A incrível lei que pode transformar 10 milhões de paulistanos em contraventores
Imagem: Gustavo Minas/Flickr.

A incrível lei que pode transformar 10 milhões de paulistanos em contraventores

Multa a pedestres e ciclistas já existe no Código de Trânsito Brasileiro desde 1997. Mas em 2019 os municípios deverão enfim iniciar a fiscalização.

19 de fevereiro de 2019

Está prestes a ser regulamentada uma lei que pode transformar o ato mais simples da cidade — andar a pé — em algo impraticável.

A multa a pedestres e ciclistas já constava do Código de Trânsito Brasileiro, de 1997. Em 2017, o órgão responsável pela regulamentação das leis do trânsito, o Contran, emitiu uma resolução 706/17, anunciando que isso seria feito em 2019. A partir de agora, os municípios terão que anunciar suas medidas para cumprir a lei. Você pode ser multado se:

• Andar na rua

• Permanecer na rua

• Atravessar fora da faixa

• E outros casos, conforme os artigos 254 e 255 do CTB.

Ou seja, seremos todos multados. Você sai com o carrinho de bebê, mas a calçada está toda esburacada e você desce até a rua para conseguir andar. E é multada. Você sai de um jogo de futebol e segue a multidão que toma as ruas. E é multado. Você atravessa a rua no meio do quarteirão para conseguir ter um mínimo de certeza de que não vai ser atropelado na esquina. E é multado.

Pedestres são impelidos a caminharem na calçada. (Mariana Gil e WRI Brasil Cidades Sustentáveis/Flickr)

Ou seja, não é só andar que está ameaçado. É a própria permanência na rua.

Dá até para entender por que o legislador propôs algo assim. O trânsito brasileiro mata 37 mil pessoas por ano. Só em São Paulo, são quase 900 pessoas por ano, a maior parte de pedestres. Entretanto, uma proposta como essa revela um desconhecimento da realidade das cidades brasileiras e — eu apostaria nisso — uma falta de se colocar no papel do pedestre para tomar decisões.

Há pelo menos três razões para pensar melhor antes de seguir adiante com uma lei dessas.

Primeira razão: a lei é impossível de ser cumprida

Não é preciso dar muitas voltas para constatar que as calçadas de São Paulo repelem os pedestres e muitas vezes os empurram para as ruas. Carros estacionados calçada, sacos de lixo, calçadas estreitas, postes, grades e mesas. E há muitos lugares onde simplesmente não há calçadas, principalmente nas ruas da periferia.

Entulho na Pedro Soares, em São Miguel Paulista. (Imagem: Mílton Jung/Flickr)

Segunda razão: a lei é injusta

Numa cidade ideal, com calçadas largas, lisas, bem cuidadas, com faixas de pedestre em toda parte, motoristas educados, semáforos que funcionam, é possível pensar em exigir um comportamento exemplar das pessoas que andam a pé.

Em algumas cidades americanas e asiáticas, os cidadãos que atravessarem no proibido podem ser multados. Mesmo nessas cidades, porém, a lei não acontece sem controvérsias, mas o importante é que ela se refere apenas a alguns pontos, onde há potencialmente mais perigo.

São Paulo é construída para o fluxo de automóveis e quem anda a pé tem que se adaptar a um sistema inamistoso e perigoso.

Para atravessar a avenida Rebouças, a Francisco Morato ou a Tiradentes, é preciso esperar até 2 minutos e não perder tempo enquanto o homenzinho está verde.

Sem espaço suficiente nas calçadas, pedestres optam por trafegar pela rua. (Mariana Gil e WRI Brasil Cidades Sustentáveis/Flickr)

Para cruzar a 23 de maio, é preciso andar até uma das poucas passarelas, muitas vezes distantes 500 m umas das outras. Temos pontes em que só passam carros, enquanto pedestres são obrigados a andar quilômetros para cruzar um rio.  Lugares que reúnem pessoas vulneráveis, como escolas e hospitais, têm acesso ruim e perigoso.

Punir o pedestre porque ele não consegue andar na lei dentro de sua própria cidade, construída para quem anda de carro, é um contra-senso inexplicável.

Com a lei, é possível até que o pedestre, de vítima, passe a ser visto como culpado de seu próprio atropelamento, quando, na verdade, as principais razões para as mortes têm a ver com o desenho das ruas, o comportamento de motoristas e a falta de fiscalização.

É preciso mudar a maneira como as ruas são construídas (veja post sobre ruas completas aqui) e também o comportamento dos motoristas. Quem dirige uma máquina possante é quem tem o poder de colocar pedestres em situações de risco. Basta olhar à sua volta para encontrar motoristas que trafegam em altas velocidades, não respeitam faixas de pedestre e não dão preferência quando estão fazendo uma conversão.

Terceira. A lei não pode ser fiscalizada

Em São Paulo, estima-se que o percentual dos deslocamentos que envolvem o pé seja próximo de 90%. São aqueles que vão a pé para a escola, o trabalho. E também aqueles que usam o pé para chegar até um ponto de ônibus, uma estação de trem. E ainda inclui aqueles que andam pelo menos um minuto para chegar até um aplicativo, um taxi ou para pegar o carro num estacionamento. Em algum momento do dia, quase todo mundo (com a exceção de quem só usa carro e tem estacionamento tanto na residência como no destino) anda um pouco a pé.

