Por que há tantas vagas de garagem no Rio de Janeiro?
Imagem: Gabriel Lohmann.

Por que há tantas vagas de garagem no Rio de Janeiro?

As leis de uso e ocupação do solo e os incentivos para criação de estacionamentos.

3 de abril de 2023

Ao longo do século XX, o automóvel individual adquiriu protagonismo no planejamento urbano, com interferência direta na conformação dos espaços públicos e privados das cidades. Legislações paulatinamente priorizaram o espaço do carro nas vias públicas, seja através da ampliação de pistas de rolamento, seja pela criação de amplas faixas de estacionamento, por vezes com redução de calçadas de pedestres.

Determinaram, também, incentivos ou obrigações para construção de pavimentos-garagem nas edificações residenciais e comerciais, alterando as feições dos edifícios e da cidade — tudo para responder ao crescente número de veículos circulando nas ruas.

Esse aumento decorre da popularização do acesso ao automóvel, mas também reflete um aumento da dependência das famílias a esse meio de transporte, como consequência da expansão das malhas urbanas, da dilatação do percurso entre casa, trabalho e lazer, e da insuficiente oferta de transporte público para suprir o deslocamento intra urbano e metropolitano.

Porém, as modificações que priorizaram o deslocamento por automóvel não solucionaram os problemas impostos à qualidade de vida na cidade, e a escolha deste modelo rodoviarista possui consequências visíveis — congestionamentos, aumento da poluição atmosférica e um espaço público inóspito ao pedestre em diversos aspectos.

Através de diferentes estratégias, o planejamento urbano contemporâneo vem buscando novos modelos de desenvolvimento para as cidades, que possam inverter a lógica de priorização do carro e solucionar ou amenizar os problemas herdados pelo modelo rodoviarista.

Muitas dessas estratégias têm base no conceito de Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS), focado em estabelecer, dentro da cidade, eixos estruturantes de transporte público de alta capacidade, com um maior adensamento populacional em seu entorno, para que mais pessoas estejam a uma distância caminhável até as estações e possam optar por não se deslocar de carro. 

Algumas mudanças regulatórias são chave para este processo, pois onde há investimento público em infraestrutura de transporte público, não deveria haver legislação edilícia que continue incentivando a priorização do espaço destinado ao automóvel individual — isso pois a coexistência de ambos não resulta na adesão ao transporte público e não diminui os problemas ocasionados pelo excesso de automóveis nas ruas — persistindo o problema público. 

Percurso da Legislação de Vagas de Estacionamento no Rio de Janeiro

Até a década de 1950 não existia regulamentação sobre quantidades mínimas de vagas de estacionamento em edificações no Rio de Janeiro. O aumento do consumo de automóveis nesta época começa a ocasionar uma superlotação das ruas, especialmente em bairros mais adensados como Copacabana. O deficit de vagas públicas motivou o governo a tornar as vagas de estacionamento obrigatórias em novas edificações, através da regulamentação conhecida como “Lei das Garagens”, de 1957.

Na década de 1970, diversos instrumentos de uso e ocupação do solo ampliaram as obrigações de criação das vagas de garagem privativas, bem como medidas ‘compensatórias’ por essas obrigações. O Decreto 52/1975, por exemplo, determinou que cada unidade residencial ou comercial deveria ter uma área de estacionamento equivalente a, no mínimo, 25 m², e que os pavimentos de garagem não seriam computados no cálculo da Área Total Edificável (ATE), nem contabilizados no gabarito da edificação, nem precisariam obedecer aos afastamentos mínimos, ou seja, eram “pavimentos bônus”.

Já o Decreto 322/1976, que ainda vale — 47 anos depois — para diversas regiões do Rio de Janeiro, permitiu a continuidade destas disposições, liberando, por exemplo, até 4 pavimentos-garagem não computáveis para edificações coladas nas divisas, e até 5 para edificações afastadas das divisas, consolidando os “embasamentos-garagem” que marcam a arquitetura carioca, afastam as unidades habitáveis do nível da rua e diminuem a interação entre espaços públicos e privados.

