadas melhores, de sinalização melhor e de fiscalização melhor — principalmente aos condutores de veículos! E precisamos de lugares que possam abrigar o convívio diário.
Perguntei à Prefeitura de São Paulo qual é a posição sobre a legislação. A resposta é que enquanto não for regulamentada pelos órgãos federais, não há elementos para informar sobre a nova lei.
O fato é que a Prefeitura tem muitas coisas mais importantes e urgentes a fazer do que pensar em como aplicar uma lei tão controversa e provavelmente inócua. Para começar, é preciso rever a fiscalização das calçadas, que não funciona. Também poderíamos investir uma fração do orçamento em redesenhar travessias e aumentar calçadas, multiplicando rapidamente as poucas — e boas — experiências que a Prefeitura já fez em São Miguel, na Vergueiro e na região da Berrini.
No ano passado R$ 400 milhões foram dedicados para o asfaltamento de ruas, sem incluir as calçadas no programa. Há iniciativas que podem mudar isso, como a bem-vinda Comissão Permanente de Calçadas, que pode ter uma atuação mais sistemática. Muito mais importante que uma nova lei é o programa Visão Zero, que deve ser lançado nos próximos meses (veja post aqui), uma ferramenta muito mais abrangente e inteligente de reduzir as mortes no trânsito.
Se os órgãos federais (Denatran e Contran) voltarem atrás nessa decisão, seria possível lançar uma conversa mais profunda sobre o problema dos pedestres. Seria possível destacar a importância de mais verbas — municipais, federais e estaduais para o redesenho das ruas, para a fiscalização da velocidade e para a mudança de visão em relação ao pedestre. Seria possível lembrar que as cidades pelo mundo todo estão aumentando o espaço e a segurança de quem anda a pé e de bicicleta, e disciplinando o uso do carro. Seria possível discutir o papel da rua como espaço de permanência. Seria possível lembrar que as pessoas estão na rua porque é na rua que a vida acontece.
Qualquer alternativa parece melhor do que criar uma nova lei que não pode ser nem cumprida nem fiscalizada.
Texto publicado originalmente em Caminhadas Urbanas em 4 de fevereiro de 2019.
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Excelente artigo e ponto de vista, Mauro!
É absolutamente uma inversão da responsabilidade: culpa-se o pedestre que não anda no local certo porque a calçada não convém, e por serem atropelados por motoristas em alta velocidade.
Como você citou, em algumas cidades dos EUA multam-se pedestres, claramente um sinal também da vitória dos carros, que começo no início do séc. 20.
Acredito que já conheça, mas um paper do Peter Nortor, “Street Rivals: Jaywalking and the Invention of the Motor Age Street”, conta bem essa história! https://www.jstor.org/stable/40061474
Abraços e parabéns!
muito bom o artigo!!!
Que bom que gostou, Sandra!
Ah, João, essa história do Jay Walking é muito boa mesmo! A indústria automobilística conseguiu inventar algo que ridicularizasse os pedestres… e que funciona até hoje. A conversa não é fácil, há de fato algumas pessoas que fazem questão de atravessar em situações arriscadas quando há alguma outra opção mais simples. Mas são poucas; de um modo geral, é a única alternativa… Bem, vamos em frente, passo a passo!