Urbanização de favelas em São Paulo e modelos de financiamento
Foto: Google Earth

Urbanização de favelas em São Paulo e modelos de financiamento

Estudo que compara o modelo de financiamento público com o baseado nas Operações Urbanas Consorciadas (OUC) mostra resultados igualmente desafiadores.

1 de agosto de 2024

A discussão sobre os resultados de projetos e programas públicos financiados e executados em parceria com o setor privado é longa e cheia de polêmicas e partidarismos. A despeito das disputas entre os que pensam diferente, é preciso contar com evidências vindas de experiências práticas e de estudos delas originados. No campo habitacional, experiências recentes, como o Programa de Urbanização de Favelas de São Paulo, podem servir de parâmetro para avaliarmos o que deu certo e errado e para desenharmos novas políticas.

Apresento a seguir um artigo com os resultados da minha pesquisa de mestrado, “Urbanizando favelas: esquemas de financiamento e seus efeitos sobre oportunidades econômicas, provisão de infraestrutura e segurança”

A urbanização da Favela do Sapé

As relações entre o poder público e o mercado acontecem em vários campos das políticas públicas e em vários graus. Alguns exemplos recentes são a concessão da linha 7 da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e a privatização da SABESP, companhia paulista de saneamento. Já quando se trata das parcerias público-privadas (PPP), destacam-se as Operações Urbanas Consorciadas (OUC), que apresentam financiamento e investimentos notadamente privados em comparação com modelos tradicionais, com recursos vindos predominantemente do Estado. Em São Paulo, as OUC têm sido adotadas como parte da estratégia de urbanização de favelas.

Leia mais: Favelas latino-americanas: projetos de melhoria e a participação da comunidade

Mas antes de adentrarmos nas OUC e na sua relação com as urbanizações de assentamentos precários na cidade, vamos dar um passo atrás e entender a política municipal de urbanização.

De modo geral, a Secretaria de Habitação (SEHAB) deixou de lado nas últimas décadas a remoção de domicílios em favelas que são alvo de intervenções para, em troca, consolidar as áreas menos precárias – cujos domicílios permanecem e recebem no entorno infraestrutura como coletores de esgoto, iluminação pública e asfaltamento de vias. As demolições acontecem apenas em domicílios extremamente insalubres – como aqueles com vedações de madeira – e naqueles em áreas sujeitas a alagamentos e deslizamentos. Em alguns casos, casas são eliminadas para darem lugar aos condomínios residenciais que abrigam a reduzida parcela de famílias removidas.

Foi o que aconteceu na urbanização da Favela do Sapé, na Zona Oeste de São Paulo. Alvo de intervenções a partir de 2008, o assentamento de 2.360 famílias tinha 450 delas em áreas de risco e quase 10% dos domicílios construídos com placas de madeira, dentre outros indicadores de precariedade.

Ocupações precárias na beira do córrego que corta a Favela do Sapé antes das obras de urbanização. Foto: SEHAB

Os recursos aplicados nas obras de urbanização do Sapé ultrapassaram os 160 milhões de reais e vieram predominantemente de fundos públicos municipais, como o Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB) e o Fundo Municipal de Saneamento Ambiental e Infraestrutura (FMSAI), e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), de origem federal.

A urbanização da Favela Real Parque

Deixemos a Favela do Sapé momentaneamente de lado e nos debrucemos sobre um caso de urbanização que entrou no bojo de uma PPP – mais especificamente, a OUC Faria Lima. A começar pela operação urbana em si, prevista no Estatuto da Cidade e que permitiu a investidores do mercado imobiliário construírem edifícios com áreas maiores dentro de um perímetro do Oeste da cidade em troca do pagamento de uma compensação. Os recursos arrecadados pelos cofres municipais, que passaram da casa dos 330 milhões de reais até 2019, foram em parte direcionados à urbanização da Favela Real Parque, próxima ao perímetro da operação.

