A mudança de uso é inevitável
Cidades são dinâmicas, e os tipos de uso do solo precisam acompanhar as mudanças pelas quais a cidade passa.
Iniciado em 1970, o processo de favelização na cidade de Guarulhos foi marcado por processos de migração, ações de retirada de barracos e lutas de resistência.
17 de março de 2025Dados recentes do Censo Demográfico 2022, divulgados em 2024 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelaram que a cidade de Guarulhos tem cerca de 170 favelas com aproximadamente 215.969 moradores, totalizando 16% da população da cidade morando nesses territórios. Os dados divulgados pelo IBGE são significativos da dimensão da presença das favelas no espaço urbano da cidade. A história das favelas, no entanto, é pouco ou quase nunca objeto de pesquisa e de reflexão. Dessa forma, este artigo busca trazer um breve histórico da presença das favelas na cidade.
O processo de favelização em Guarulhos começou a partir da década de 1970. Esse período é marcado por mudanças significativas no tecido urbano da cidade, decorrente do processo de industrialização que a cidade vivenciava. É também nos anos 1970 que muitos migrantes, advindos em sua maioria da Região Nordeste do Brasil, migram para Guarulhos em busca de oportunidades de trabalho e melhor qualidade de vida. A cidade, sem uma política habitacional que acompanhasse o aumento demográfico decorrente do processo migratório, fez com que muitas pessoas começassem a ocupar lotes clandestinos e áreas verdes públicas para a construção de suas moradias, muitas das vezes em locais insalubres e próximos dos seus postos de trabalho. É nesse contexto que surgem as primeiras favelas do município.
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A favela da Vila Flórida é tida como a mais antiga da cidade, identificada em 1970 pela prefeitura. De acordo com o geógrafo Nilton César Gama:
“Dar-se-ia também, em 1970, o surgimento de áreas de ocupação, com o registro da primeira favela no município. Com o assentamento de 12 domicílios, o núcleo Vila Flórida surgiu como o primeiro caso de habitação em favela no município, posteriormente, o processo de periferização tornou-se gradual e as favelas foram espacializando-se e ocupando outras áreas do município, principalmente, próximo aos corredores industriais”
Ainda nos anos 70, a prefeitura de Guarulhos começa a estudar formas de conter esse processo de favelização. Entre 1973 e 1974, tem início as atividades de desfavelamento. O processo consiste no deslocamento ou derrubada de barracos construídos pelos moradores. O Memorando n° 128/76-SD/GP, encaminhado ao Gabinete do Prefeito em 1973, descreve as ações de retirada dos barracos. As favelas do Jardim Paulista, Vila São Jorge, Vila São Rafael, Ponte Grande e Vila Moreira foram algumas das que passaram pelo desfavelamento e foram mapeadas pelo Serviço de Desfavelamento, órgão constituído no mesmo período para coordenar essas ações pelo município.
No final dos anos 1970 e seguindo para a década de 1980, temos registros das mobilizações sociais em prol dos favelados da cidade. Falta de água, saneamento básico, falta de luz e transporte eram recorrentes e faziam parte do cotidiano e realidade das periferias e das favelas da cidade. As favelas da Vila Flórida e da Santa Cecília foram algumas das muitas favelas que lutaram por moradia digna e direitos básicos. O jornal “O Repórter de Guarulhos“, que circulou nesse período, foi um dos periódicos que mais noticiou as lutas e estratégias utilizadas pelos moradores para permanecer nos territórios e lutar por melhorias e condições dignas de moradia. É também nos anos 80 a publicação da primeira obra a se dedicar a falar sobre as favelas de Guarulhos. O livro “Molduras de Miséria”, de Roberto Sant’Anna, é baseado na experiência e vivência de Roberto nas favelas da cidade enquanto advogado e procurador do município.
Nas décadas de 1990 e começo dos anos 2000, as lutas dos favelados se intensificam com a participação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Na madrugada do dia 19 de maio de 2001, um grupo de moradores, em conjunto com o MTST, ocupou uma área localizada na região de Bonsucesso que servia como desova de carros. É o início da formação da Comunidade Anita Garibaldi, uma das maiores favelas da cidade.
Como colocado no começo deste artigo, pouco tem sido o interesse no estudo da história das favelas na cidade. Para além da obra de Roberto Sant’Anna, que trata mais de um relato pessoal do autor do que uma história das favelas, outras obras têm mencionado a trajetória e as lutas dos moradores favelados e periféricos. Destaco, por exemplo, os livros “Formação de uma Metrópole: Guarulhos” (1996) , de Expedito Leandro e “Revirando a História de Guarulhos” (1992) de Elói Pietá. Ambas as obras têm o mérito de trazer não somente os relatos pessoais dos autores enquanto atuantes nos movimentos sociais da cidade, mas também a atuação e agenciamento de muitos sujeitos nos territórios periféricos e nas favelas. A série “Revelando a História de Bonsucesso, São João e Pimentas”, publicada entre 2010 e 2014, também traz um histórico da formação de uma série de bairros periféricos da cidade, mas pouca ênfase nas favelas localizadas nessas regiões.
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As favelas de Guarulhos têm uma longa história, marcada pela resistência, solidariedade e mobilizações por parte de seus moradores em prol do direito à cidade e ao viver de forma digna. Suas histórias e a de muitos dos sujeitos que constroem esses territórios são importantes para compreendermos uma cidade marcada por tantas contradições e rupturas no espaço urbano.
Artigo originalmente publicado na AAPAH (Associação Amigos do Patrimônio e Arquivo Histórico), em fevereiro de 2025.
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