Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Temos a tendência de escolher casas maiores do que queremos que nossos vizinhos escolham. O resultado: amplo desenvolvimento que não corresponde ao que as pessoas realmente desejam de suas comunidades.
31 de março de 2022Em condições normais, a maioria das pessoas gosta de viver em lugares com fácil acesso à sua vida cotidiana. É bom poder levar seus filhos a pé para o jardim de infância e é mais fácil manter uma vida social quando muitos de seus amigos moram na mesma rua que você. Quando você fica sem sabão, você é grato por poder reabastecer na mercearia no andar de baixo, ao invés de ter que dirigir 20 minutos até o supermercado.
Em condições normais, também queremos o máximo de espaço possível. Gostamos de ter espaço para uma academia, um quarto separado para cada criança e um quintal onde podemos relaxar quando o tempo está bom. O espaço também nos traz silêncio, paz e privacidade. Em uma propriedade de 40 mil m², não precisamos ouvir nossos vizinhos cortando a grama ou silenciando seus bebês às 2 da manhã.
O acesso a amenidades requer uma densidade populacional que pode suportá-las, e espaço requer… bem, espaço. Um projeto inteligente pode fazer muito para reduzir essa desvantagem mas, no final das contas, mais espaço por pessoa resulta em menos pessoas em uma dada área de terreno.
Se quisermos mais comodidades perto de nós, tudo precisa ocupar menos espaço em média. Se quisermos mais, tudo precisa ficar mais longe de nós em média, reduzindo nosso acesso a essas pessoas e serviços.
Imagine um bairro onde todos vivem em um prédio de apartamentos parisiense de 8 andares. Agora, vamos movê-los todos para um bairro com residências unifamiliares de um andar com o dobro da área. Por uma primeira aproximação extremamente conservadora, tudo de repente está 16 vezes mais espalhado. Seu amigo que morava a 15 minutos a pé agora mora a 35 minutos.
E daí? Cada um de nós não pode simplesmente decidir como individualmente queremos equilibrar o acesso e o espaço, mudar para uma comunidade que corresponda a essas preferências e acabar com isso? Se você gosta de ter lojas de lámen abertas às 2h da manhã e eu gosto de caminhadas matinais tranquilas onde não vejo outra alma por horas, você se muda para Tóquio e eu vou para o Maine. Qual é o problema?
Se você mora em um apartamento minúsculo, mas todo mundo escolhe uma extensa “McMansão” (casas luxuosas com qualidade genérica produzidas em massa), então você tem as desvantagens de uma casa pequena sem nenhuma das vantagens de uma cidade densa e vibrante.
No caso extremo, se todos os outros humanos na terra decidirem que valorizam um quintal mais do que a possibilidade de caminhar para o trabalho, todos os bairros serão suburbanos. Se você quer morar em um prédio sem elevador de 5 andares com uma mercearia no andar de baixo e dentro de uma curta distância do seu trabalho, você está sem sorte — esses bairros simplesmente não existem.
(Curiosamente, isso é assimétrico: se todos os outros escolherem morar em apartamentos pequenos em uma cidade, você ainda pode ir para o campo e viver uma vida rural longe deles.)
Certo, claro. E daí? O cenário onde todos preferem um espaço maior e abrem mão do acesso às amenidades urbanas não é realista. Há muitas pessoas que preferem viver na cidade. Por que não apenas se mudar para um bairro denso e cheio dessas pessoas?
Embora existam alguns lugares onde um número suficiente de pessoas se inclinou para a densidade e o acesso em detrimento do espaço e da privacidade, há mais demanda para esses bairros do que oferta. Parte da razão para isso é que a densidade urbana se comporta como uma clássica Tragédia dos Comuns.
A soma da preferência de todos por mais espaço leva a uma oferta insuficiente de bairros urbanos densos. Isso acontece mesmo nos casos em que todos no bairro desejam que ele seja mais denso e urbano!
Vamos examinar a teoria dos jogos. Você não controla o que seus vizinhos farão, e há um espectro de denso a esparso que qualquer bairro já escolheu coletivamente. Para simplificar nosso modelo, vamos tratá-las como opções binárias e apenas observar os extremos nas duas pontas do espectro, mas lembre-se de que também existem possibilidades no meio. Estas são as duas possibilidades simplificadas de como seus vizinhos podem se comportar:
• Todos os seus vizinhos optam por morar em pequenas casas densamente aglomeradas entre si, possibilitando um ambiente urbano vibrante com muitas comodidades interessantes, como parques e restaurantes.
• Todos os seus vizinhos vivem em grandes casas que ocupam vários acres, permitindo que tenham o máximo de privacidade, espaço e controle dentro de seu próprio domínio.