O mesmo Decreto 322 também cristaliza a obrigação de no mínimo uma vaga de garagem por unidade em edificações residenciais multifamiliares, sendo que este número podia ser bem maior — unidades com mais de 150 m² em Copacabana, por exemplo, deveriam ofertar 4 vagas:

vagas de garagem no Rio de Janeiro
Trecho do Quadro VII (Decreto 322/76), que versa sobre vagas de estacionamento. (Imagem: Decreto 322/1976, adaptado pelos autores (2023))

Durante muitas décadas, não houve revisão destas determinações, que direcionaram a forma urbana de diversos bairros cariocas. No Plano Diretor de 2011, previu-se a necessidade de criação de uma nova Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS) para o Município, que teria por obrigação, dentre outros, criar “alternativas para estacionamento e guarda de veículos compatíveis com as características locais em todos os bairros”. A nova LUOS, porém, nunca saiu do papel.

Demonstrativo das consequências da ausência de renovação na legislação de estacionamento é o estudo publicado pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), que relata a construção de pelo menos 414.711 vagas de estacionamento entre os anos de 2006 e 2015 no Rio de Janeiro.

Esse montante corresponde a 43% da área construída de todos os imóveis no período ou, aproximadamente, a área somada dos bairros do Leblon, Ipanema, Lagoa e Copacabana. Segundo o estudo, para cada 100 m² de área residencial edificada no período, foram construídos aproximadamente 95 m² de estacionamentos.

Diante da ausência de nova LUOS e buscando iniciar o demandado movimento por um ordenamento urbano mais sustentável, o Código de Obras e Edificações Simplificado do Município (COES), de 2019, estabeleceu novas regras para vagas, mais flexíveis especialmente para edificações situadas até 800 metros de distância de estação metroviária, ferroviária, de BRT ou VLT, de forma a incentivar que mais pessoas tenham opções de moradia acessíveis e optem pelo transporte público. Dentro deste raio de 800 metros, a obrigatoriedade é que se ofereça uma vaga para cada quatro unidades. 

Complementarmente, o COES também permitiu que edificações residenciais uni e bifamiliares fossem isentas da exigência de vagas, bem como estabeleceu a possibilidade de isenção nos casos de retrofit de edificações tombadas, preservadas e convertidas para o uso multifamiliar, como ficou regulamentado pela Lei Complementar 232/2021.

Esta regra colaborou para a existência do Programa Reviver Centro, por exemplo, que se vale dela para propor um processo de revitalização para o centro da cidade, ancorado na ampliação do uso residencial e misto próximo a diversas opções de transporte público e infraestrutura de serviços e lazer.

As modificações trazidas no COES puseram fim, para parte da cidade, à cristalizada obrigatoriedade de ao menos uma vaga de garagem por unidade, iniciando uma transição, há muito postergada pelo Rio de Janeiro, para um arcabouço legal mais sustentável em termos de mobilidade urbana.

Porém, estas disposições são insuficientes para uma mudança concreta de cenário, pois a obrigatoriedade de vagas ainda persiste, mesmo que em número mais reduzido, encarecendo o preço das unidades residenciais.

Isso porque as vagas, mesmo com os benefícios construtivos, como a não contabilização na Área Total Edificável, são vendidas como área construída integrante da unidade residencial — sua metragem quadrada é incluída no preço de venda e, oferecida como comodidade ou sinal de status, valoriza os apartamentos — além de induzir os moradores que a possuem a adquirir um carro.

O que propõe o Novo Plano Diretor?

A minuta do PLC 44/2021, que contém a revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável da Cidade do Rio de Janeiro, reafirma o Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS) como conceito norteador.

Afirma também o estímulo aos modos ativos de deslocamento e o desestímulo ao uso do automóvel. No entanto, as regulamentações de uso e ocupação do solo se distanciam destas diretrizes, pois reafirmam as obrigatoriedades de vagas de estacionamento — chegando a duas vagas por unidade, para regiões como Barra da Tijuca e Jacarepaguá — e a não contabilização das vagas obrigatórias no cálculo de Área Total Edificável (ATE) do empreendimento.

Barra da Tijuca
Barra da Tijuca. (Imagem: Alexandre Macieira/Riotur)

As emendas apresentadas pelo Poder Executivo em novembro de 2022 tornam o cenário mais sensível ao dispor que nenhuma vaga de estacionamento será computada no cálculo da ATE — nem as obrigatórias, como era a ideia inicial — nem as adicionais, que o empreendedor quiser construir além.

Essa mudança incentiva a construção de novos empreendimentos com mais vagas de garagem, mesmo próximo aos eixos de transporte público, elevando valores das unidades e tornando mais provável a sua ocupação por moradores que não estão dispostos a deixar de se locomover por carro. Isso é incoerente com os princípios e diretrizes que o Plano Diretor estabelece, como vimos tentando demonstrar.