Essa massa de pessoas — todos nós — será, do dia para a noite, fiscalizada. São 19,5 milhões de deslocamentos diários, em trajetos distintos, desde a periferia mais desprovida de infraestrutura, até os calçadões do centro. Seremos todos vigiados, fiscalizados em nosso ato mais básico — andar a pé.

Faixa de pedestres não consegue abrigar tamanho número de pessoas. (Mariana Gil e EMBARQ Brasil/Flickr)

Uma questão prática surge: Como identificar um infrator? Pedir CPF, comprovante de endereço? Seremos obrigados a andar com uma placa de identificação?

“Fulano de tal, licença de pedestre número 1234.”

E, diante disso tudo, a pergunta inevitável: quem vai fiscalizar isso? Numa cidade onde faltam fiscais e policiais e onde os sinais de trânsito apagam na primeira chuva, qual é o custo de desviar a atenção de um agente público para o sujeito que atravessou fora da faixa e deixar de fiscalizar o motociclista que não parou no sinal vermelho?

Sim, há pedestres que em algumas circunstâncias adotam postura de risco e atravessam em situações perigosas. Há também os vendedores que se expõem ao risco nas ruas e que talvez devessem ser coibidos. Mas trata-se de casos específicos, em locais específicos. Para coibir atos isolados, não é necessária uma nova lei que abranja todas as cidades do Brasil e todas as situações. Claro está que alguém que se joga deliberadamente sobre um carro não é regra.  A maior parte de nós anda sempre preocupado em se proteger dos carros, das motos, dos ônibus e até dos patinetes.

Árvore no caminho dos pedestres. (Mariana Gil e WRI Brasil Cidades Sustentáveis/Flickr)

Precisamos apenas de travessias seguras, calçadas melhores, de sinalização melhor e de fiscalização melhor — principalmente aos condutores de veículos! E precisamos de lugares que possam abrigar o convívio diário.

Perguntei à Prefeitura de São Paulo qual é a posição sobre a legislação. A resposta é que enquanto não for regulamentada pelos órgãos federais, não há elementos para informar sobre a nova lei.

O fato é que a Prefeitura tem muitas coisas mais importantes e urgentes a fazer do que pensar em como aplicar uma lei tão controversa e provavelmente inócua. Para começar, é preciso rever a fiscalização das calçadas, que não funciona. Também poderíamos investir uma fração do orçamento em redesenhar travessias e aumentar calçadas, multiplicando rapidamente as poucas — e boas — experiências que a Prefeitura já fez em São Miguel, na Vergueiro e na região da Berrini.

Rua Sacramento, Pari. (Imagem: Augusto Gomes/Flickr)

No ano passado R$ 400 milhões foram dedicados para o asfaltamento de ruas, sem incluir as calçadas no programa. Há iniciativas que podem mudar isso, como a bem-vinda Comissão Permanente de Calçadas, que pode ter uma atuação mais sistemática. Muito mais importante que uma nova lei é o programa Visão Zero, que deve ser lançado nos próximos meses (veja post aqui), uma ferramenta muito mais abrangente e inteligente de reduzir as mortes no trânsito.

Se os órgãos federais (Denatran e Contran) voltarem atrás nessa decisão, seria possível lançar uma conversa mais profunda sobre o problema dos pedestres. Seria possível destacar a importância de mais verbas — municipais, federais e estaduais para o redesenho das ruas, para a fiscalização da velocidade e para a mudança de visão em relação ao pedestre. Seria possível lembrar que as cidades pelo mundo todo estão aumentando o espaço e a segurança de quem anda a pé e de bicicleta, e disciplinando o uso do carro. Seria possível discutir o papel da rua como espaço de permanência. Seria possível lembrar que as pessoas estão na rua porque é na rua que a vida acontece.

Qualquer alternativa parece melhor do que criar uma nova lei que não pode ser nem cumprida nem fiscalizada.

Texto publicado originalmente em Caminhadas Urbanas em 4 de fevereiro de 2019.

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  • Ah, João, essa história do Jay Walking é muito boa mesmo! A indústria automobilística conseguiu inventar algo que ridicularizasse os pedestres… e que funciona até hoje. A conversa não é fácil, há de fato algumas pessoas que fazem questão de atravessar em situações arriscadas quando há alguma outra opção mais simples. Mas são poucas; de um modo geral, é a única alternativa… Bem, vamos em frente, passo a passo!

  • Excelente artigo e ponto de vista, Mauro!
    É absolutamente uma inversão da responsabilidade: culpa-se o pedestre que não anda no local certo porque a calçada não convém, e por serem atropelados por motoristas em alta velocidade.
    Como você citou, em algumas cidades dos EUA multam-se pedestres, claramente um sinal também da vitória dos carros, que começo no início do séc. 20.
    Acredito que já conheça, mas um paper do Peter Nortor, “Street Rivals: Jaywalking and the Invention of the Motor Age Street”, conta bem essa história! https://www.jstor.org/stable/40061474

    Abraços e parabéns!