Agora imagine que você não tem controle sobre em qual desses dois bairros você está procurando uma casa, mas você tem uma escolha entre duas opções de onde vai morar naquele bairro, ambas dentro do seu orçamento:
• Um apartamento minúsculo, muito pequeno para hospedar um jantar.
• Uma mansão luxuosa, com muitos quartos de hóspedes para receber amigos.
Todo mundo que eu conheço escolheria a luxuosa mansão em um piscar de olhos. Independentemente do caminho que seus vizinhos sigam, você fará a mesma coisa: procurará a maior e mais bonita casa que puder encontrar e que esteja dentro do seu orçamento.
Isso é chamado de equilíbrio de Nash, uma maneira elegante de dizer que você vai escolher a mesma estratégia independentemente de como seus vizinhos se comportam ao seu redor. Se todas as outras pessoas moram em um espaço pequeno para maximizar a densidade populacional de um bairro, você pode pegar carona nisso e escolher uma casa maior para obter os benefícios de mais espaço e acesso às amenidades proporcionadas pela densidade.
Vamos modelar isso em uma matriz de teoria dos jogos:
Quando uma família escolhe uma casa maior, isso não tem um efeito perceptível. Mas se aplicarmos essa lógica a cada pessoa que vive em uma cidade, o efeito é um grande espraiamento da cidade, empurrando o mercado para casas maiores, em média. Isso, por sua vez, torna as populações da vizinhança mais esparsas.
Dito de outra forma, cada um de nós tende a escolher uma casa maior do que queremos que nossos vizinhos escolham. É claro que a maioria das pessoas não pode pagar uma mansão, mas elas sempre vão querer o máximo de espaço que puderem. As restrições financeiras impedem que essa dinâmica saia do controle, mas na margem há uma pressão constante para a expansão.
O resultado: uma oferta insuficiente de bairros urbanos.
A maioria das cidades atualmente faz péssimo uso do espaço, fazendo com que as pessoas fiquem mais espalhadas do que precisam, mesmo levando em consideração nossa preferência geral por mais espaço privado. Isso é uma má notícia no ponto em que estamos perdendo muito espaço desnecessariamente agora, mas de certa forma também é uma boa notícia: há muito o que podemos fazer para melhorar!
Existem muitas maneiras de aumentarmos o acesso a coisas incríveis sem sacrificar o espaço. Uma lista completa dessas ideias justifica uma postagem própria, mas vou compartilhar três exemplos que vêm à mente:
• A maioria das cidades dos EUA tem vagas de estacionamento mínimas para edifícios, incluindo empreendimentos de apartamentos destinados a residentes que não possuem um carro. Isso resulta em muitas vagas extras de estacionamento que espalham nossas cidades e dificultam o contato uns com os outros. (Existem 3,3 vagas por veículo no condado de Los Angeles, por exemplo.)
• Muitas cidades costeiras constroem rodovias na orla marítima, bloqueando o acesso ao oceano. Este é um dos imóveis mais cobiçados de qualquer cidade, e as pessoas em carros mal apreciam a vista e o ar do oceano de qualquer maneira! Em vez disso, faça um parque longo e estreito ao longo de toda a orla e faça dele o quintal da primeira fileira de edifícios. Em seguida, coloque a primeira estrada dentro da primeira fileira de edifícios para proteger os frequentadores do parque do barulho dos carros.
• Se nós substituíssemos todos os estacionamentos na via por mais vagas em garagens, teríamos muito mais terrenos públicos na rua. Isso nem teria que sacrificar o número absoluto de vagas de estacionamento! Simplesmente aproveite o espaço vertical empilhando-os em um estacionamento. O espaço da rua que isso economiza poderia ser usado de muitas maneiras. Ele poderia ser transformado em ciclovias mais largas, parques lineares que revestem todas as nossas ruas com flores ou, literalmente, qualquer outra coisa além de armazenamento de carro.
Há tantos frutos ao alcance para usar melhor o espaço em nossas cidades, mesmo antes de tentar resolver o problema de coordenação mais amplo. Acho reconfortante saber que, embora essa tragédia dos comuns seja difícil de resolver, há muito o que podemos fazer antes de enfrentar o chefe final.
O que você adicionaria à lista?
Artigo publicado originalmente em DevonZuegel.com em 4 de novembro de 2021. Traduzido por Roberta Inglês.
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COMENTÁRIOS
Quero sugerir uma reportagem ou estudo sobre o bairro de Camboinhas, na cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. É um bairro planejado que apresenta algumas soluções que, penso, seriam muito interessantes ver comentadas no Caos Planejado, como a preservação da orla, não permitindo a construção de uma estrada ou avenida entre a praia e as construções. Fica a sugestão.