Urbanismo e complexidade social

Urbanismo e complexidade social

"Quanto mais precisa e compreensível é a sua imagem de uma cidade, menos provável que o lugar que você está imaginando é realmente uma cidade."

28 de abril de 2014

O planejamento urbano sempre corre o risco de tirar a vida do que pretende controlar.

A coluna dessa semana é baseada em uma palestra que ministrei no início desse ano na Universidade da Califórnia, na ocasião da aposentadoria do economista urbano Peter Gordon.

Uma das minhas heroínas é a urbanista Jane Jacobs, que me ensinou a apreciar a importância do empreendedorismo em como os espaços públicos – espaços onde você espera encontrar desconhecidos – são planejados. E por ela aprendi que quanto mais precisa e compreensível é a sua imagem de uma cidade, menos provável que o lugar que você está imaginando é realmente uma cidade.

Jacobs compreendeu, como os economistas austríacos, que ordens sociais complexas tais como as cidades não são criadas deliberadamente – e nem poderiam ser. Essas ordens, em grande medida, não são planejadas, surgindo da interação entre muitas pessoas e muitas mentes. Da mesma maneira que Ludwig von Mises e F. A. Hayek compreenderam os limites do planejamento governamental na macroeconomia, Jacobs compreendeu os limites do planejamento governamental e o design de espaços públicos para uma cidade convencional, e que se os governos ignorarem aqueles limites surgirão consequências negativas.

Planejamento como taxidermia

Os economistas austríacos usam o termo “ordem espontânea” para descrever os padrões complexos de interação social que emergem quando muitas mentes interagem. Exemplos de ordem espontânea incluem mercados, moeda, língua, cultura e cidades vivas, grandes e pequenas. No seu livro A Economia das Cidades (título original “The Economy of Cities”), Jacobs define uma cidade viva como “um assentamento que gera seu crescimento econômico por meio da sua economia local”.  Cidades vivas são celeiros de criatividade e impulsionam o desenvolvimento econômico.

Há uma frase que ela usa no seu grande trabalho, Morte e Vida das Grandes Cidades (título original “The Death and Life of Great American Cities”), que captura sua opinião: “uma cidade não pode ser uma obra de arte”. E ela prossegue, explicando:

“Artistas, seja qual for seu meio de expressão, selecionam da grande abundância de materiais disponíveis na natureza e os organizam em obras que estão sob o controle do artista… a essência do processo é disciplinada, altamente selecionada e discriminatória da vida. Com respeito à abrangência e a literalmente infinita complexidade da vida, a arte é arbitrária, simbólica e abstrata… Tratar de uma cidade, ou mesmo de um bairro, como se fosse um grande problema arquitetônico, capaz de ser resolvido através de um trabalho disciplinado de arte, é cometer o erro de tentar substituir a vida pela arte. Os resultados de tão profunda confusão entre arte e vida não são nem arte, nem vida. Eles são taxidermia.”

Então, o problema com o qual se defronta um planejador urbano, e, realmente, qualquer tipo de planejamento central, é como evitar sugar a vida das coisas que você está tentando controlar.

O trade-off entre o planejamento e a complexidade

Ver cidades como ordens espontâneas e não como obras de arte ajuda a explicar o trade-off entre escala e ordem. No geral, eu acredito que, quanto maior a escala de um projeto, menor serão as descobertas e as conexões sutis que as pessoas que usam aquele espaço serão capazes de fazer.

Construir um prédio residencial em uma quadra comercial mudará a característica daquela quadra de formas imprevisíveis. No entanto, o ambiente urbano adjacente normalmente pode absorver a repercussão de forma a minimizar os problemas. Por outro lado, um centro comercial do tamanho da quadra restringe muito mais a possibilidade de uso do espaço por parte dos habitantes e tem um impacto desproporcionalmente maior na vizinhança.

E um megaprojeto que ocupa muitas quadras limita gravemente a diversidade e a extensão das conexões sociais, dado que desafia o planejador a substituir o seu talento pelo talento de muitas pessoas comuns que utilizam seu conhecimento local para resolver problemas que só elas podem estar cientes. Tornar algo maior limita crescentemente o que as pessoas podem fazer e com quem podem se encontrar no espaço ocupado. O aumento de escala reduz a extensão dos contatos informais que alimentam a criatividade e a descoberta.

E para um dado tamanho ou escala de um projeto, quanto mais o planejador tentar predeterminar o tipo de atividades que os usuários podem fazer nele, menos provável que seu design complementará o contato espontâneo que gera e difunde novas ideias. Isso é o que tornou as regiões centrais tradicionais tão importantes. Com o passar do tempo, a combinação de usos diversos de espaços públicos (no sentido que me refiro aqui) aproximou um grande número de pessoas com gostos e habilidades distintas em um mesmo local. O design pode, obviamente, complementar aquele contato informal até certo nível, mas passando de um nível muito baixo o design humano começa a substitui-lo.

É claro, o pequeno não é sempre lindo, e o grande é, às vezes, inevitável. Mas isso só reforça a importância que planejadores devem dar sobre a influência que o aumento da escala e a intensificação do design tem sobre uma ordem social complexa.

O planejamento privado é muito mais limitado em escala

E não estou falando somente de projetos governamentais. Projetos privados poderiam, em princípio, gerar o mesmo impacto “taxidérmico” sobre a vitalidade urbana.  Mas, contanto que o design do planejador seja pequeno comparado ao espaço que o rodeia, a perda de complexidade não é tão grande. Sempre quando o governo de alguma forma subsidia projetos privados, mitigando as restrições do orçamento, a escala se torna massiva e suas consequências negativas mais radicais.

Um exemplo disso pode ser encontrado cerca de 600 metros de onde moro em Nova Iorque. O Barclays Center, a nova casa do time de basquete Brooklyn Nets, alcançou um tamanho enorme logo que os governos estadual e municipal ofereceram desapropriação por utilidade pública entre outros subsídios. Construir em uma escala massiva em um ambiente urbano que já é denso é normalmente caro demais sem estes privilégios legais, mesmo para um rico incorporador.

Um planejador não pode construir uma cidade inteira (ou mesmo um bairro) porque ele não pode começar a projetar e a construir a diversidade e a complexidade social que acontece espontaneamente em uma cidade viva. E acho que não deveria nem mesmo tentar, já que pode prejudicar irreparavelmente (ou até mesmo matar) o tecido vivo de uma cidade. O que o governo pode fazer? No curso normal de suas atividades, um governo pode, talvez, na melhor das hipóteses, evitar fazer as coisas que impediriam a emergência da infraestrutura social invisível que dá origem à diversidade, ao desenvolvimento e a genuína vivacidade.

O resto é basicamente taxidermia.


Texto publicado originalmente em FEE em 17 de abril de 2014. Traduzido por Matheus Pacini, com revisão de Anthony Ling.

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