Para além disso, o estabelecimento de um mínimo de vagas, que continua vigente, pode, segundo avaliação de setores do mercado imobiliário, inviabilizar empreendimentos de habitação de mercado popular, cujo preço final das unidades muitas vezes não comporta o valor embutido da vaga de estacionamento.

Um caminho alternativo

Uma cidade que está num percurso rumo à sustentabilidade, em termos de desenvolvimento e mobilidade urbana, deveria, sob nossa ótica, abolir a exigência de número mínimo de vagas de estacionamento em todo o território urbano.

A não obrigatoriedade de vagas, além de modular o incentivo ao uso do automóvel individual e o espraiamento urbano para áreas não desejadas, possibilita que cada empreendimento ofereça soluções de moradia compatíveis com a realidade econômica e contextual de um maior número de moradores.

Isso incentiva, inclusive, diferentes propostas — com ou sem vaga de garagem — em um mesmo edifício multiresidencial, tendendo a ser menos custosas as unidades sem garagem.

Não sendo obrigados a oferecer uma vaga por unidade, ou mesmo uma a cada 4 unidades, os empreendimentos conseguem aproveitar melhor a área edificável de terrenos bem localizados para maior oferta de unidades habitáveis, e não de espaços para automóveis — estes podem continuar sendo produzidos, mas a partir de um mapeamento da sua real necessidade — levando-se em conta a localização do empreendimento e o acesso deste a meios de transporte público.

Como ressaltado pelo Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, para o caso de São Paulo: “no regramento atual, uma vaga de estacionamento é mais barata do que um quarto a mais em um apartamento. Um cômodo a mais pode promover maior adensamento. Um carro a mais gera apenas mais congestionamento”.

Em paralelo, fica a discussão sobre a continuidade dos incentivos construtivos, como a não contabilização de pavimentos-garagem no gabarito e na Área Total Edificável permitidos pelas legislações de uso e ocupação do solo.

Vem crescendo o posicionamento, entre urbanistas, de que todas as áreas úteis da edificação deveriam ser computadas na ATE, e a partir desta disposição, os empreendimentos deveriam escolher quais espaços construídos privilegiar — estacionamentos, áreas de lazer, mais unidades habitacionais, etc. Esse é um caminho que ainda não demonstra sinais de ter espaço nas legislações urbanísticas, mas é um caminho possível e deve fazer parte das discussões acerca do planejamento urbano. 

A experiência do Plano Diretor Estratégico de São Paulo — PDE (2014) demonstra bons resultados na limitação de vantagens para áreas de estacionamento. A partir da promulgação de limites de isenção na ATE, o número de novas unidades residenciais com duas ou mais vagas de estacionamento caiu de 34,63%, no período entre 2009 e 2013, para 10,12%, no período entre 2014 e 2018, segundo dados de relatório publicado pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (2021).

O número médio de vagas por unidade também apresentou redução para 0.5 vagas por unidade lançada, em 2020 e 2021, como reflexo da política implementada pelo PDE de 2014, segundo estudo do Laboratório Arq.Futuro.

Como procuramos evidenciar brevemente neste artigo, mudanças regulatórias são necessárias para que o desenvolvimento urbano priorize a mobilidade sustentável — apenas planos e diretrizes não são suficientes, é necessário focar na alteração de parâmetros construtivos e de uso e ocupação do solo.

Uma legislação que não prioriza espaços para automóveis, além de contribuir para a concretização de uma cidade mais compacta e caminhável, participa na diminuição do custo da moradia e, por consequência, no aumento de sua acessibilidade.

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  • Gostaria de saber em qual parte do COES 2019 do RJ (artigo, inciso, parágrafo ou anexo) é definida a regra de 1 vaga a cada 4 unidades habitacionais.
    Faço parte da equipe do Insper, cujo estudo está referenciado, e gostaria de mais informações sobre o caso do RJ.
    Obrigada

    • No parágrafo 6º do Art. 28.

      Art. 28. Os locais para estacionamento de veículos, quando projetados, poderão ser cobertos ou descobertos e obedecerão às seguintes exigências:
      .
      .
      .
      § 6º As edificações situadas em um raio de distância de até oitocentos metros de estação metroviária, ferroviária, de Bus Rapid Transit – BRT ou de Veículo Leve sobre Trilhos – VLT, deverão obedecer à proporção de uma vaga para cada quatro unidades, desprezada a fração.

      Espero ter ajudado.
      Silvio Coelho