O Real Parque começou a ser urbanizado em 2010 e, diferentemente do Sapé, todos os domicílios foram demolidos e deram lugar a mais de mil apartamentos em edifícios residenciais voltados à população removida. 

A urbanização do assentamento recebeu recursos da OUC Faria Lima e cada domicílio recebeu em média 4,5 vezes mais investimentos que no caso do Sapé.

Real Parque depois das obras de urbanização. Foto: Guilherme Formicki

O custo de morar

Mas, ao menos nesse caso, mais dinheiro não implica melhores resultados. Ao menos quando se trata da permanência dos moradores dos assentamentos precários na área urbanizada. 

O Real Parque viu a redução da capacidade de muitos de seus moradores no pagamento das contas depois das obras de urbanização. O condomínio, a água, o gás, a luz e as prestações, somados, ficavam entre 300 a 400 reais em 2018, valores que, no caso de algumas famílias, comprometiam mais de 30% da renda mensal – o máximo recomendado por economistas. Uma moradora me relatou: “Nós não tínhamos o hábito de pagar essas contas. Ficou difícil”. Outra residente desabafou: “Eu não estou pagando [as contas] porque eu não tenho condições de pagar. Não vou pagar uma conta da Prefeitura e deixar minhas crianças morrerem de fome.” Vale notar que a renda das famílias da favela era baixa antes da intervenção: 39% ganhavam entre 1 e 2 salários mínimos mensais. 

A saída para algumas famílias foi vender suas unidades – mesmo sem poderem fazê-lo legalmente. Uma moradora me relatou que havia unidades no Real Parque sendo vendidas por até 80 mil reais. A título de comparação, os domicílios eram desapropriados antes da urbanização por cerca de 8 mil reais.

No caso do Sapé, que recebeu menos recursos e teve obras mais modestas, os relatos de vendas de unidades condominiais não foram abundantes. Ouvi, inclusive, um tom maior de satisfação dos moradores. Uma residente de um dos novos apartamentos me disse: “Hoje em dia, eu não sinto vergonha de receber as pessoas.”

Entretanto, onde entram menos investimentos, realizam-se menos obras. E não apenas residenciais. O projeto de urbanização do Sapé previa a implantação de uma biblioteca com computadores disponíveis à população, além da construção de mais unidades habitacionais em condomínios. Com a falta de recursos ao longo da obra, esses planos ficaram para trás.

Leia mais: Podcast #90 | Urbanização de favelas

Desafios

O estudo mostrou que, embora o modelo da OUC Faria Lima tenha recebido mais recursos, os resultados finais são igualmente desafiadores. Além disso, apesar de receber elogios de muitos gestores públicos, o modelo de PPP na habitação tendeu a, no caso do Real Parque, reforçar desigualdades urbanas, já que o que foi arrecadado a partir do interesse do mercado imobiliário em investir nos arredores da Avenida Faria Lima – uma área já bastante valorizada em São Paulo – foi aplicado no Real Parque, área também valorizada nos limites do Morumbi. O Sapé, em um bairro mais periférico e de menor interesse do Mercado, talvez não se viabilizaria como Operação Urbana. 

É possível concluir que a participação do setor privado no financiamento e na execução de projetos e programas habitacionais pode implicar a aplicação de mais recursos, mas não necessariamente soluciona o problema que é o custo de morar. Intervenções urbanísticas como as obras de urbanização de favelas trazem questões que ainda precisam ser endereçadas pelas políticas públicas, não importando o modelo dos projetos.

Guilherme Rocha Formicki é doutorando em Planejamento Urbano e Regional na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Arquiteto e urbanista formado na FAU-USP, cursou o mestrado em Planejamento Urbano pela Universidade de Columbia (EUA). Lá, ganhou o prêmio Charles Abrams pela dissertação com o maior comprometimento com justiça social. Guilherme trabalhou na Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo entre 2014 e 2016, com atuação na urbanização de sete favelas das zonas Sul e Oeste da cidade.

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